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A história da crítica cinematográfica: da Grécia ao YouTube

Os primeiros escritos sobre Arte surgiram na Grécia Antiga, mas a crítica de Arte, no sentido de análise e avaliação das obras, só começou a ser produzida no século XVIII, por intelectuais como o iluminista Denis Diderot. Por mais de dois séculos, a crítica se limitaria à música, pintura, escultura, arquitetura, artes cênicas e literatura, …

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Os primeiros escritos sobre Arte surgiram na Grécia Antiga, mas a crítica de Arte, no sentido de análise e avaliação das obras, só começou a ser produzida no século XVIII, por intelectuais como o iluminista Denis Diderot. Por mais de dois séculos, a crítica se limitaria à música, pintura, escultura, arquitetura, artes cênicas e literatura, mas eis que, no início do século XX, surge a crítica cinematográfica, trazendo consigo um universo de possibilidades para que os críticos construíssem, juntamente com os cineastas, a nova Arte.

O final da década de 1930 e o início dos anos 1940 viram a ascensão da Sétima Arte e, com isso, a popularização da crítica especializada nos jornais. Foi nesse contexto que surgiram as críticas apaixonadas de James Agee, Otis Ferguson e Manny Farber, que, embora curtas, são admiradas até hoje e tiveram um papel essencial em tornar a crítica reconhecida pelo público. Enquanto isso, no Brasil, a crítica concentrou-se, primeiro, em revistas de cinema especializadas, conquistando timidamente espaço nos jornais conforme tornava-se mais popular. O expoente desse período, no Brasil, foi o crítico Antonio Moniz Vianna, que em suas críticas diárias trouxe uma perspectiva menos teórica e acadêmica, rendendo-lhe o status de primeiro intelectual do Cinema.

Fora daqui, a Era de Ouro da crítica cinematográfica se deu nos anos 1960, com os textos entusiasmados de críticos como Pauline Kael e Andrew Sarris. A crítica deixou, nesse momento, de ser uma “nota de rodapé”: textos mais longos, até mesmo mais líricos em alguns sentidos, passaram a ter destaque e tornaram-se procurados o suficiente para serem organizados em coletâneas e publicados em forma de livro. Em terras tupiniquins, a situação era bastante diferente: o AI-5 frustrou planos que avançariam a técnica e o conhecimento cinematográfico, como a tentativa de estabelecer um curso de cinema na Universidade de Brasília. Contudo, o período de Ditadura Militar não trouxe uma estagnação total da crítica cinematográfica brasileira, foram criadas diversas revistas e seções especializadas em discutir a estética dos mais recentes movimentos e debater a trajetória do cinema nacional. Ainda assim, objeções à falta de profundidade da crítica perdurariam até mesmo depois do final do Regime.

Nas próximas duas décadas a grande novidade no ramo foram os programas de crítica na televisão, com o grande destaque para o programa At the Movies, dos críticos Gene Siskel e Roger Ebert, que exibia trechos dos filmes que seriam avaliados e mostrava Ebert e Siskel comparando impressões e debatendo possíveis discordâncias. Ao final, cada um atribuía ao filme um polegar para cima ou para baixo, sintetizando seu parecer. O formato dividiu opiniões, com alguns criticando o fato de que os filmes eram apresentados de forma compacta e focada no entretenimento do espectador, muitas vezes deixando de lado uma análise mais profunda e complexa, e outros elogiando o alcance e a exposição proporcionados por um programa fácil de ser compreendido por leigos. Abaixo, temos um trecho de um episódio de 1984, em que Siskel e Ebert avaliam o filme Os Caça-Fantasmas (Ghostbusters,1984):

https://youtu.be/UkfGXtX2qAE

A discussão “profundidade versus alcance” foi retomada recentemente com a popularização da crítica na internet. Não somente os textos passaram a ser veiculados digitalmente como houve uma abertura que possibilitou que qualquer pessoa emitisse sua opinião sobre Cinema em qualquer formato desejado, dando espaço para que a crítica se reinventasse em novos meios. O YouTube particularmente é bastante propício ao surgimento de formatos e abordagens diversificados, já que, apesar de proporcionar lucro aos criadores de conteúdo através de anúncios, não há, necessariamente, contato entre estes e os anunciantes, deixando a relação com o público muito mais proeminente do que em outras mídias.

Dessa forma, alguns canais podem optar por um enfoque cômico, como ocorre com o Pipocando e certos vídeos do The Film Theorists; alguns escolhem fazer as chamadas video essays, formato audiovisual equivalente a ensaios escritos em que, geralmente, analisa-se e comenta-se um determinado tópico proveniente de um produto cinematográfico ou televisivo, como é o caso do EntrePlanos, Lessons from the Screenplay e Every Frame a Painting; alguns, por sua vez, preferem fazer um recorte em determinado nicho, caso do Omelete e do Jovem Nerd, ambos canais direcionados ao público nerd; por fim, outros focam na narração do youtuber, introduzindo e criticando determinada obra, caso dos canais Lully de Verdade, Chris Stuckmann e Jeremy Jahns e de muitos dos canais de críticos da mídia escrita, como o canal de Pablo Villaça e de Tiago Belotti.

 

É interessante perceber o quanto canais com conteúdos tão diferentes utilizam elementos em comum, que, em grande parte, já estavam presentes nos formatos anteriores. Partes da estrutura criada por Roger Ebert e Gene Siskel como a discussão de duas ou mais pessoas sobre a obra em questão e a sumarização da opinião através de um sistema simples de avaliação , estão presentes na maioria dos vídeos de crítica no YouTube, e a forma básica do que deve ser incluso em uma crítica cinematográfica manteve-se constante através de todas as mudanças de mídia. Para visualizar melhor as similaridades e diferenças entre as críticas no YouTube e aquelas consideradas tradicionais tomemos, a título de exemplo, o texto de Pauline Kael, publicado na The New Yorker Magazine, em 1972, criticando o filme Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971), e o vídeo de Tiago Belotti, do ano passado, sobre o mesmo filme.

Em sua crítica, Kael aborda o quê faz com que o filme seja, para ela, a perversão total da mensagem trazida pelo livro que inspirou a obra cinematográfica, e uma frustrada tentativa de “pornografia da brutalidade”. Além de declarar seu completo descontentamento com “o gradual condicionamento da aceitação da violência como prazer sensual”, ela defende o papel da crítica, e não da censura, em frear esse movimento de dessensibilização do público em face à violência. Para isso, não poupa adjetivos ou referências e explora cada um de seus pontos com paciência e atenção aos detalhes. O vídeo de Belotti não trata de questões tão amplas e se atém ao conteúdo do filme, fazendo poucas digressões e não utilizando a comparação com o livro. Apesar disso, a adjetivação também é bastante rica e há uma análise rápida, mas detalhada, de aspectos técnicos aos quais Kael não dedicou a mesma atenção (ou a mesma admiração). Existem alguns pontos explorados em ambas as críticas, como o estilo visual e sonoro do filme, que é caracterizado por Kael como um estilo malicioso e sinistro, e por Belotti como fantástico e genial, e a brilhante atuação do protagonista, o ator Malcolm McDowell, com Kael comparando-o com um jovem James Cagney e afirmando que esta foi a única performance de qualidade no filme, e Belotti caracterizando a personagem como uma das mais fascinantes do Cinema.

A grande diferença, proveniente tanto dos formatos quanto dos contextos em que as críticas foram produzidas, é o ritmo com que a argumentação é apresentada: Kael detalha extensivamente cada uma de suas observações, apresenta-as de forma fluida e interessante, mas não se preocupa em fazê-lo de forma rápida, muito menos sucinta; já Belotti traz entusiasmo e velocidade a seu conteúdo ao falar de forma rápida, mas nem por isso incompleta, de cada um dos pontos que considera importantes. Isso deve-se, é evidente, a uma mudança na maneira como o público consome esse tipo de conteúdo, mas não significa, necessariamente, uma perda ou um ganho, trata-se de uma adaptação contínua da crítica cinematográfica ao público que a consome no momento em que é produzida. Vivemos hoje, mais do que nunca, um momento em que a crítica faz-se acessível a públicos diversos, que, na época de Kael, não teriam fácil acesso a ela ou ao cinema ao qual ela avalia, mas por meio de uma linguagem mais rápida, simples ou cômica essas pessoas são expostas a obras que marcaram a história do Cinema e podem, caso desejem e considerem necessário, buscar críticas mais clássicas e complexas.

por Rebecca Gompertz

rebecca.gompertz@usp.br

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