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Torcedor? Não, sócio

Por Camilla Freitas Eu sempre gostei muito de andar de ônibus. Pelo menos onde morava, o caminho até a escola era árduo, de muitos quilômetros, e foi nessa estrada que aprendi a apreciar essa arte que realmente me deslumbrou. Foi nesse transporte público que degustei altas leituras, algumas muito nobres, outras nem tanto; ouvi diversas músicas, …

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Por Camilla Freitas

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Cena que se tornou comum nas novas arenas (Imagem: Reprodução/Google)

Eu sempre gostei muito de andar de ônibus. Pelo menos onde morava, o caminho até a escola era árduo, de muitos quilômetros, e foi nessa estrada que aprendi a apreciar essa arte que realmente me deslumbrou. Foi nesse transporte público que degustei altas leituras, algumas muito nobres, outras nem tanto; ouvi diversas músicas, nem todas com a mesma emoção, e confesso que muitas com certas repetições em devaneio; tirei alguns e bons cochilos – quem nunca o fez?; mas o mais adorável dessas horas sentada naqueles desconfortáveis bancos era o da conversa paralela com desconhecidos. Esta, muitas vezes fática, recentemente tornou-se prolixa, e da melhor maneira possível.

Não foi indo para a escola que encontrei o “Seu” Antônio, mas foi em um ônibus que ligava o centro da cidade de São Paulo à Zona Oeste. Ele se sentou ao meu lado com seus 85 anos e uma bengala de madeira bastante elegante e começou a falar, assim como quem nada vê de mais nisso, sobre a notícia que eu lia no jornal: Corinthians é vaiado em sua volta ao Pacaembu. Essa não era exatamente a manchete (minha memória, com certeza, é mais curta que a dele), mas esse era o tema. “Corinthians vaiado, isso é um absurdo”, começou ele. Como uma jovem do século XXI, assustei-me com o comentário do senhor ao meu lado; não esperava um início tão informal de uma conversa naquele momento. Então ele me indagou: “Mas não tá parecendo a torcida do São Paulo?”. Nesse momento, não contive o riso. Não porque eu seja são-paulina, não é isso – é que ele falava numa informalidade tão ingênua e ao mesmo tempo tão sábia que não pude conter a risada tímida de quem sabe os rumos que aquele papear vai seguir.

Foi assim que conheci o palmeirense mais indignado com o comportamento averso da torcida do rival que eu já pude ver nesses poucos anos que tenho de vida. “Seu” Antônio é descendente de italianos e mora no bairro do Bixiga, onde uma massa de torcedores da Sociedade Esportiva Palmeiras se concentra. Não poderia ser mais alviverde. Mas não era do Palmeiras que ele estava interessado em me falar, não mesmo. Eu, ingênua novamente, pensei que fosse do próprio Corinthians, mas me enganei. O time de Itaquera foi usado apenas como um periférico para iniciar um assunto que tanto o indignava: as torcidas.

“Eu sou do tempo de 100 mil torcedores no Morumbi, e que cantavam, pulavam, hasteavam bandeiras, soltavam fogos, ligavam sinalizadores, e apoiavam, apoiavam o time”. Então começou a me contar sobre o jogo que mais o emocionou em sua vida: Palmeiras e Santos, no Morumbi com mais de 127 mil pessoas, em 1977, que puderam ver a vitória do verde pelo placar de dois gols a zero. Para ele, mesmo que seu time tivesse perdido, ainda assim esse seria o momento mais emocionante que ele pode associar ao futebol. “É tão bonito ver o estádio cheio, não sei se você vai poder entender o que é isso”.

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A torcida corintiana lotando o Morumbi: estádio costumava receber mais de 100 mil pessoas (Imagem: Reprodução/Google)

E foi nesse momento que eu percebi que ele tinha razão. Eu realmente nunca poderei ver um estádio com mais de 78838 pessoas (lotação máxima do Maracanã) num jogo dos campeonatos nacionais, imagine só com mais de 100 mil pessoas. O estádio é outro, muitos nem estádios são mais, agora são denominados arenas, e estas não comportam mais toda essa gente, nem mais o tipo de pessoas que antes comportava. Além da lotação, tive realmente a consciência de que o público é outro, os cantantes e pulantes são mínimos, e restritos às torcidas organizadas – que com o auxílio das diretorias e do governo dos estados estão sendo cada vez mais reprimidas e oprimidas tanto no meio do futebol como fora dele. Quem vai ao estádio agora (opa, desculpem-me: à arena) paga mais de 100 reais em um ingresso. Muitos deles, como foi o caso dos corinthianos na última rodada do primeiro turno do Campeonato Brasileiro desse ano, para ver um jogo ruim, com um time que parece não compreender a grandeza da instituição que representa.

E por que isso nos aflige tanto, a mim e ao “Seu” Antônio? Porque isso deixa o futebol ainda mais comercial, ainda mais produto. Usando as palavras do meu mais novo amigo: ainda mais distante. O novo torcedor agora é sócio, e nesse caso, não está ali apenas para torcer – quando o faz -, ele passa a ter o direito ainda maior de cobrar, e cobrar caro, quando o time não o agrada. Esse torcedor, citando novamente a voz da experiência que me acompanhou em meu trajeto à Zona Oeste, agora está mimado, e se sente no direito de trocar um apoio por uma vaia, até porque ele não pagou um absurdo no ingresso para ver um espetáculo ruim. E é aí que mora o problema.

O nosso futebol não é espetáculo. É paixão. Eu escolho ir ao estádio para me emocionar. É o time que eu amo que entra em campo, é o escudo de quem está comigo desde a infância que eu beijo, é o hino que eu vou ensinar aos meus filhos que eu canto, e não há nada mais bonito no esporte que todo esse amor. Até para redigir me emociono, e olha que minha torcida é muito criticada pelo comodismo e pelas “cornetadas”, mas a emoção é imensa. Seu Antônio também se emocionou relatando-me suas histórias, de quando ia aos jogos junto com a bateria palmeirense de seu bairro, ou de quando se juntava com uma turma (“e êta turma grande”) nos bares do Bixiga para assistir aos jogos do Palmeiras, e de quando levou seus filhos parar torcer pela primeira vez. Esse é o verdadeiro papel de quem torce: emocionar-se por torcer.

Não sei ao certo qual o futuro das torcidas nos estádios. O que sei agora é que a classe média alta já representa mais da metade de todos os torcedores ali presentes (na Arena Corinthians, por exemplo, algo em torno de 85% dos ingressos são destinados aos pagantes mais abastados, enquanto apenas 15% é para o “povo”). O sócio torcedor é quem tem regalias, as bilheterias estão praticamente extintas, as arquibancadas estão reduzidas enquanto o número de cadeiras só aumenta – o tema “Futebol Moderno” se consolidou. O resultado disso, no entanto, é o que vemos com cada vez mais frequência nos noticiários: estádios vazios e torcida mais exigente e menos “torcedora”. Mas, como ouvi no rádio um dia desses, a diretoria dos clubes foi quem optou por essa torcida. Agora, deve aceitá-la.

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