Milan Kundera é um dos autores tchecos mais conhecidos, com obras como A Valsa dos Adeuses (Companhia de Bolso, 2010) e A festa da insignificância (Companhia das Letras, 2014). O autor, expatriado e exilado na França na época em que escreveu A insustentável leveza do ser (Companhia das Letras, 2017), descreve as turbulências de sua nação. O livro foi lançado originalmente em 1982 e é considerado pela crítica a obra-prima do autor.
O livro trata de dois casais, Tomas e Tereza e Sabina e Franz, ao decorrer de vários anos. Tomas é um libertino que se apaixona por Tereza e tem Sabina como uma “amiga erótica”. Em 1968, a Primavera de Praga leva à invasão da Tchecoslováquia pela União Soviética, e os casais são impactados com a nova repressão que recai sobre o país.
A escrita é fluída e concisa — o livro é dividido em sete partes formadas por curtos capítulos. Não há linearidade e os personagens presenciam vários acontecimentos históricos. Kundera se utiliza da estratégia de fluxo de consciência como forma de abordar o íntimo de seus personagens, por meio de memórias e dos mais profundos sentimentos.
O autor não se limita a modelos tradicionais e usa uma quebra da quarta parede para se inserir no texto e comentar questões filosóficas. Em um ponto do livro, Kundera admite que todos os personagens são frutos de sua criação e fala do momento em que os imaginou.
A filosofia é uma grande parte do livro; ela faz com que, mesmo com uma escrita simples e despretensiosa, o leitor se dedique integralmente a entender as questões nas quais os personagens se envolvem. De Nietzsche a Parmênides e até Beethoven, Kundera explora a perversão que vive em cada um. A tentativa é de trazer um panorama psicológico para justificar as ações tomadas pelos personagens. Mesmo conhecendo traumas de infância e sonhos perturbadores, a empatia pode ser um desafio para o leitor: a humanidade no íntimo dos personagens os leva a tomarem decisões maldosas e destrutivas.
Para Tomas e Tereza e para Sabina e Franz, os opostos se atraem. Essa dualidade é constantemente explorada na obra com questões como traição-fidelidade, liberdade-opressão, destino-coincidência, força-fraqueza; e culminam, ao fim, na oposição entre leveza e peso. Tabus como a poligamia e a liberdade sexual da mulher são explorados com surpreendente fluidez, principalmente quando se leva em consideração que o livro se passa nas décadas de 1960 e 1970.
“Nunca se pode saber o que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-las nas vidas posteriores. […] É isso que leva a vida a parecer sempre um esboço. No entanto, mesmo o esboço não é a palavra certa, pois um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro”.
— Trecho do livro A Insustentável leveza do sir
A sétima e última parte, O sorriso de Kariênin, emociona ao abordar o cachorro de Tereza e Tomas, Kariênin, nome dedicado ao personagem de Tolstói. O cachorro é considerado um personagem, com sentimentos e até peculiaridades, como o fato de sempre comer um croissant no café da manhã. O livro questiona profundamente se os animais têm alma, trazendo uma reflexão muito pertinente ao mundo atual. Kundera, ao exaltar o amor dos animais, traz a reflexão sobre temas como vegetarianismo, abusos e maus tratos aos animais, e sobre a dominação dos animais pelos homens.
A hipocrisia também é abordada no livro, que critica tanto o regime soviético quanto o mundo capitalista, que, na visão do autor, abandonou os tchecos e se limitou a demonstrações teatrais de apoio. Isso é mais visível por meio de Franz, suiço que vivencia a hipocrisia do homem europeu em uma viagem ao Camboja. Mesmo com suas semelhanças ao contexto de Franz, o autor parece se considerar isento dessa crítica.
A insustentável leveza do ser é atual não só nas questões das quais trata, mas também como as aborda. Personagens complexos, dinâmicos e falhos nos transportam ao mundo interior do livro, onde filosofia e amor se misturam em uma só coisa: a vida humana.