A Cultura Ballroom — em inglês, “casa de bailes” — é uma subcultura de pessoas LGBTQ+ não brancas que passaram a resistir, organizando bailes performáticos, às constantes violências que sofriam das pessoas — até mesmo daquelas dentro da dita “comunidade”, que permaneciam reproduzindo os padrões e preconceitos que permeiam a sociedade.
A partir da década de 1960 se iniciam, nas regiões periféricas da cidade de Nova York — também conhecidas como Guetos —, as chamadas “Drag Balls”. Essas primeiras balls apresentavam performances, na grande maioria das vezes, de homens brancos cisgêneros homossexuais que se montavam e, em pequena medida, de mulheres transsexuais e cisgêneros lésbicas. As apresentações nos bailes eram avaliadas de acordo com categorias que levavam em conta moda, beleza e comportamento.
Em 1967 surge o nome que revolucionou a Cultura Ballroom: Crystal Labeija, uma mulher transsexual que fazia Drag Queen e foi uma das poucas negras a receber o título de “Queen of The Ball”, ou em portugês “Rainha do Baile”. A lenda sofreu racismo em um concurso de beleza realizado pela prefeitura de Nova York e, revoltada, disse a icônica frase “I have the right to show my colour” – Eu tenho o direito de mostrar minha cor. Com o intuito de resistir ao racismo, nasceu a primeira House, a House of La Beija, a pioneira que revolucionou a cena estadunidense e que criou o imaginário de Ballroom que se mantém até hoje.
Os holofotes passam por elas
Na década de 1980 e começo de 1990, a Cultura Ballroom fica mais parecida com o que conhecemos hoje. “Já nesse período tem alguns produtos midiáticos que foram muito importantes para torná-la algo pop”, aponta o jornalista Thiago Rizan, autor de artigo sobre a midiatização da Cultura Ballroom, em entrevista à Jornalismo Júnior.
Essa época marca o primeiro momento de difusão dessa cultura para o mundo. A cantora Madonna lançou o hit que ficou mundialmente famoso, Vogue, que aumentou a visibilidade dessa Cultura aos olhos do mundo. A música remete ao estilo de dança criado nas Balls, o voguing, que agrega elementos simétricos, utilizando-se da estrutura corporal de diferentes formas e com inspirações nas poses das modelos nas capas da revista Vogue.
Mesmo depois de ter dado certa visibilidade para a cena, “atualmente se discute se houve uma apropriação da Cultura por parte de Madonna”, aponta Thiago. Além da música, hoje existe uma produção cultural significativa acerca da Cultura Ballroom; programas famosos como o reality show Legendary (2020-2022) da HBO e produções audiovisuais como a série Pose (2018-2021) deram maior destaque à Cultura.
De certa forma, esse aumento de visibilidade é essencial para que pessoas dentro da própria comunidade tomem conhecimento dessa Cultura dissidente. Porém, não é a partir da grande mídia que o movimento está resistindo e permanecendo. De acordo com o consultor em comunicação Pedro Scudeller, também autor do artigo, as mídias tradicionais ainda não são o principal caminho buscado por essas pessoas, que acabam fazendo sua própria divulgação por outros canais.
A Cena Brasileira
Depois de algumas décadas nos Estados Unidos, e após essa visibilidade que a Cultura ganhou, ela foi se espalhando pelo mundo. Primeiramente pela Europa, mas depois adentrou a cena cultural dos países do Sul global.
A cabeleireira, dançarina e performer Gabriela Almeida é referência dentro da cena brasiliense e brasileira no geral. Gabi entrou em contato com a Cultura Ballroom em diferentes momentos de sua trajetória como performer e na sua construção pessoal quanto uma travesti.
Gabi conta que montou um grupo de dança com as amigas, em que dançavam um estilo que era chamado de “Gay Style”, que era basicamente uma junção de vários estilos. “Por volta de 2010, nós tivemos contato com um grupo de Singapura pelo Facebook que tinha um estilo muito parecido com o nosso, mas que já bebia da fonte do voguing”, conta a artista.
Ainda nos anos 2010, a Cultura Ballroom passou a ganhar mais força dentro do país e começou a construir um caminho de sucesso e resistência. Em Brasília, a partir de 2012, eventos mensais de dança reuniam todas as tribos: galera do Jazz, do contemporâneo, do hip hop — e começaram a aparecer as pessoas do voguing.
Por ser um estilo de dança, ele exige um grande preparo físico — e também emocional. Então ao adentrar em uma House é sempre necessário se instruir sobre a sua própria linguagem corporal, para entender até onde o seu corpo pode e quer performar. Mas também, a participação em uma House não necessariamente associada a performances: “Você pode estar em uma e contribuir com a Cultura de outras formas”, aponta Gabriela.
Para além da performance
A Cultura Ballroom supera as barreiras da dança, das apresentações e tudo aquilo que quem olha de fora consegue ver. Para Gabi, a série Pose mudou a maneira com a qual ela via aquele espaço e a fez perceber a revolução que “aquele mundo ideal” poderia fazer na vida de pessoas historicamente marginalizadas.
Além dos bailes, tem muitas outras coisas por trás do brilho. O pioneirismo das travestis e transsexuais é o primeiro passo para entender como se formulam as relações dentro das Houses e também da Cultura. Essa troca de afetos entre corpos dissidentes é uma das maneiras de acolhimento que encontraram para continuarem vivendo e resistindo.
A estudante de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, Eliel Heliodoro conta que a Cultura Ballroom teve impacto transformador em sua vida: “Quando tive a oportunidade de frequentar as balls, foi a primeira vez que me enxerguei enquanto potência. Eu, que venho de uma nova geração de mulheres trans e travestis, consegui enxergar que a minha identidade é maravilhosa e transformadora.” Ela também relata que a experiência lhe proporcionou auto aceitação: Foi um espaço de referência pra mim, de enxergar outras travestis e mulheres que não tem medo de elevarem seu corpo a um outro patamar, de rainha, divindade, lendária. Isso resgata a autoestima de pessoas como eu, e nos mostra que a nossa verdade é a coisa mais linda que existe.”
Dentro das Houses constroem-se relações familiares. Para Gabriela, “Família pode ser qualquer coisa. Pode ser um grupo de duas pessoas, pode ser um grupo com 10 ou 20 pessoas”. O que se constrói nessas relações é o fortalecimento de pessoas que historicamente não são pertencentes ao conceito tradicional de família. Segundo Eliel “é muito bonito o fato de que podemos escolher a nossa própria família, algo que pessoas não dissidentes desconhecem”.
Porém, não é só de amor que se vive. E Gabriela, sendo uma travesti indigena, faz um apontamento importante sobre recursos financeiros: “São as pessoas que detém os recursos que realmente tem o poder de realizar as coisas. E isso não acontece na cultura LGBT, por exemplo.”.
Por ser um movimento dissidente, a Cultura Ballroom permanece sendo mantida pelas lutas e resistências de pessoas negras, indígenas, transsexuais e travestis e de múltiplos outros gêneros e sexualidades. Esses espaços são construídos e reconstruídos diariamente dentro das periferias brasileiras por essas pessoas, que buscam a valorização, a exaltação e o protagonismo de seus corpos. Corpos esses que correm riscos diariamente, e, por isso, entrar numa Ball é um ato de coragem, porque viver o seu Eu é revolucionário.