Por Ana Alice Coelho (anaalice.coelho@usp.br)
No dia 9 de outubro de 1964, na cidade de Guadalajara, nascia Guillermo del Toro Gómez. Criado em família católica — sendo a mãe poeta amadora que tirava cartas de tarot e pai empresário ganhador da loteria mexicana, Guillermo nutria afeição pelas histórias macabras desde jovem, o que o incentivava a consumir literatura gótica e autores como Edgar Allan Poe e Mary Shelley. O garoto mantinha uma pequena família de animais não convencionais, como ratos brancos, cobras, corvos e insetos vivos, além de um lobisomem de pelúcia. Com 5 anos, pediu uma mandrágora de presente de aniversário, que pretendia usar para praticar magia negra. Uma das fotos de família favorita do cineasta captura o pequeno Guillermo com presas de vampiro e sua irmã Susana com um machucado falso no pescoço, cuidadosamente maquiada pelo irmão mais velho.
Sua conexão com o mundo mórbido e a profundidade emocional da existência humana se materializou ainda mais por meio de curtas produzidos durante o ensino médio. Desenhando os próprios seres fantasiosos, Del Toro se inspirava na enciclopédia médica que o pai mantinha guardada na biblioteca. Um dos curtas contava a história de um monstro que, após conhecer a humanidade, retorna para o esgoto de que sonhava em escapar. Naturalmente, seguiu para a formação em cinema na Universidade de Guadalajara, onde frequentou o Centro de Estudos e Pesquisas Cinematográficas. Já inclinado ao universo da maquiagem e dos efeitos especiais, Del Toro se especializou na prática com Dick Smith, conhecido por seus trabalhos em O Exorcista (The Exorcist, 1973) e O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972). Em 1985, lançou a sua própria empresa de efeitos especiais, Necropia.

Considerado clássico do terror independente, Guillermo del Toro lançou seu primeiro longa-metragem, Cronos (Cronos, 1992), protagonizado por Federico Luppi, um dos atores favoritos do diretor. O filme conta a história de Jesús Gris (Federico Luppi), um vendedor de antiguidades que encontra Cronos, objeto que aprisiona um inseto capaz de conceder vida eterna. Após acidentalmente disparar seu mecanismo, Jesús começa a rejuvenescer e ter sede de sangue, enquanto tenta manter o objeto escondido de um empresário à beira da morte (Claudio Brook) e seu sobrinho ganancioso (Ron Perlman). É possível perceber na obra pequenos indícios do que seria a marca registrada do diretor, como o que Del Toro chama de The hinge (O ponto principal, em tradução livre), em que, ao seguir um personagem com a câmera, revela-se espaços da trama ao público.
Também identifica-se o estilo narrativo característico da maioria dos filmes de Guillermo, que quase guia o público por meio de um conto, como uma criança imaginando os cenários da história lida pela mãe antes de dormir. A narração aparece de maneira pontual no filme, de maneira breve no começo, meio e fim, mas serve como meio de mergulhar o espectador ainda mais a fundo no universo sobrenatural. Uma dos aspectos mais identificáveis de uma trama de Del Toro é a presença de personagens frágeis, inspirada grandemente por seu contato com o cinema mexicano. Aqui, essa presença se materializa na neta de Jesús, uma garotinha introvertida que durante todo o filme apresenta apenas uma única fala, emitida timidamente enquanto o homem pensa em mordê-la: “vovô”.
Guillermo sabe a importância dos efeitos práticos na construção de um filme fantasioso, mas sabe como incorporar também os efeitos digitais. Seus conhecimentos com a maquiagem artística aparecem em grande destaque na personagem principal do homem no momento de sua transformação, emoldurada por longos focos em plano detalhe. O método do diretor de utilizar o cenário como storytelling e cores vibrantes que contrastam com o ar sombrio aparece de forma prematura em seu primeiro filme, apresentado na oposição entre o casaco vibrante da garotinha e a cena grotesca que ocorre em um quarto escuro, iluminado fracamente pela lua. O contexto infantil contrasta com a realidade vampiresca do avô.

Em seu segundo filme, após o sucesso avassalador de Cronos, Guillermo fez sua primeira produção internacional. Em Mutação (Mimic, 1997), a cientista Susan Tyler (Mira Sorvino) cria a “Geração Judas”, baratas modificadas geneticamente com o propósito de erradicar as infestações de outras baratas disseminadoras de doenças. Ao contrário do que se esperava, as mutações multiplicam-se em tamanho, tomando conta das linhas de metrô de Nova York e adquirindo preferência pela carne humana.
Após as turbulências entre a produtora Miramax e Del Toro durante o processo de gravação de Mutação e a recepção desagradável do longa pela crítica, o roteirista resolveu exercer sua liberdade como diretor em A Espinha do Diabo (The Devil ‘s Backbone, 2001). Em entrevista para o canal IGN, Guillermo descreve o longa como o seu “primeiro filme”, onde se encontrou no universo cinematográfico e utilizou da autonomia ofertada pelos produtores Pedro e Agustín Almodóvar para desenvolver um filme que pertence a si mesmo, incrementando o sentimento de segurança, proteção e liberdade enquanto diretor dentro do longa-metragem gótico. Para o cineasta, o filme está entre o Top 3 melhores filmes que já fez.
A história segue Carlos (Fernando Tielve), um órfão alocado em um orfanato após a morte de seu pai durante a Guerra Civil Espanhola. O orfanato, que abriga filhos dos republicanos abatidos em batalha, mantém uma bomba inativa enviada por uma das tropas de Francisco Franco. Além da tensão imaginada pelas crianças de que a bomba explodirá a qualquer momento, o fantasma de um menino que desapareceu no dia do ataque assombra as paredes da construção isolada. Aqui, Federico Luppi ressurge como Dr. Casares, um dos responsáveis pelo funcionamento do lugar.
O estilo de movimentação de câmera que foi iniciado em Mutação é levado à maturidade. Guillermo introduz ainda mais o cenário como forma de contar a história. A intenção se traduz no mofo e umidade pintados à mão durante semanas, emulando ondas nas paredes da fossa, que se conectam com o cadáver afogado do menino fantasma. Os efeitos especiais aparecem novamente, apresentados no design esquelético do garoto assombroso. O recurso é atingido por meio da maquiagem mórbida de um corpo necrosado e acentuado pelos efeitos digitais que adicionam o sangue expelido da testa do personagem, que flutua pelo ar como se ainda estivesse embaixo d’água.
Acima disso, o traço mais impactante dos filmes de Del Toro se apresenta de forma magnífica em A Espinha do Diabo: a subversão do papel monstruoso. Espera-se que, em filmes de terror, o macabro seja o motivo da angústia. Para o cineasta, expressa-se exatamente como o contrário. Em Cronos, o papel do vampiro é representado pelo avô que luta para permanecer ao lado da família apesar de sua presença pavorosa. Já em A Espinha do Diabo, Guillermo usa da persona fantasmagórica como ponto de auxílio no decorrer da narrativa.
Descobre-se que o menino cadavérico que assombra Carlos é, na verdade, vítima de um ataque covarde, e que também ajuda o protagonista no grande clímax no final da trama. Colocando em foco a figura do fantasma, rodeada por outros pontos de tensão ao longo do enredo, Guillermo enfatiza que, no fim da história, quem possui o poder de assombrar a vida do protagonista é a humanidade, manchada por seus homens corruptos.

Indo na contramão de seus projetos anteriores, Blade 2 (Blade, 2002) é o primeiro filme de super-herói do diretor e o retorno do mexicano à Hollywood. Guillermo sempre tenta reinventar as produções em que se insere e viu na sequência do sucesso vampírico Blade: O caçador de Vampiros (Blade, 1998) uma oportunidade de incluir seu toque artístico no gênero heróico. No longa, Blade (Wesley Snipes), um híbrido vampiro-humano, é obrigado a se aliar com os vampiros que lutou para extinguir para enfrentar uma ameaça que pretende aniquilar toda a humanidade. Guillermo desejava se diferenciar completamente do filme sucessor, aplicando uma estética mais soturna aos filmes de super herói. Segundo o diretor, em entrevista para a IGN, “se Blade é música de câmara, Blade 2 é black metal”.
Seguindo a onda de seus filmes baseados em quadrinhos, Guillermo dirigiu Hellboy (Hellboy, 2004), trazendo de volta Ron Perlman como protagonista, com quem trabalhou em Cronos. Em Hellboy, um demônio (Ron Perlman) conjurado por nazistas é resgatado e criado em meio a humanos, onde entra para o FBI e luta contra as forças das trevas. A obra mistura o mundo dos super-heróis com o estilo obscuro característico de Guillermo, representada no cenário predominantemente sóbrio, que contrasta com a pele vibrante vermelha do protagonista, e os seres quase lovecraftianos.
Ao juntar a ação e brutalidade com uma história trágica, o diretor traz novamente a sensibilidade de humanizar seus personagens intimidantes. Por meio da figura do Hellboy, deslocado por sua característica demoníaca, Guillermo introduz novamente a temática do amor subversivo. John Myers (Rupert Evans) sintetiza a ideia do cineasta em uma de suas falas durante o filme: “Meu tio costumava dizer que gostamos das pessoas por suas qualidades, mas a amamos por seus defeitos.”

Em O Labirinto do Fauno (Pan’s Labyrinth, 2006), Guillermo se esbalda em todos os métodos que aprimorou em seus filmes anteriores. Utilizando de maquiagens e fantasias, efeitos especiais, cenários de tirar o fôlego e jogos de câmera instigantes, o cineasta mexicano cria um mundo fantasioso perfeito, divergindo grandemente do mundo real onde se insere Ofélia (Ivana Baquero). A personagem, uma criança imaginativa e apaixonada por contos de fadas, se vê obrigada a conviver com seu padrasto (Sergi López), um coronel vil e agressivo que caça e tortura seus opositores durante a Guerra Civil Espanhola.
O longa é uma batalha entre o mágico e a realidade, espelhando a forma que o autor enxergava o mundo naquele período. A garota, descontente pela situação opressora que se insere, acredita que encontrou um fauno na floresta ao redor da casa sombria em que vive, e imagina-se como a reencarnação de uma princesa folclórica. O personagem do fauno, vivido por Doug Jones, apresenta um escape para a menina, que muda os entremeios do mundo real por meio das tarefas que faz no mundo imaginário. Mesmo com sua aparência essencialmente tenebrosa, é no estranho que Ofélia encontra conforto.
Aclamado pela crítica e por fãs ao redor do mundo, O Labirinto do Fauno mostra que o mundo imaginário pode ser tão real quanto o mundo habitado pelos humanos. Em entrevista para TIFF, em tradução livre, Guillermo diz: “Contos de fadas, monstros e horror andam de mãos dadas na minha cabeça. Eu não acho que exista uma linha. É uma continuação. Eles emergem do mesmo lugar.”

Depois de sair da produção de Hobbit (Hobbit, 2012) e lançar Círculo de Fogo (Pacific Rim, 2013), Del Toro apresentou aos cinemas A Colina Escarlate (Crimson Peak, 2015). O romance gótico, apesar de não tão bem recebido pela crítica, possui seus fãs fiéis, como o próprio diretor. Na trama, Edith Cushing (Mia Wasikowska) casa-se com Thomas Sharpe (Tom Hiddleston), um misterioso empresário inglês que viajou aos Estados Unidos com a irmã Lucille (Jessica Chastain) em busca de oportunidades. Na mansão decadente dos irmãos sombrios, Edith se vê isolada de todos e assombrada por fantasmas de mulheres misteriosas.
Nessa obra, o diretor utiliza o ambiente da mansão escura como forma de demonstrar ao espectador a sanidade progressivamente deteriorada da jovem de forma materializada, com paredes caindo aos pedaços e a neve branca do inverno cedendo à argila vermelha vibrante e manchando a colina imaculada com o “sangue” que sobe do chão. Para a IGN, Guillermo afirma que um filme nasce a partir de uma criação de mundo. O nível dramatúrgico, caracterizado pela história e pelos personagens, é complementado pela experiência audiovisual, sagrada para o cineasta.
A personagem de Lucille, durante uma conversa com Edith, diz: “mas o horror… o horror foi por amor. […] É um amor monstruoso e ele torna monstros à todos nós”. Novamente, é por meio do terror que Del Toro constrói sua narrativa sensível, desenvolvendo o romance entre a protagonista e Thomas ao longo de seu casamento. É quando Edith conhece os segredos de Thomas que o amor entre os dois floresce verdadeiramente.

Fantasia sombria responsável pelo primeiro Oscar de Del Toro, A Forma Da Água (The Shape of Water, 2017) reforça a mensagem mais predominante dos filmes do diretor: O amor deve demandar aceitação, e não transformação. Elisa Esposito (Sally Hawkins), uma faxineira muda, se afeiçoa pelo homem-anfíbio (Doug Jones) aprisionado na instalação do governo que trabalha. Movida pelo confinamento do ser, Elisa começa a visitá-lo, nutrindo uma identificação com o homem que também não pode falar.
Em uma das falas da protagonista, Elisa descreve ao amigo a forma como se sente ao ser observada pelo Homem-Anfíbio, que a olha e não percebe o que ela não tem ou como se sente incompleta. Em entrevista para a Netflix, o roteirista diz que o horror traz um mundo ao espectador que não consegue ser percebido em outras adaptações. Em tradução livre, “o horror é um santuário para a imperfeição e mostra que não existe problema em ser um monstro. Todos somos monstros no fim do dia. Podemos viver com isso?”. Mais uma vez, o real monstro presente no longa é a ganância humana, representada por Strickland (Michael Shannon), que tortura e planeja dissecar o Homem-Anfíbio tal qual um animal.

Além de sua participação na formação do cinema de terror atual, Del Toro também teve sua atuação na cinematografia infantil. Em produções como Gato de Botas (Puss In Boots, 2011), A Origem dos Guardiões (Rise of The Guardians, 2012), Festa no Céu (The Book Of Life, 2014) e Kung Fu Panda 2 e 3 (Kung Fu Panda 2 e 3, 2011 e 2016), Guillermo imprime sua personalidade sombria de forma suavizada, exprimindo temas complexos de forma leve e didática. Em seu longa infantil mais recente, Pinóquio (Pinocchio, 2022), lida com a morte e o luto, usando os personagens em stop-motion como forma de ligar o público aos temas mais difíceis de digerir.
Para Guillermo, “curiosidade é a coisa mais bonita na fantasia. Se você consegue adquirir o estado de uma criança com olhos grandes, você está sendo curado”, diz à Netflix, em tradução livre. Em suas criações mais recentes, como O Beco do Pesadelo (Nightmare Alley, 2021) e Frankenstein (Frankenstein, 2025), o cineasta segue se expressando em suas tramas macabras e cenários soturnos, levados à vida com suas maquiagens elaboradas e efeitos especiais fantasiosos. Em tradução livre, “ódios e medos são espelhos, amor são janelas. O horror permite que você se reconheça. Isso é você. O horror é muito curativo e conta que existe todo um lado da vida que ninguém te conta sobre, e é um lado que é real”, afirma o diretor.
