Por Claire Castelano (claire.castelano4@gmail.com)
Acordou cansado. Fez a barba, manteve seu bigode. Tomou banho, vestiu a calça do uniforme, um cinto gasto e seu suéter cinza. Fazia frio em São Paulo. Desceu as escadas do sobrado e saiu de casa. Andou até o final da rua com passos largos que, apesar de rápidos, eram casados. Entrou na padaria e comprou pães. Saiu cabisbaixo. Até aquele momento fizera tudo que sempre fazia, porém, não seguiu pelo caminho de volta. Andou mais um quarteirão, deu uns trocados a um florista que lhe entregou lírios alaranjados.
Eram lírios de aniversário. Mesmo fugindo da rotina dos dias comuns, ele emergia na rotina dos dias especiais. Seguindo a velha tradição que criara, ele havia saído para comprar as flores da aniversariante. Era casado há quase 50 anos e, como bom virginiano, comprara quase 50 lírios alaranjados.
Voltou para casa. Sua esposa encontrou na cozinha. Inclinou-se e a cumprimentou. Fora mais caloroso que nos dias comuns e menos entusiasmado que nos dias especiais. Como se não esperasse, ela agradeceu as flores.
Ele tomou o café preto que virara parte de ser metroviário. Ajeitou sua mala, assistiu ao noticiário e saiu.
Chegou na Estação Tietê, deixou sua mala no armário e pegou a carteira. Seu turno começava às 14 horas, mas, como sempre, ele havia chegado adiantado. Mantendo sua metódica rotina, ele saiu para almoçar. Entrou no familiar restaurante self-service que ficava a uma quadra da saída do Metrô, montou duas marmitas quase gêmeas e voltou para seu posto.
Ao chegar no escritório, foi direto para o refeitório. Era um lugar com duas longas mesas, paredes brancas, uma TV, um rádio, uma pia, três micro-ondas, uma velha geladeira e sem janelas. Deixou um dos potes na velha geladeira e colocou o outro sobre a mesa. Ligou o rádio, sentou e começou a comer.
Estava quase na metade de sua refeição quando dois outros funcionários adentraram o refeitório. Um deles mencionou algo sobre um dia estressante. O outro falou sobre problemas na circulação dos trens da linha azul. E o metroviário, com faces vazias, prestes a comentar algo sobre usuários infelizes, foi cortado pelo sussurrar do rádio: “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego…”. Houve indigestão, mas era crônica.
Acabou seu almoço, tomou outro café preto e foi para o vestiário colocar o resto do uniforme. Abriu seu armário, pôs a camisa e pendurou o crachá. Carregava, no bolso da camisa, um broche que ganhara pelos anos de trabalho no Metrô. Pendurara 40 broches como cheirara 50 lírios.
Começara seu horário. Entrou na sua sala, que era acoplada a de seu chefe, sentou-se na sua mesa e começou a organizar a planilha do turno… Atrás do curvado e cansado metroviário havia um calendário, atrás do calendário uma parede, atrás da parede o seu chefe. O calendário era do sindicato. Aquele funcionário corcunda nunca havia participado de uma greve, mas marcava os dias em vermelho. Nunca quis participar de uma greve, mas não era contra a greve. Nunca pôde participar de uma greve, mas não sabia que era coagido. Nunca participou de uma greve. E era como se o rádio, possivelmente ainda ligado no refeitório, ecoasse pelos corredores: “É que o anzol da direita fez a esquerda virar peixe…”.
Ainda curvado e com os óculos na ponta do nariz, ele designava seus funcionários para a bilheteria ou para o fluxo. Parecia um exercício metódico e puramente mecânico, mas em algum momento seu braço parou. Pegou uma borracha e mudou uma de suas escolhas. Por mais metódica que fosse aquela tarefa, lembrou-se do funcionário que havia reclamado de dor nas pernas e colocou-o para vender bilhetes.
Terminou sua rotineira planilha e aguardou. Supervisor de Estação era seu cargo, mas sentia-se como o pai da estação. Assim, cada filho passou em sua sala e, como se pedissem a benção, marcavam o ponto e partiam para suas designações.
Logo que acabara de receber seus funcionários, o telefone tocou. Seu semblante deixou de ser sisudo para se tornar desgastado. Ele desligou o telefone, inclinou-se para o computador e começou a montar uma documentação. Enquanto enviava os arquivos para impressão, criticava mentalmente as medidas do novo governo….
Fora informado que deveria abaixar a tarifa (preço do bilhete) para R$ 3,50 e que, provavelmente, mais tarde, teria de baixar para R$ 3,00. O Metrô estava com falta de troco. Essas mudanças o inquietavam, pois sabia que isso irritaria seu chefe, sabia que os usuários iriam reclamar e tentar burlar o sistema para poder comprar mais de um bilhete por vez. O que mais o irritava, porém, era saber que todo o transtorno causado no seu dia de trabalho era culpa do governo interino. Calado e sisudo, se recordava muito bem do noticiário da manhã falando sobre os cortes de verba para a casa da moeda, da repórter falando que isso era uma agressão direta a produção de moedas.
Mesmo incomodado, ele lidou com a situação. Imprimiu os protocolos e os cartazes para a bilheteria. Seguiu as ordens e esqueceu da raiva contra o governo. Preenchendo, mais uma vez, o silêncio de quem quer falar, o rádio cantou: “Hoje você é quem manda. Falou, tá falado. Não tem discussão. A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão, viu…”.
Acabada a situação extraordinária manejada de forma rotineira, o metroviário seguiu com cronograma. Saiu de sua sala e começou a perambular pela estação. Queria averiguar que suas designações estavam sendo cumpridas e garantir a normalidade.
Andara pelas plataformas, passara pelas catracas, conversara com os seguranças… Achou tudo tranquilo e lembrou-se de que faltava a bilheteria. Foi conferir, parecia estar tudo bem por lá, não havia muita fila e, apesar da restrição a um bilhete, os usuários pareciam felizes em pagar menos de R$ 3,80.
Saiu da bilheteria e caminhou em direção à entrada. No percurso avistou um rapaz que murmurava algo toda vez que alguém passava por ele. O metroviário já sabia, nem bem se aproximou e já sabia o que esperar. Suspirou. Manteve seu ar sisudo e apertou os passos na direção do rapaz. Quando já gritava, percebera que estava certo, era um ‘marreteiro’. Estava vendendo o bilhete que comprara por R$ 3,00 por R$ 3,50 e, provavelmente, conseguiria vender, pois os usuários que entravam desconheciam a mudança de tarifa.
Ele continuava gritando e seus gritos pareciam doer mais nele do que no rapaz. O vendedor pareceu tentar se justificar, mas, mecanicamente, o metroviário retirou os bilhetes e saiu andando em direção ao seu posto. Entrou na SSO e fechou a porta. Não percebeu que o ‘marreteiro’ o seguira aos berros de “injustiçado”.
O cansado e sisudo funcionário foi subitamente arrancado do seu estado de programação quando o rapaz, em estado de fúria, chutava e esmurrava a porta até que os seguranças o pararam. Em uma mistura de espanto e serenidade rotineira, o metroviário seguiu o protocolo. E, mesmo com uma inquietação, ele chamou a polícia.
Assistiu perplexo o vendedor ser levado. Por um instante se questionou… O que tinha alguém que arriscava tudo por um pouco mais de 10 reais em bilhete?… Ele quase se sentiu culpado, mas essa culpa era crônica.
Lidou com a papelada que o ocorrido gerara e voltou para sua ronda rotineira. Respondeu as perguntas que os usuário faziam quase que metodicamente. Seu braço cansou de tanto indicar a saída para rodoviária.
Chegara a hora da janta. Voltava para o refeitório com os passos cansados, passando pelos corredores brancos de forma religiosa. Abriu a velha geladeira e pegou a marmita que havia guardado. Ligou o rádio e sentou no mesmo lugar que sentara no almoço. Estava quase na metade da sua refeição quando foi chamado para resolver um problema da via. Deixou a comida e correu…
Voltava cabisbaixo. Resolvera o problema. Sentou, desistiu de comer, teve sua costumeira indigestão. Ficou ali, sentado, desistira de comer, mas ficou ali. Estava com o seu ar de culpa. Lembrou-se de quando, há uns 5 anos, reclamara de ficar 2 horas na linha tentando tirar um cachorro. Sentiu-se um pouco culpado. Fora chamado para retirar o corpo de um cão atropelado e, certamente, preferiria ter sido chamado para perseguir um cachorro travesso. Havia alguns anos que o regulamento do Metrô mudara e ele comemorara ao saber que não tinha mais obrigação de tentar salvar os animais que entrassem na via. Comemorara e, naquele momento, arrependeu-se.
Depois de desistir da janta, voltou para sua sala. Ficou mais uma ou duas horas por ali. Terminou a papelada do turno. Organizou sua gaveta. Liberou os funcionários. Foi para o vestiário, colocou seu suéter cinza e deixou seu broche de 40 anos, como quem deixa uma aliança, no armário. Pegou a mala, suspirou como um marido que deixa sua casa para ir trabalhar e saiu. O rádio do refeitório ainda estava ligado, certamente ele se esquecera de desligar. E, como um cônjuge, as paredes do Metrô ecoaram: “Meio dia eu só penso em dizer não, depois penso na vida para levar e me calo com a boca de feijão.”