O que seria de uma boa história sem um “bom” vilão? É muito comum que estes antagonistas tenham um papel central no desenrolar da trajetória, seja do herói ou da princesa: atrapalhar, de alguma forma, qualquer que seja o plano do protagonista por certo motivo específico. Mesmo envolvidos em tantos confrontos com os personagens com quem simpatizamos e torcemos pela vitória no final do filme, os vilões parecem despertar um grande fascínio no público.
Nos últimos anos, uma série de longas que abordam o passado desconhecido de vilões icônicos começaram a surgir e a ganhar o coração das pessoas. O filme Malévola (Maleficent, 2014), por exemplo, foi a película de maior sucesso da atriz que dá vida à personagem, Angelina Jolie. A produção arrecadou mais que o clássico Sr. e Sra. Smith (Mr. and Mrs. Smith, 2005), obra que Angelina protagoniza ao lado de Brad Pitt. Ainda no ano passado, a Disney apostou muito em outra produção com a mesma proposta, Cruella (2021), que já se circunda de rumores de uma possível continuação.
O Cinéfilos mergulha, agora, no contexto de alguns desses filmes para explorar os motivos e a origem da vilania destes personagens, o porquê de causarem tanta curiosidade nas pessoas e as mensagens que essas produções procuram passar.
A maldade de Malévola
A maldição rogada a bebê Aurora (Elle Fanning), na qual a princesa, em seu aniversário de dezesseis anos, furaria o dedo numa roca que a faria cair em um eterno sono profundo do qual só despertaria com um beijo de amor verdadeiro, vai muito além de uma mágoa por ter sido a única fada do reino a não ser convidada ao batizado da criança.
De acordo com a nova visão da história retratada no live-action de 2014, Malévola se ressentia, na verdade, com o pai de Aurora, o rei Stefan (Sharlto Copley). Os dois viveram um romance na juventude durante um período de conflitos entre o reino dos humanos e das fadas. Com a possibilidade de ser coroado o monarca, Stefan arranca as asas de Malévola para vingar o reino dos humanos e é presenteado pelo rei Henry (Kenneth Cranham) com o trono.
Para se vingar de seu antigo amor, Malévola decide afetá-lo por meio da pequena princesa, lançando a ela a famosa maldição que, segundo a fada, nunca seria quebrada pois a vilã não acreditava mais na existência do amor verdadeiro após a desilusão vivida com Stefan. Quem seria o vilão da história, então, o pai de Aurora ou Malévola? A visão de ambos os personagens no conto original eram completamente diferentes e foram quase invertidas.
O que se passa na cabeça da Rainha Vermelha
A perspectiva de Tim Burton sobre a famosa Rainha de Copas (Helena Bonham Carter) mostrada em Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, 2010) difere em um ponto da personagem original criada por Lewis Carroll: o tamanho da cabeça. O filme de 2010, por conta da cabeça de Iracebeth (nome verdadeiro da Rainha Vermelha), justifica a obsessão da monarca em cortar a cabeça de todos que a desagradam ao apontar sua insegurança com o que a diferenciava dos outros.
Com essa nova versão, no entanto, outras lacunas são abertas sobre a personagem, como a origem do tamanho de sua cabeça e o motivo do conflito inicial entre a tirana e sua irmã Mirana (Anne Hathaway), a Rainha Branca. Estas perguntas são respondidas em Alice Através do Espelho (Alice Through the Looking Glass, 2016). Tudo começa com uma briga entre as duas irmãs, na qual Mirana coloca a culpa de toda a confusão em Iracebeth. A caçula é protegida pela mãe, e a garota de cabelos vermelhos, aborrecida com a situação, foge de seu castelo e bate a cabeça, a qual começa a crescer na mesma hora.
Durante a coroação da Rainha de Copas, a coroa se quebra por não caber na cabeça da primogênita e causa uma explosão de risos em todos os presentes na cerimônia. A situação a deixa enfurecida e, nesse momento, sua cabeça cresce ainda mais (o que ocorre todas as vezes em que se irrita), o que traz vergonha à família, que decide coroar Mirana no lugar. Novamente, como em Malévola, a personagem boa é quem causa um grande dano na vida do futuro antagonista. Nesta versão, ainda, é levantada a reflexão do papel da sociedade no julgamento a todos que são diferentes e as consequências que estes preconceitos trazem.
Por trás da maquiagem do palhaço vilão
Não há como negar que o filme Coringa (Joker, 2019) ganhou enorme destaque e relevância desde que foi lançado. De suas onze indicações no Oscar 2020 à referência na redação da edição do Enem 2020, o longa é lembrado pelo impacto causado por seu modo de abordar temas sociais e pela aclamada atuação de Joaquin Phoenix, que interpreta Arthur Fleck, o temido Coringa.
Ao mostrar o protagonista, normalmente intimidante, como um comediante fracassado, com problemas financeiros, familiares e de saúde mental, a imagem do vilão ganha mais profundidade. A doença que o faz rir descontroladamente, os transtornos mentais que ele não pode tratar por falta de dinheiro e posterior corte do auxílio do governo, o isolamento e a humilhação que sofre diariamente por não conseguir se inserir socialmente são os motivos da vilania do palhaço.
A produção gera um conflito no próprio público, o qual compreende as motivações de Arthur e se revolta junto com o personagem, o qual, mesmo assim, não deixa de ser aterrorizante e perturbador. A essência do anti-herói se mantém, mas também cria certa antipatia em relação a um personagem que antes era apenas uma vítima: o pai de Batman, Thomas Wayne (Brett Cullen).
Os dois lados de Cruella
Uma das vilãs mais odiadas também teve sua origem explicada no novo live-action da Disney. Cruella acompanha a infância da menina Estella (Tipper Seifert-Cleveland), uma garota genial e ousada que sonha em ser estilista e, por sua atitude rebelde e contestadora, é apelidada de Cruella por sua mãe (Emily Beecham).
Após uma perda familiar, Estella foge e cria uma forte amizade com dois pequenos ladrões, Jasper (Joel Fry) e Horácio (Paul Walter Hauser), com quem passa a viver. Com o tempo, a garota se aperfeiçoa ainda mais na área da moda e, ao ter uma oportunidade de emprego na loja de roupas da renomada e arrogante fashionista Baronesa Von Hellman (Emma Thompson), Cruella (Emma Stone) se destaca e começa a trabalhar desenhando vestidos para as coleções de sua chefe.
Um conflito é instaurado entre as duas personagens quando uma passa a tentar superar a outra. Von Hellman, ainda que inovadora, se mantém firme as tradições de seu ramo, enquanto Cruella quebra todas as normas ao mostrar suas criações ao mundo de forma transgressora e chocante, abalando totalmente o mundo da moda. Mais uma vez, a vilania da história é entregue a outra personagem, a Baronesa, responsável por despertar o lado mais cruel de Estella. A reflexão também surge ao mostrar como pessoas questionadoras são mal vistas e o empecilho que o monopólio e a tradição podem representar na construção de algo novo e diferente.
O vilão dentro de nós
Mas por que tantos filmes exploram esses personagens? E por que muitos gostam tanto de assistí-los? Freud explica! Em entrevista com Renato Tardivo, mestre e doutor em Psicologia Social da Arte pela USP, o psicólogo contou que, de acordo com as obras do pai da psicanálise, todos possuem dentro de si o perverso e a vontade de transgredir as regras. Porém existem elementos que impedem essa vazão. “O que acontece ao longo do desenvolvimento sadio, ‘normal’, são as interdições que a cultura coloca, os limites que a relação eu-outro traz, tudo que temos que abrir mão em nome de um projeto de cultura, de civilização. Então os sujeitos acabam se submetendo à lei e reprimem ou recalcam essa demanda pulsional”.
Os vilões, ao contrário, não se submetem às regras culturais impostas. Eles fazem o que desejam sem se importar com os impactos negativos que suas ações podem trazer. “Os vilões são o sonho de consumo das pessoas normais”, diz Tardivo. É por isso que esses personagens despertam tanto interesse do público, o que faz com que filmes que abordam mais a fundo essa temática obtenham tanto sucesso.
Izabelle Bandurski, estudante e grande consumidora de cinema, apontou que o que mais faz com que simpatize com os vilões é exatamente o fato de não terem escrúpulos e simplesmente fazerem o que querem. “Eles são muito irônicos, são muito sarcásticos ou agem muito calculadamente, planejando muito, que é o que faz nos apaixonarmos [pelos personagens]”.
O que esses filmes têm a nos oferecer?
Essas produções, além de suprir um pouco das demandas pulsionais que todos possuem sem causar maiores danos, humanizam seus antagonistas. Eles são retratados como pessoas com suas próprias histórias e traumas. Na maioria desses filmes, a sociedade que cerca esses personagens é que provoca esses traumas e os marginaliza. Surge, então, um questionamento do maniqueísmo, essa divisão simplista entre bem e mal, presente em tantas histórias. “Isso é importante, não no sentido de justificar ou autorizar a concretização desses gestos, mas de trazer essa complexidade de que somos feitos, de que somos tecidos, de que somos construídos.”, explica o psicólogo.
Esse tipo de reflexão é um dos fatores que mais agrada Bandurski quando se fala de filmes que abordam a origem do protagonista. Fazer com que muitas figuras sejam apresentadas de maneira diferente e com outras perspectivas que não sejam meras reduções a estereótipos de vilão, mocinha e herói, explora bem mais a fundo as emoções e o caráter dos personagens que, no fundo, não são tão diferentes de nós quanto pensamos.