Relacionamentos, não importa se amorosos ou não, são difíceis. Jogue uma pandemia em cima que toda a dificuldade de antes vai parecer, provavelmente, uma brincadeira de criança. E, falando do Brasil, não paramos por aí: a crise política também foi se agravando, competindo o palco com a saúde para ver qual colapso viria mais rápido. Lidar com todas essas notícias nos deixa face a face com a nossa impotência, e ficar em casa, se podemos, passa a ser o melhor a fazer.
Na esfera romântica, porém, esse isolamento tem diferentes efeitos. Casais de longa data estão confinados juntos 24 horas por dia, namorados passam meses sem se ver (os que não estão furando a quarentena, no caso), solteiros se aventuram pelos aplicativos para ver se dão match em alguém e substituem o flerte do barzinho, agora tão inalcançável.
Tudo está à flor da pele, em especial os nossos ânimos. E a comunicação, famosa chave para um relacionamento saudável, é bem mais difícil por uma tela. Algumas pessoas, por exemplo, não são muito adeptas à comunicação virtual, o que pode ser visto como falta de interesse no relacionamento pelo parceiro. A saudade do afeto físico e da companhia presencial para lidar com todo o estresse agrava a situação. Contudo, o medo de se contaminar ou de transmitir o vírus costuma pesar — especialmente quando se leva em consideração que cerca de 45% dos infectados pelo coronavírus podem ser assintomáticos, segundo uma pesquisa publicada na revista estadunidense Annals of Internal Medicine.
Outras pessoas, porém, conseguiram extrair algo bom desses tempos sombrios. Casais também relatam terem se apaixonado mais e reinventado o relacionamento durante a pandemia. “Talvez a quarentena tenha acentuado ou potencializado o que já havia de bom ou de mal, contribuindo para tanto as coisas boas quanto as ruins evoluírem” explica Ailton Amélio, psicólogo doutor pela USP e autor do livro Relacionamento Amoroso.
Confira, neste texto da J.Press, como diferentes pessoas estão lidando com o amor nos tempos de coronavírus.
Casamento em espera?
Maria Scodeler e Mahomed Saigg já tinham uma rotina juntos: moravam no mesmo apartamento, no Rio de Janeiro, fazia dois anos e trabalhavam juntos como jornalistas de um famoso programa de tevê. O casamento estava marcado para o dia 06 de setembro havia um ano, em uma praia próxima.
Pegos de surpresa pela crise da Covid-19, o casamento, mesmo com toda a sua incerteza, foi uma válvula de escape do estresse da quarentena. Maria, mesmo sem saber se a cerimônia aconteceria em setembro, continuou fazendo os planejamentos, o que a ajudou a superar e a pensar em outra coisa além das múltiplas crises e do clima de terror mundial. “Das minhas amigas, eu, surpreendentemente, sou a que está lidando melhor com a pandemia”, conta.
Um dos maiores estresses, revela Maria, é a incerteza de se o casamento vai acontecer na data planejada ou não. “A gente está muito preocupado com as pessoas que já se planejaram vir, do exterior e tudo. O ânimo muda, às vezes pensamos que estamos ficando loucos de ainda não ter adiado, mas tentamos manter a positividade”, explica.
Juntos há três anos, o casal reconhece a importância do planejamento no dia-a-dia, mesmo em situações em que não há rotina como a conhecemos. “Estamos o dia inteiro juntos, mas isso não significa que temos ‘tempo de qualidade’. Se a gente não parar, não se organizar, a pandemia sufoca a gente”, diz Maria. Durante a semana, eles separam o tempo do trabalho e se juntam à noite, para ver alguma série que tinham colocado em espera antes do isolamento social. Dias de delivery, em que pedem alguma comida diferente para o jantar, também são apreciados cerca de uma vez por semana. “No final de semana, fazemos videochamadas com os amigos, fazemos caipirinhas”, conta.
Outras tarefas foram redescobertas: “no nosso primeiro ano de relacionamento, eu entreguei para o Mahomed um álbum cheio de fotos para montarmos juntos. Agora, finalmente estamos fazendo!”, diz Maria.
No início do isolamento, Mahomed contraiu o coronavírus e ficou de cama. Maria, sentindo que não havia para onde correr, não fez o isolamento dentro de casa e cuidou do noivo, mas mesmo assim não demonstrou sintomas e testou negativo para a doença. O período, porém, foi muito desgastante, porque teve que trabalhar e cuidar da casa sozinha ao mesmo tempo.
Como qualquer outro casal, existem momentos de tensões. Especialmente quando um está trabalhando mais que o outro. “O meu noivo trabalha com matérias investigativas, e no início da pandemia não estava sobrando muita matéria para ele. Sem nada no trabalho, ficou enlouquecido. Eu falei com ele, e fomos nos ajustando”, conta Maria. “Às vezes eu que estou estressada, e ele segura a onda. Tem altos e baixos… De vez em quando nos sentimos ofuscados, sem trabalhar muito”, continua.
Casamento em setembro ou só depois, o que importa é que o planejamento foi uma maneira de canalizar e encontrar uma relativa tranquilidade interior para Maria. Ela e seu noivo, estão, como ela diz, “até tranquilos. Na verdade, não sei porque a gente tá tranquilo, deve ser questão de sorte”.
Porque às vezes não dá para esperar
Depois de um tempo vendendo brigadeiro gourmet e aprendendo espanhol no Peru, João Edison Carella, de 20 anos, voltou ao Brasil. A pandemia do coronavírus já tinha começado, e João se isolou com a sua família, enquanto deu continuidade aos estudos de idioma – dessa vez, japonês.
Em pouco tempo, arquitetou um intercâmbio para o Japão com a ajuda de uma agência, para estudar em uma universidade. Paralelamente, João acessava o aplicativo de relacionamentos Happn, prática difundida entre solteiros, especialmente durante o isolamento. A dinâmica da plataforma é explicada pelo seu slogan: encontre as pessoas que cruzam o seu caminho.
João, morador de São Bernardo do Campo, em São Paulo, recebeu a notificação de que Thainara Macedo, de 22 anos, havia passado por perto. Acontece que, na realidade, Thainara não havia passado por lá e estava na casa dela, em São Vicente, há cerca de 150 km de distância.
Para o recém-formado casal, o bug do aplicativo não pode ser explicado por outra coisa além do destino. “Na hora que aconteceu isso, eu falei, ‘agora vamos ter que ver como vai ser’. Conhecer ela foi uma coisa que estava predestinada no meu caminho”, conta João.
Daí em diante, mesmo que virtualmente, eles não se desgrudaram. Passavam até 11 horas em ligação, e “dormiam juntos”, cada um em sua cama e em sua casa, mas conectados por videochamadas.
Thainara e João começaram a conversar no dia 29 de maio e, antes de completarem um mês de conversas, já estavam morando sob o mesmo teto. João se mudou para a casa de Thainara, onde ela morava com os pais e a avó. “Ela sempre falou ‘tá cedo’, e eu sempre disse ‘vamos lá’, porque eu sou uma pessoa muito intensa”, conta João. Por mais atípica que a situação seja, o casal explica que a família aceitou muito bem, com o pai de Thainara tendo até ido buscar João na casa dele de carro, para diminuir a chance de contaminação pelo coronavírus.
Sobre a convivência presencial, Thainara pontua “está sendo boa. A gente nem briga”. A rotina do casal é toda junta, excluindo apenas o trabalho.
“Nosso maior objetivo, contando a nossa história, é que possamos inspirar outras pessoas”, explica o casal.
Depois de tanto tempo…
Os escritores Heloísa Seixas, 67, e Ruy Castro, 72, já estavam juntos havia 30 anos quando a pandemia do coronavírus chegou ao Brasil. Os dois, porém, mesmo sendo casados legalmente, nunca tinham morado juntos.
De início, o relacionamento era à distância, ele em São Paulo e ela no Rio de Janeiro. Algum tempo depois, Ruy se mudou para o Rio. Não para a mesma casa que Heloísa, mas para uma próxima, também no Leblon.
A decisão foi natural, levando em conta que Seixas, na época, morava com a mãe e a filha. Tanto Heloísa quanto Ruy tem dois gatos, o que pode ser um empecilho para a coabitação. “Gatos são animais meio ciumentos, não gostam de mudar de casa. Era mais uma razão para mantermos nosso velho esquema”, conta Heloísa.
No dia 16 de março, com as novas recomendações de isolamento, Heloísa se muda para a casa de Ruy e, pela primeira vez em 30 anos de relacionamento, eles dividem um apartamento. O casal e, é claro, os quatro gatos.
“No início da pandemia, fiquei com muito medo. Acho que todos ficamos. O desconhecido é sempre muito assustador e esse vírus reúne todas as características capazes de apavorar, a principal delas a de ser um inimigo invisível”, conta Seixas, preocupada por ser, junto ao marido, parte do grupo de risco. “Mas depois fomos nos acostumando com tudo o que estava acontecendo, conhecendo melhor a maneira de nos proteger – e o medo diminuiu. Há sempre uma apreensão, claro”.
Em relação à convivência, Heloísa explica que é amena e equilibrada. As irritações, que poderiam ter sido agravadas com a situação de estresse, são passageiras. O casal tem seus momentos nas conversas: sobre livros, planos futuros, política ou trabalho, assunto é o que não falta.
Além disso, os dois iniciaram um projeto no Facebook chamado “Um espaço de delicadeza”. O nome faz referência à dedicatória que o músico Aldir Blanc, falecido em maio vítima da covid-19, escreveu para Seixas, no exemplar dela do disco “Vida Noturna”. No projeto, o casal se alterna na leitura de trechos de livros de escritores brasileiros. “Sempre foi uma delícia de fazer. Discutíamos durante o fim de semana e gravávamos na segunda de manhã, fazendo sempre cinco vídeos por semana. Foram 50 vídeos. Nunca repetimos nenhum autor”, conta Heloísa.
Depois, já iniciaram outro projeto: “Do baú do Ruy – Objetos que ficaram na história”. “São fotografias que postamos, mostrando a fabulosa coleção de objetos, livros, discos, todo tipo de memorabília que o Ruy guarda há anos”, diz.
Quando perguntada se continuarão morando juntos quando tudo isso passar, Heloísa responde: “essa questão continua em aberto. Mas não há a menor pressão, o menor estresse a respeito disso. Vamos fazer aquilo que sentirmos que será melhor fazer – e quando chegar a hora”.
Hora da verdade
O psicólogo Ailton Amélio definiu a quarentena como a “hora da verdade” para os casais, já que evidenciou muitos problemas existentes. “A quantidade de separações aumentou em vários países do mundo. Mas em alguns casais a relação melhorou. Então, tem o efeito dos dois lados. Depende do que já havia”, explica.
Apesar de as histórias aqui relatadas serem “histórias de sucesso”, não foi assim em todo lugar. Na realidade, a busca por “divórcio online gratuito” na internet aumentou em 9900% na quarentena.
O psicólogo explica que muitos casais, durante o isolamento, evoluíram para o esvaziamento, conceito que é uma das principais causas das separações. “É quando uma parte do relacionamento não significa mais nada para a outra. Não dá pra conversar, não tem atração romântica, nem atração sexual… Alguns casais evoluíram para isso, para uma indiferença”, explica Amélio. “Outros evoluíram para a amizade, e outros para a hostilidade. Antes da quarentena, estava tudo disfarçado, porque o casal mal se via e tinham outras atividades, e quando se viam faziam coisas juntos, como ir ao cinema ou a festas. E durante o isolamento, eles foram obrigados a passarem mais tempo juntos”, continua.
Em uma pesquisa realizada pelo Instituto do Casal, o uso excessivo dos celulares e a divisão não igualitária das tarefas domésticas foram elencados como os principais motivos de brigas entre casais que moram juntos, durante o isolamento social.
Marina Simas de Lima, cofundadora do Instituto do Casal e mestra em Psicologia pela PUC-SP, aconselha que, para contornar da melhor maneira possível o estresse do isolamento na esfera amorosa, o casal “tem que ser criativo, buscar leveza e muitas vezes desligar o noticiário para ter um pouco de paz e esperança”.
Quando o match fica só na imaginação
Algumas pessoas argumentam que, na situação atual do isolamento, é melhor estar solteiro. Isso porque, em teoria, o solteiro sofreria menos com saudades do parceiro, caso não morassem juntos, ou se irritaria e brigaria menos, se morassem no mesmo ambiente. A carentena, como a quarentena foi apelidada na internet, porém, também pesa.
“Neste período fiquei menos criteriosa e deixei que antigos paqueras se aproximassem. Racionalmente identifico como carência, pois se pensar em outras épocas, já teria cortado. Os sentimentos e sensações estão muito aflorados”, conta Joana*.
Já que não estão saindo por aí conhecendo gente nova, os solteiros podem sentir um vácuo na vida amorosa, e muitos se voltam, além de ao passado, aos aplicativos de relacionamentos, como o Tinder e o Happn. Essas plataformas possibilitam conversas com pessoas que dão match com o seu perfil – ou seja, pessoas que também têm interesse.
As conversas virtuais e a impossibilidade do encontro, para Ailton Amélio, “facilitam a idealização. Aquelas lacunas que você não conhece do outro, as fantasias preenchem, então é um campo fértil”. Não é estranho ouvir de amigos, por exemplo, que estão se apaixonando por pessoas que nunca viram.
“Comecei um flerte pelo Tinder. Estamos há quase dois meses conversando diariamente. É interessante porque, diferente da dinâmica normal do Tinder de marcar encontros logo depois do flerte bem sucedido, estamos nos conhecendo bem”, conta Natália*. “Eu imagino as mil possibilidades do nosso primeiro encontro… Posso estar me apaixonando virtualmente, mas ele é incrível!”.
Relacionamentos que começam pela internet, porém, não são uma coisa apenas de agora. Apesar de ter sido agravado pelo contexto do isolamento social, cerca de 20% dos casais atualmente se conhecem pela internet, segundo o psicólogo.
Acontece que há outro lado da mesma moeda: “um estudo australiano verificou que, nos aplicativos, as pessoas em média estão falando com seis matches. As pessoas têm uma lista tão grande, e vão surgindo pessoas novas todos os dias, então você pode acabar esquecendo de alguém que você falou quatro dias antes”, conta Amélio.
Para Marina Simas Lima, “a impossibilidade do encontro aumenta o desejo. E isso pode ser bem interessante para a relação. Só que vejo que muitos solteiros não esperam o isolamento acabar e marcam encontros”, o que não é recomendado.
Não há regra de como lidar com relacionamentos durante o isolamento, e pessoas falam coisas diferentes quando falam de amor. Mas é importante lembrar do que Lulu Santos canta desde 1988: consideramos justa toda forma de amor. Por mais difícil que seja o momento, o amor, quando faz bem, pode sempre ser reinventado e transformado em refúgio.
*Os nomes foram mudados para preservar o anonimato.