Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Violência extrema em filmes de terror: a controvérsia entre rejeição e fascínio

Entenda os aspectos que provocam a dualidade entre a aversão e o interesse pelo gore representado nas telas de cinema
Por Hellen Indrigo (hellenindrigoperez@usp.br)

Uma das grandes polêmicas referentes ao universo cinematográfico é a presença de cenas de violência extrema em determinados filmes de terror. Enquanto muitos indivíduos demonizam essa prática ao relacioná-la com uma possível perda de empatia de seus consumidores, outros são fisgados pelas representações explícitas — o que intensifica um debate que envolve questões morais, sociais e psicológicas.

Assassinos sanguinários e monstros à espreita

O gore é um subgênero frequentemente associado aos splatter movies, que se diferencia dos filmes de terror tradicionais pelo seu enfoque na encenação de violência gráfica e mutilação corporal. O termo “gore” surgiu na Idade Média — com o significado “sangue coagulado e/ou derramado” — e teve a sua estética incorporada ao cinema com a exploração da representação de violência corporal realizada nos palcos do Teatro do Grand Guignol, em Paris, a partir dos anos finais do século 19.

Com o uso de técnicas inovadoras de efeitos práticos, o teatro era palco para peças que exploravam o lado mais sombrio da humanidade [Imagem: Reprodução/PICRYL]

O primeiro uso do termo para definir um filme foi feito por David F. Friedman, quando roteirizou e produziu Banquete de Sangue (Blood Feast, 1963) ao lado de Herschell Gordon Lewis, cineasta considerado como o pioneiro e mestre do subgênero. O longa acompanha a morte de diversas mulheres pelas mãos de um assassino, cujo objetivo é usar partes de seus corpos para ressuscitar uma antiga deusa egípcia. Ele foi o responsável por inaugurar a prática característica do uso abundante de sangue falso, além de closes e filmagens detalhadas de cenas explícitas.

Em entrevista ao Cinéfilos, Verônica Brandão, produtora audiovisual e doutora em Comunicação Social, afirma que o gore penetra em diversas formas cinematográficas, violando abertamente tabus morais, religiosos e sociais, enquanto expõe de forma escancarada o corpo e seus fluidos. Segundo ela, as cenas provocam uma luta do ser humano contra a sua própria corporalidade.

Normalmente, a trama dos filmes do subgênero consiste em criar pretextos para imagens de carnificina, em uma busca constante por fazer com que a violência seja a atração principal. “Diferente do horror tradicional, que pode se valer da sugestão para criar o medo, o gore busca explicitamente chocar e mortificar a audiência com cenas viscerais”, comenta Verônica. “O gore não sugere. Ele mostra abertamente a destruição do corpo humano, detalhando ferimentos, desmembramentos, eviscerações e a profusão de sangue.”

Críticas e facas de dois gumes

Por conta de sua natureza chocante, a presença de gore nos filmes de terror é um frequente alvo de discussões. Em entrevista ao Cinéfilos, Aline Lauxen, apresentadora do canal do YouTube Ala Secreta, diz que um dos argumentos mais utilizados para criticar o subgênero é a ideia de que a exposição às cenas extremas pode gerar insensibilidade nos espectadores frente à violência no mundo real. Assim, propaga-se o pensamento de que aqueles que consomem esses filmes “só podem ter problemas mentais ou ser pervertidos”.

Na década de 1960, Henri Michard, fundador do Centro de Treinamento e Pesquisa de Educação Supervisionada, na França, realizou uma pesquisa que justificava o controle do cinema como um meio de proteger a saúde mental das crianças. De acordo com o estudo, a exposição às imagens violentas poderia produzir traumas psíquicos e, talvez, criar ou intensificar impulsos de dominância sádica ou masoquista. 

Segundo Aline, a exposição excessiva a filmes violentos pode, sim, ser capaz de gerar uma perda de sensibilidade. Porém, ela afirma que o medo de que a reprodução de conteúdos sensíveis crie um público sem empatia e que banaliza a dor alheia perde a coerência ao enquadrar o terror gore como o principal ou único responsável por esse fenômeno. Apesar de ser o maior alvo de críticas, o subgênero nem chega perto de ser o mais comum entre os filmes violentos produzidos mundialmente.

Cenas violentas são comumente vistas em outros gêneros, como quando o personagem de Keanu Reeves esfaqueia o olho de um inimigo em John Wick 3: Parabellum (2019) [Imagem: Reprodução/DeviantArt/@GALGALIZIA]

“E os filmes de ação que nossos pais gostam de assistir no domingo à tarde com cenas longas de combate armado, em que ninguém se importa com personagens sendo massacrados por armas automáticas? Ou, ainda, aquele programa sensacionalista que nossa avó assiste na TV aberta todos os dias, que mostra imagens reais de acidentes de trânsito ou crimes hediondos?”

Aline Lauxen

Fale bem, fale mal

Por outro lado, as críticas negativas — e até mesmo a censura ou a proibição de determinadas obras — ajudam a impulsionar o consumo do terror gore ao despertar a curiosidade mórbida da audiência. “O público é movido por um desejo de testemunhar o que não é permitido e de experimentar uma descarga incontrolável de adrenalina”, comenta Verônica.

De acordo com a especialista, o horror violento geralmente é definido por sua capacidade de contrariar a norma cinematográfica dominante. Quando uma obra é criticada ou censurada por seu conteúdo, isso reforça sua identidade como um desafio às convenções morais e estéticas, atraindo um público que valoriza o significado artístico do proibido.

Durante o lançamento dos filmes da franquia Terrifier, diversas pessoas deixaram as salas de cinema após se sentirem mal por conta das cenas explícitas; apesar das críticas, o fenômeno também despertou curiosidade e atraiu novos espectadores [Imagem: Reprodução/Instagram/@screamboxtv]

Historicamente, relatos de reações extremas da audiência — como desmaios, vômitos e até mortes nas salas de cinema — e rumores, incluindo aqueles que sugerem uma violência real nas produções, serviram para aumentar a popularidade de diversas obras e foram utilizadas como estratégia de marketing por cineastas e distribuidores. Um exemplo são as controvérsias ao redor de Terror sem Limites (A Serbian Film, 2010), como informações sensacionalistas e incertas sobre suas proibições mundo afora, que aumentaram a sua notoriedade.

O terror como espaço de catarse

Em seu artigo O monstro, o cinema e o medo ao estranho, Verônica definiu o cinema de horror gore como uma “catarse programada”. Partindo em uma direção contrária às críticas comumente feitas ao subgênero, ela explica ao Cinéfilos que esse termo busca se referir aos filmes de terror com violência extrema como um “complexo processo de exploração psicológica, social e cultural”.

A definição descreve o ato de assistir a essas obras como uma oportunidade para que o público confronte o proibido e teste os próprios limites emocionais, longe das consequências da realidade. “A arte sensível, nesse contexto, permite ao espectador vivenciar emoções intensas e confrontar aspectos sombrios da existência, sejam eles medos ancestrais, injustiças sociais ou as próprias pulsões reprimidas, tudo em um espaço ficcional seguro”, diz.

Além de representarem um ambiente livre de perigos, que cria uma maneira saudável de extravasar sentimentos negativos, os filmes de terror também permitem que o espectador experiencie, por meio dos personagens, situações que o fazem questionar, entender e até mesmo se preparar para caso alguma delas ocorra na vida real. As obras são uma chance para que o público sinta emoções fortes, enquanto torce para nunca precisar lidar com elas no universo fora das telas.

“Todo mundo tem uma opinião sobre o que faria se ouvisse um barulho vindo da cozinha durante a madrugada, mas ninguém teria se perguntado isso se não fossem os filmes criando cenários do que poderia estar os esperando por lá.”

Aline Lauxen

Aline aponta que a curiosidade mórbida que motiva o consumo dos filmes violentos de terror é semelhante ao ímpeto de diminuir a velocidade do carro para espiar um acidente na estrada ou de clicar em uma matéria que detalha um desastre real. Apesar do receio de enfrentar experiências traumáticas, o ser humano costuma se questionar sobre elas e sobre a forma com que enfrentaria cada uma — e as obras de ficção chegam perto de oferecer uma resposta para essas dúvidas.

O Albergue (Hostel, 2005) retrata a história de mochileiros estadunidenses que se hospedam na Eslováquia e são envolvidos em um esquema criminoso de sequestro e tortura; após o sucesso do longa, diversos espectadores passaram a debater nas redes sociais sobre a possível existência de organizações similares no mundo real [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

Ao passo que cada filme do subgênero apresenta um vilão sem pudor e sem controle sobre si mesmo, a curiosidade também se estende para o conhecimento de suas motivações. “Filmes gore são uma chance de espiar uma versão humana que existe apenas para sobrevivência ou crueldade e permite que o espectador questione do que o ser humano é capaz, tanto para fazer o mal quanto para se proteger”, afirma.

Além dos complexos efeitos práticos, os filmes do subgênero também carregam a difícil missão de criar personagens cativantes o suficiente em sua crueldade ou resistência, a ponto de manipular os picos de emoções do público durante toda a duração da obra. De acordo com Verônica, embora a preocupação em relação à dessensibilização seja legítima, uma grande parte da crítica ao gore adquire um tom preconceituoso ao ignorar a riqueza e a complexidade de suas funções artísticas.

“Arte não se caracteriza como arte por ser bonita ou facilmente apreciável.”

Aline Lauxen

Além da carnificina

Apesar de ser comumente julgado como uma sequência gratuita de cenas violentas, o terror gore também pode ser utilizado em um contexto de crítica social e política. Ao criar um efeito de choque e desafiar tabus visuais, o subgênero torna-se capaz de induzir o espectador a uma reflexão sobre a violência, a morte e a monstruosidade existentes na condição humana — tanto nos personagens fictícios quanto na vida real.

Segundo Verônica, o gore pode se comportar como um espelho crítico da sociedade, abordando preocupações de cada época. Um exemplo dessa característica é a presença de zumbis nos filmes de George A. Romero como um artifício para denunciar os males do consumismo e representar a decomposição social. Já cineastas como Paul Verhoeven utilizam a violência gráfica para tecer profundos comentários sociais e políticos, satirizando ideologias e expondo verdades desconfortáveis sobre a barbárie humana, a guerra e a manipulação das informações.

Em outros casos — como na junção do humor ácido com cenas bizarras feita em Fome Animal (Braindead, 1992) —, a representação exagerada da violência pode adquirir um sentido de comédia ou paródia. À medida que uma obra extrapola os limites da realidade e desperta a curiosidade da audiência para quais níveis o surreal pode alcançar, a mera recepção à violência crua cede destaque para a expectativa.

O uso do gore também pode ser feito para desestabilizar a construção da mentalidade do espectador, fazendo-o questionar a própria natureza da realidade e a relação entre o físico e o psíquico. Um exemplo é a utilização de cenas explícitas em conjunto com elementos de ficção científica nas obras dirigidas pelo canadense David Cronenberg, em que o gore adquire um certo sentido exploratório ao ser o ponto de encontro entre a natureza humana e a tecnologia.

A Mosca (The Fly, 1986), um dos clássicos de Cronenberg, acompanha a trajetória de um cientista que sofre mutações genéticas após entrar em uma máquina de teletransporte junto com um inseto; no longa, o intenso horror corporal une-se a uma dose de sensibilidade e descoberta [Imagem: Reprodução/X/@John Watches Horror]

Contrariando as críticas que classificam o gore no terror como apenas uma demonstração de violência gratuita, Verônica afirma que a rejeição ofusca o potencial dialético e subversivo que essas obras podem oferecer à consciência individual. Segundo ela, o terror violento é uma oportunidade de representar a ferocidade animal do ser humano, que vem sendo cada vez mais camuflada pelo mundo virtual — onde “todo mundo parece bonito, bem-sucedido e sem problemas”.

De acordo com Aline, a representação dos indivíduos em contextos extremos também é uma forma de conexão: “Ao terminar de ver Terrifier 2 (2022), minha reação foi: ‘espero um dia ser tão corajosa quanto Sienna Shaw’. Ao vê-la protegendo o irmão mais novo de toda aquela violência, senti uma empatia por ela que não sinto com a maioria dos protagonistas”, relata. “Esses filmes mostram que, enquanto algumas pessoas podem ser cruéis em suas versões primitivas, outras podem ser altruístas, fortes e corajosas. Há muito o que se inspirar.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima