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A saga dos peixes que estão virando humanos

De uma forma nada óbvia, ela te explica como nossos hábitos transformam os peixes em seres tão similares aos humanos

Por Alessandra Ueno (aleueno@usp.br) e Bárbara Bigas (barbaraebigas@usp.br)

A sala barulhenta e agitada naquela segunda-feira de outubro tinha apenas uma razão: a apresentação do trabalho de ciências. Nela, os alunos teriam a oportunidade de desenvolver um tema da escolha deles, desde que fosse uma tese bem elaborada e aprofundada. 

O professor Dimas, responsável pelo projeto, foi criticado pelos demais colegas pelo nível de exigência que ele visava cobrar de meros alunos do ensino fundamental. No entanto, Dimas estava confiante: acreditava que seus alunos pudessem trazer temas interessantíssimos, a partir do momento que fossem estimulados a isso. Sua escuta atenciosa no pré e pós aula já havia flagrado alunos falando de assuntos envolvendo viagem no tempo, galáxias inexploradas e espécies marítimas desconhecidas. 

Foi em meio a esse fervor que Luly entrou na sala e sentou silenciosamente em sua cadeira. Naquele dia, ela estava vestindo uma calça cargo azul escura, tênis pretos e uma camiseta branca, com os dizeres “Filho de peixe, peixinho é”, em roxo. Sua falta de presença não combinava em nada com a grandiosidade daquilo que sairia de sua boca em poucos minutos. 

Dimas fez a chamada como sempre, na verdade com uma certa rigidez, já preparando os alunos para a seriedade na apresentação dos trabalhos. Ao chegar no nome de Luly, o professor nem levantou os olhos, apenas escutou um baixo “presente” e confirmou a presença. Esse foi um grande erro do professor ou, quem sabe, até tenha sido bom. Se ele tivesse visto a camiseta da garota, teria sido, pelo menos, um pouco preparado para o que viria a seguir. 

Por Luly ser a última da chamada, ela seria a primeira a falar. Dimas estava de costas escrevendo “Seminário de Ciências” na lousa, mas já pedia que a aluna começasse a introduzir o trabalho.

A menina respirou fundo, observou a sala, notou que tinha a atenção de todos os colegas voltada para si e disse:

— Os peixes estão se tornando humanos!

O professor nem terminou de escrever a data na lousa, deixando apenas o dia e parte do mês, e virou para encarar a menina, cheio de curiosidade e dúvida. Luly já entrava em desespero ouvindo as risadas dos colegas de classe e também algumas perguntas do tipo “Eles terão pernas? Peixes vão poder dirigir carros?”. Foi quando Dimas, com sua autoridade, deu início a real apresentação do trabalho: 

— Por que os peixes estão se tornando humanos, Luly?

Em meio ao burburinho e pessoas apontando indiscretamente para sua camiseta, Luly finalmente iniciou sua explicação:

— Peixes não estão virando literalmente humanos. Eles ainda nadam, reproduzem em uma quantidade inimaginável para a nossa espécie e ainda dormem de olho aberto. Mas nós humanos estamos oferecendo nossa pior parte a eles. Em um estudo publicado no Journal of Experimental Biology — (Dimas abriu um sorriso de canto pela criatividade do tema e pronúncia do inglês um tanto quanto fofa da garota) — comprovou-se que a metanfetamina consumida pelos seres humanos, quando descartada nos esgotos e em cursos d’água, pode ser absorvida por peixes. Nesse estudo, os pesquisadores encontraram resquícios da substância no cérebro da truta-marrom. 

— Mas Luly, nem todo ser humano usa metanfetamina. Como esse pode ser um problema de tanta relevância? — Questionou um colega. 

— Só completando, a mesma dependência que acomete alguns seres humanos também acomete os peixes que são expostos à substância. O mesmo grupo de pesquisadores testou a atividade desses peixes em águas sem a substância e com a substância. Ficou comprovado que os peixes se “acostumaram” à água que continha a droga, tal qual uma pessoa que desenvolve uma dependência química. Um claro sinal dessa abstinência observada pelos pesquisadores foi a diminuição da movimentação dessa espécie de peixe, evidenciando um estresse pela falta da droga. 

A menina falava ininterruptamente, com os olhos sempre brilhando por um esclarecimento que parecia ser muito novo para ela também.

— Como você disse, nem todo ser humano usa metanfetamina, mas, com certeza, a maioria usa pasta de dente, sacos de lixo, embalagens de plástico, carro. Os peixes não estão somente se tornando “dependentes químicos”, eles estão se tornando tão poluídos quanto nós! — Luly prossegue eufórica.

Nessa hora, a classe inteira já havia esquecido dos seus próprios trabalhos, todos curiosos para saber mais e poder chegar em casa e contar para os seus pais o que haviam aprendido. Dimas analisava com cuidado os dados fornecidos pela menina e se impressionava com a capacidade criativa dela em traçar um paralelo tão… impressionante entre humanos e peixes. 

— Luly, é um fato que poluímos o meio ambiente, mas por que nós estaríamos “poluídos”? — Dimas direciona a pergunta à garota e, mesmo já sabendo a resposta, gostava de observar o potencial de seus alunos em ação.

Luly sabia responder o que o professor perguntou. Ela passou a noite, parte da madrugada, o caminho de casa até a escola e antes de tocar o sinal lendo e relendo suas anotações. Estava na ponta da sua língua.

— Nós estamos poluídos porque temos microplásticos até no nosso sangue. Os microplásticos são pedaços bem, bem, bem pequenos de plástico. Eles podem ser encontrados em pastas de dente, maquiagens e até em perfumes. Eles entram no corpo pela boca ou pelo nariz — disse Luly indicando esses locais com a mão.

— Os peixes têm boca e brânquias. Os microplásticos também estão nos oceanos, já que são fruto da poluição que produzimos, e são confundidos com comida pelos plânctons, que servem de alimento para os peixes, que são nosso alimento. É uma cadeia em que todos acabam poluídos de uma forma ou de outra. Inclusive, nossos filhos também estarão na mesma cadeia mesmo antes de nascerem! Foram descobertos microplásticos na placenta humana e, logo menos, podemos esperar vê-los nos fetos! — a menina exaspera.

— E não acaba por aí. Essas semelhanças não são apenas “passivas” ou indiretas, como no caso dos microplásticos. Vocês sabiam que peixes também se comunicam? Um estudo publicado na revista Nature Communications revelou que várias espécies animais, envolvendo um peixe natural da América do Sul, desenvolveram sons que estabelecem uma comunicação direta entre eles. Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores foram fundo e traçaram uma árvore filogenética com cerca de mil espécies de vertebrados para analisar a evolução dessa comunicação sonora. A conclusão foi que essa comunicação existe há pelo menos 400 milhões de anos. Talvez, seja conveniente pensarmos se nós é que não nos parecemos com eles… — Luly foi interrompida pelo despertador do professor, indicando que seu tempo de apresentação havia chegado ao fim. 

Estupefatos, Dimas e os demais estudantes entreolharam-se, desejando ouvir mais sobre o que a garota tinha a falar, ao mesmo tempo que sabiam que precisavam se preparar para a próxima apresentação. Dimas voltou à sua mesa, sacou seu caderno de anotações verde-limão e abriu na página onde estava seu programa de aulas, pensando que deveria lecionar sobre peixes o mais rápido possível naquela turma. 

*Imagem da capa: Reprodução/Public Domain Pictures

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