Mais de trinta anos depois de seu nascimento e com quatro vices campeonatos desde então, a Acadêmicos da Grande Rio entrou na Marquês de Sapucaí no dia 24 de abril deste ano para fazer história e sair consagrada campeã do Carnaval do Rio de Janeiro de 2022. A escola de Duque de Caxias homenageou Exu e, de fato, parece que o mensageiro abriu os caminhos para o campeonato tão esperado.
Ao pisar na avenida, a Grande Rio encantou quem assistia. Primeiro, a comissão de frente: intitulada “Câmbio, Exu”, foi coreografada por Hélio e Beth Bejani e baseada em Estamira ― catadora de lixo de Caxias, que falava com Exu por um telefone e utilizava expressões como “Câmbio, Exu!” e “Fala, Majeté!”. O tripé utilizado aqui era o próprio lixão e possuía um globo terrestre. Exu, representado por Demerson D’Alvaro, então, abraça o mundo e é elevado. No alto, ele, a boca que tudo come, se alimenta com farinha e aguardente. Enquanto isso, os dançarinos na parte debaixo do carro simulam um transe utilizando cabaças como pêndulos. Simplesmente encantador.
Como de costume, atrás da comissão de frente, o primeiro casal de porta-bandeira e mestre-sala. Daniel Werneck e Taciana Couto trouxeram para a avenida o mito da criação tanto na fantasia, com referência a galinha d’angola, quanto na coreografia, que contava com movimentos de Exu e Oxalá. Com belos movimentos e sincronia, o casal também encantou o público (e os jurados). Logo em seguida, o abre-alas! Com cores quentes, o “Mar de Dendê”, como foi chamada a primeira ala, veio representando o Atlântico e o carro abre-alas, “A Grande Encruzilhada”, retratou a travessia desse mar de fogo.
Após a diáspora, a Grande Rio adentrou a história de Exu no Brasil. Para isso, a escola propôs uma ala representando a chegada do orixá com referência a influência indígena, outra ala relembrando a exploração da cana-de-açúcar no litoral nordestino e uma terceira homenageando Zumbi dos Palmares, o último líder do maior e mais famoso quilombo da era colonial. Cada acontecimento histórico trouxe sua forma de apresentar a energia de resistência e insubordinação que o orixá manteve naqueles que se revoltaram contra a escravidão.
Depois de enaltecer a história, a escola trouxe a importância de Exu como mensageiro entre orixás e seres humanos e como essa comunicação se dá. Como já dito, Exu, a boca que come tudo, tem que ser alimentada, logo o comércio não poderia ser esquecido ao falar dessa entidade. Alas e carros trouxeram o mercado e a feira para a Avenida. Como Exu faz parte dos Povos de Rua (legiões de espíritos femininos e masculinos em desenvolvimento), Zé Pilintra, uma das entidades mais famosas dos Povos de Ruas, foi apreciado, assim como as diversas Pombagiras (exus femininos)
O sincretismo com o cristianismo também não foi esquecido. Tirando as exceções Bahia e Recife, no resto do país, Exu é sincretizado com a figura cristã de Santo Antônio e esse teve sua participação no desfile. Já Jardelina da Silva ― nascida em Sergipe, lavradora e costureira, narrava histórias fantásticas que misturavam Deus, Jesus Cristo, Nossa Senhora, Pedro Álvares Cabral, Virgulino Lampião e Exu ― foi homenageada na 27º ala. Além dela e de Estamira, outra mulher taxada de louca, Stela do Patrocínio, detentora de uma poética única, também foi homenageada
Finalizando o desfile, volta a referência à Estamira, com o último carro sendo um questionamento sobre o que realmente é lixo. A Grande Rio terminou o desfile de forma triunfal com a bateria do Mestre Fafá e o intérprete do samba-enredo Evandro Malandro tocando e cantando com toda a força do começo ao fim. Assim, a escola saiu da Sapucaí com o objetivo dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leandro Bora concluído: a desmistificação de Exu.
Afinal, qual a ligação entre as religiões afro-brasileiras e o Carnaval?
Inúmeras reclamações intolerantes como “o Carnaval deste ano teve macumba demais!” foram compartilhadas principalmente pela internet no último mês. Contudo, o que muitas dessas pessoas não se dão conta é que sem as religiões afro-brasileiras, os desfiles de Carnaval não seriam o que são hoje.
Para entender essa história, é preciso primeiro conhecer um pouco sobre a evolução dessas religiões. Inúmeras etnias africanas foram trazidas para cá por conta da escravidão, cada uma com sua cultura. Daí, nascem as múltiplas religiões brasileiras, mas de matriz africana: as nações do candomblé (o banto, o ketu e o jeje), a umbanda, o batuque do Rio Grande do Sul, o Xangô de Pernambuco, entre outras religiões.
A evolução de cada religião é única, mas é possível ressaltar que elas se desenvolveram principalmente entre os séculos XVI e XIX. No final do século XIX, especificamente, há a consolidação da maioria delas, pois, durante esse período, o número de africanos (e seus descendentes) ex-escravizados e alforriados foi aumentando. Assim, muitos deles se mudaram para as cidades, principalmente para a capital do país na época, o Rio de Janeiro, e, dessa forma, os cultos começaram a ser mais regulares e estáveis com lugares específicos: os terreiros.
Foi justamente nesse contexto dos terreiros que outros ramos dessas culturas sobreviveram à tentativa de supressão da história dessas etnias. Segundo a professora doutora Aza Njeri, “espiritualidades de matriz africana praticam valores culturais herdados da África. No caso da música, por exemplo, os cânticos e ritmos yorubás, ngolas e fons foram preservados dentro dos terreiros.” Assim nasce, portanto, um dos alicerces do Carnaval: o samba.
A história do samba começa na Bahia, mas é nos terreiros e residências das tias baianas ― daí o nome da ala das baianas ―, matriarcas pretas vindas da Bahia, que o samba se concretiza. Ainda nesse contexto, a partir da ida da população preta para o Rio que começa a popularização do samba e do Carnaval, mesmo com a criminalização de tal gênero musical, que permanece até 1930. Os terreiros foram fundamentais para a resistência cultural e evolução dos desfiles de Carnaval que, posteriormente, tornaram-se um dos maiores símbolos brasileiros.
A intolerância religiosa
Infelizmente, a história das religiões afro-brasileiras foi permeada pela intolerância e continua sendo. Não foram poucos os comentários preconceituosos sobre os desfiles de Carnaval deste ano, que contou com diversos Orixás atravessando a avenida e sendo homenageados por escolas de samba, para além da Grande Rio.
Simultaneamente, muitas pessoas, inclusive parte daquelas que disseminaram esse discurso racista, realizam práticas e adotam tradições que tem suas raízes na matriz afro-brasileira. Exemplos disso são a tradição de se usar branco no Ano Novo ou de pular as sete ondas, costumes ligados a Iemanjá, a orixá das águas salgadas.
A sociedade brasileira tem o racismo como um de seus alicerces e uma das consequências disso foi justamente a desumanização das etnias africanas que abarcavam no litoral e que ia muito além da exploração decorrente do trabalho forçado. Os diferentes povos trazidos pelo Atlântico tiveram suas culturas suprimidas ao máximo, nem os próprios idiomas os escravizados eram permitidos, o que não foi diferente com suas religiões.
Em teoria, a liberdade de culto religioso no Brasil foi implementada na República em 1890 com um decreto presidencial do Marechal Deodoro. Antes disso, o Império possuía religião oficial, o catolicismo, e tinha uma relação muito íntima com a Igreja Católica, que foi essencial para a perseguição das outras religiões. Ainda assim, de acordo com Claudia Alexandre, doutora e mestre em Ciência da Religião, “o Brasil, mesmo sendo um país laico, ainda não conseguiu superar heranças do sistema escravocrata e colonialista.”
O contexto brasileiro atual também não ajuda muito o direito de liberdade. Ainda segundo a estudiosa, é possível ver um retrocesso de conquistas civis importantes desde 2018 por conta de uma política institucional a qual ataca a democracia e espalha discursos de ódio, fazendo então terra fértil para a intolerância. Só ano passado houve um aumento de 141% de denúncias de intolerância religiosa, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos . Sendo elas, em sua maioria, ligadas a religiões de matrizes africanas e povos de terreiro.
Religião e Carnaval no lado particular
No final das contas, a religião e o Carnaval são ambos caracterizados pela coletividade. Porém, para entender melhor o efeito de cada um, é necessário um olhar mais íntimo. Dito isso, dois relatos trazem aqui essa perspectiva, tanto da religião, quanto do Carnaval.
Para Vitória Oliveira, mulher negra umbandista, a Umbanda significa força. Nasceu e cresceu na religião, mas, somente aos 15 anos decidiu se desenvolver como médium de fato. Ela relata também que já passou por situações horrorosas simplesmente por ser negra e umbandista, mas “esconder minha origem nunca foi uma opção, então a minha personalidade veio devido ao preconceito sofrido por ser mulher, negra e ser da umbanda.”
Vitória finaliza sua história: “A umbanda mudou minha forma de viver, me ensinou a ter mais empatia, a entregar amor pra quem só sabe destilar ódio. A umbanda é caridade, amor e acolhimento.” Esse exemplo ilustra aquilo que Njeri busca explicar ao dizer que “as espiritualidades de matriz africana possuem a Vida como valor supremo e isso nos ajuda a resistir à desumanização e ao racismo.”
Marlon Sanderson é torcedor da Grande Rio e possui uma página de carnaval, Sambas Enredos, na qual faz curadoria de versos de sambas-enredos e desfiles de escolas de samba. Sua ligação com as escolas de samba começou em 2017, ao se emocionar com o desfile da Grande Rio em homenagem a Ivete Sangalo. Mas foi com o desfile sobre Joãozinho da Goméia, que Marlon acompanhou de vez todo o processo do desfile, da escolha do samba ao espetáculo no sambódromo.
Neste ano, no entanto, além de acompanhar o processo e ainda desfilar em uma das alas, teve um detalhe diferente: Sanderson viu a Grande Rio ganhar pela primeira vez o Carnaval carioca. Para ele, o desfile tem tanto uma importância estética, quanto num sentido de luta. Sanderson também relata que, na apuração das notas, “estava na quadra e a cada 10, chorava, me sentia a pessoa mais feliz desse mundo”. Para a felicidade de muitos ― e tristeza de quem não gosta de Carnaval ―, nas palavras de Marlon: Exu foi campeão do Carnaval de 2022.