Responsável por reproduzir muitos padrões e esteriótipos, excluindo milhares de mulheres da fórmula “alta, magra e branca”, o mundo da moda e da beleza, ao contrário do que se pensa, pode se ligar ao feminismo e à busca por quebras destes códigos excludentes.
Não se pode ignorar o fato de que tais indústrias e a imposição de barrigas negativas, dietas, pele perfeita e peças do momento afetam o cotidiano das mulheres reais. O jeito como elas se veem no espelho é contaminado por todas essas “regras” ditadas por muitas revistas e blogs de moda. E sabemos que uma mudança profunda está longe de acontecer. A moda ainda se trata muito mais de aparência do que significado.
No entanto, não podemos esquecer que assim como o feminismo, moda e beleza podem significar liberdade: para usar as peças que você quiser e se maquiar do jeito que preferir; para quebrar padrões e ser o que você é; para vestir qualquer número e usar o corte de cabelo que você desejar. Enfim, moda e beleza também podem ser ótimas ferramentas de empoderamento.
O Sala 33 conversou com a jornalista Stephanie Noelle, dona do blog e canal Chez Noelle, sobre como moda e beleza podem se aliar ao feminismo e também como ela vê a representação da mulher na mídia atualmente. Ela participará da III Semana da Jornalismo Júnior, no dia 23 de agosto, na mesa “A mulher no jornalismo”.
Você passou pelas redações da L’Officiel e da Glamour. Como você se descobriu no jornalismo de moda e beleza?
Quando eu entrei no jornalismo eu não queria fazer isso, não era o que eu imaginava que eu fosse fazer. Eu queria cobrir política ou cultura. Mas o meu primeiro estágio foi para fazer um blog de moda numa loja de e-commerce e eu não sabia nada desse mundo. Então eu fiz uma imersão, pesquisei muito e eu comecei a gostar desse universo.
O segundo estágio foi no site do São Paulo Fashion Week e foi lá que eu realmente descobri que eu gostava muito de falar sobre isso, porque era um veículo, na época, em que não se falava só da roupa, mas muito mais do significado e do que aquilo era na sociedade, era um viés diferente do que eu costumava ver nas revistas. Eu tinha uma visão preconceituosa, de ser um assunto fútil, mas quando eu entrei lá convivi com pessoas que tratavam isso de uma maneira muito diferente. Lá eu comecei a trabalhar com jornalismo de moda e também com beleza, e tive a mesma descoberta, levando para um patamar de autoestima e da mulher se sentir bem com ela mesma, tentando fazer algo que não fosse tão ditatorial.
Na Glamour foi completamente diferente, era muito mais de tendência, do que estava nas ruas, de linkar com o consumo. Foi outra experiência, um jornalismo muito mais de serviço e lidando com um público que gosta mais de fórmulas, o que para mim não é tão interessante. Foi lá que eu consegui ver o que eu queria fazer. Eu respeito o jornalismo de serviço, mas eu não estava me encontrando mais neste tipo de jornalismo, que é algo direto, e eu acredito muito mais em fazer as pessoas pensarem e descobrirem por elas mesmas.
Além da carreira de jornalista, você ainda comanda o blog Chez Noelle e o canal do Youtube. Como você adentrou nesse mundo de posts e vídeos?
Quando eu ganhei meu primeiro computador, com 14 anos, eu fiz um blog e desde então eu sempre tive blogs. Eu sempre gostei de escrever na Internet, porque eu sempre gostei de escrever e ali eu tinha uma plataforma.
Quando eu entrei na L’Officiel toda vez que eu fazia uma matéria, eu tinha que cortar muita coisa e meu chefe sugeriu que eu criasse um blog, e todo o extra que eu não podia pôr na revista eu colocaria neste blog. Então eu resolvi fazer, só que eu trabalhava muito e não tinha tanto tempo para atualizar. Foi lá também que eu comecei a fazer os vídeos, porque em dias de fechamento eu passava praticamente a madrugada na redação e foi em um desses dias que eu gravei meu primeiro vídeo. Mas sempre teve essa questão de tempo e o jornalismo na redação sempre foi a minha prioridade, porque é o meu trabalho, é o que paga as minhas contas, é o que me mantêm na vida.
Ambos ficaram sempre em segundo plano, mas depois que eu fiz o meu TCC senti muito mais necessidade de colocar em algum lugar o que eu não estava podendo fazer na revista, a Glamour, na época. Então eu comecei a ser mais presente e escrever mais sobre meus sentimentos, porque eu precisava falar disso em algum lugar. No entanto, desde o ano passado eu comecei a notar que o canal de comunicação que mais cresce é o Youtube e eu sou, antes de tudo, uma comunicadora que quer contar histórias. Por isso eu comecei a olhar para essa plataforma com um pouco mais de carinho. Para mim sempre foi o texto, mas faz parte entender para onde as coisas estão indo e continuar comunicando.
Quais são as dificuldades em conciliar a carreira de jornalista, o blog e o canal?
Primeiro é o tempo, com certeza é o mais difícil de todos.
E também saber não furar o seu próprio veículo. Como eu agora trabalho no Petiscos, que é um site, isso às vezes pode acontecer com mais frequência do que quando eu trabalhava, por exemplo, na Glamour, já que a maneira como eu abordava cada um era muito diferente. Como no Petiscos eu tenho muita liberdade de escrever acaba que o mesmo assunto que eu poderia falar no meu blog eu falo no Petiscos e vice-versa. Mas a minha prioridade sempre é o veículo que eu estou trabalhando.
Depois tem a questão de pensar o conteúdo para cada formato, porque tem um jeito de falar no Petiscos, um jeito de falar no blog e outro de falar no canal. Também tive um pouco de dificuldade em falar sobre os assuntos em vídeo, até por isso eu demorei um pouco mais para falar minha opinião no Youtube. Eu tenho muita facilidade em escrever e pensar como transmitir uma informação em outra plataforma foi uma dificuldade.
E o que te motiva a continuar realizando tudo isso?
Sem sombra de dúvidas são as pessoas que acompanham. Ter o retorno, saber que as pessoas gostam para mim é o mais incrível. Quando eu escrevo no Petiscos e as leitoras falam que aquela matéria foi bem escrita ou fez elas pensarem de alguma maneira, isso me faz perceber que eu estou indo para o caminho certo. É a mesma coisa quando as pessoas comentam no blog ou em um vídeo falando que aquilo mexeu com elas. É o que motiva mesmo a não parar, porque é muito cansativo e desgastante, mas vale muito a pena quando eu vejo que está resultando em alguma coisa que não é dinheiro, porque eu praticamente não ganho dinheiro com o blog, com o Youtube eu não ganho nada, então é esse retorno e o sentimento de que eu estou fazendo alguma diferença no mundo. Quando alguém diz que alguma coisa que eu fiz mudou a vida dela ou fez ela pensar, para mim, é o maior pagamento que eu poderia receber no mundo.
O feminismo está muito presente nos seus textos, assim como nos vídeos. Quando você se descobriu feminista?
Foi quando eu estava fazendo Antropologia e Gênero, na FFLCH. Até então a criação que eu tive em casa foi super feminista, embora minha mãe não fale que seja feminista. Mas eu tive essa criação que foi desconstruída em muitos aspectos, então eu já vinha com essa coisa de fazer as coisas por mim mesma, de não depender de homem, ir atrás do que eu queria e não deixar as pessoas falarem que eu não podia fazer só porque eu era menina. Enfim, todas as vivências que eu tive ao longo da vida foram me moldando. Mas eu achava que eu não podia falar que era feminista, porque eu gostava de moda, trabalhava com moda e era uma época que ninguém falava do feminismo, ainda era um tabu. Quando eu fiz essa aula comecei a perceber que não tinha nada a ver e o fato de você não poder ser feminista porque gosta de moda era só mais um preconceito envolvendo o gênero. Foi nessa época que eu percebi que eu era feminista. Li aquele monte de textos legal, todo dia era uma desconstrução e parecia que cada aula era uma explosão na minha cabeça. E também li um texto da Juliana de Faria, do Think Olga, que era sobre feminismo e moda e tudo foi acontecendo ao mesmo tempo e eu conclui que sim, eu era feminista.
Algumas pessoas, infelizmente, consideram moda e beleza assuntos fúteis, de menor importância. Como tais assuntos podem se aliar ao feminismo?
Acredito que no sentido de ser uma ferramenta de empoderamento, principalmente. Mas eu acho que, na verdade, o fato das pessoas acharem que moda e beleza são assuntos fúteis é justamente porque ele é um assunto visto como feminino, logo é visto como menor.
Fora isso eu acho que falar sobre moda e beleza é um jeito de buscar quebrar padrões, esteriótipos, fazer ser um agente transformador dentro desses veículos que tratam sobre isso, que é algo que lutamos o tempo todo. Não adianta você ser ativista feminista e querer que a mudança de padrões de beleza aconteça de uma hora para outra, porque isso vem da mídia e se não tiver pessoas dentro da mídia que queiram fazer, nada vai acontecer. É muito importante que nós, jornalistas dessa área, estejamos relacionados com o feminismo, buscando a mudança, justamente para as coisas acontecerem na raiz, senão vão ser sempre pessoas que não querem falar sobre feminismo e não enxergam a necessidade dessa quebra de padrões nas revistas.
De que maneira você vê a representação da mulher na mídia hoje?
Nós caminhamos muito nos últimos anos graças à onda feminista que estamos vivendo online e na vida real, então a mídia está tomando mais cuidado ao falar da mulher, porque sabe que vai ter retorno se o negócio for feito de um jeito ruim. Ao mesmo tempo é uma mudança superficial, um medo de ser linchado nas redes, porque na raiz as coisas ainda precisam mudar muito, o que precisa acontecer é uma mudança de paradigma gigantesca. A mulher está vivendo uma representação mais real, mas eu me pergunto se é duradouro ou momentâneo.
Eu também me preocupo um pouco quando é representado um outro tipo de mulher, um outro padrão, quando, na verdade, é preciso se libertar de tudo isso. Para mim esse é o grande ponto do feminismo: você ser livre para ser a mulher que quiser, seja dona de casa ou trabalhadora, mãe ou não mãe, hetero ou bi, seja qualquer coisa. Por isso eu acho que nós temos um pouco de dificuldade de lidar com isso na mídia, acaba virando um outro oposto.
Não é exatamente na mídia, mas um exemplo é a Eleven, de Stranger Things, que é forte e poderosa. Mas eu acho preocupante que todas as personagens femininas que aparecem agora são muito fortes e poderosas, muito donas de si. Isto, óbvio, é incrível, nós nos sentimos muito empoderadas e inspiradas, mas ao mesmo tempo é um outro padrão. Na série, são quatro meninos super normais, cada um de um jeito e a menina é a única que tem poderes sobrenaturais. Ao mesmo tempo que é a personagem mais legal é inatingível, porque ela é sobrenatural, é a representação de uma menina que não existe, de fato. Nós temos dificuldade em aceitar a mulher real, que nem todas as mulheres são de um determinado jeito. É a grande dificuldade que se tem na representação hoje.
Algumas publicações voltadas para o público feminino estão mudando o seu discurso, ou pelo menos tentando, como a ELLE. O que impulsiona essas transformações e qual é a importância delas?
O que impulsiona é justamente o momento que estamos vivendo hoje. Se manter alheio a isso é um tiro no pé, principalmente para as revistas que já são veículo que estão minguando, infelizmente. Se eles continuassem do mesmo jeito que estavam antes, o que já estava indo mal ia fracassar em minutos.
Sobre a ELLE, que faz aquela capa, eu acho que pode beirar a demagogia, porque você é um veículo de mídia, mas que precisa vender. Lógico, a ELLE é uma das revistas de público feminino menos toscas que existem no sentido do tratamento da mulher. Mas eu senti que foi algo muito repentino e você abre a revista hoje e ainda são modelos dentro do padrão. Óbvio, não é que eu queira que pare de ter esse tipo de modelo, porque elas também são um corpo que existe, mas podia ser mais diverso.
É legal você adotar o discurso, mas o que de fato se está fazendo na publicação para fomentar o movimento e a mudança? Não é só embarcar porque está todo mundo falando, não é tão simples assim. Nós estamos falando de um movimento que quer mudar a vida das pessoas. Eu acho a mudança importante, inclusive para o discurso chegar em pessoas que não possuem familiaridade ou tem preconceito, mas é também necessário que nós nos mantenhamos vigilantes para não ser só da boca para fora, superficial e que não vai fazer mudança nenhuma.
No canal e no blog você fala muito sobre empoderamento e autoestima. Como a Internet e as redes sociais têm ajudado na questão da representatividade da mulher?
Existem dois lados, o bom e e o ruim. Ao mesmo tempo que a Internet deu voz a pessoas que não eram ouvidas, que é o grande ponto da Internet, algumas coisas reforçam muito o padrão de beleza e um padrão de vida. Por exemplo, quando você entra no Instagram têm várias meninas lindas e maravilhosas, e você pode até pensar que é filtro, mas geralmente você não pensa nisso. Então acaba sendo criado um outro padrão, não só de beleza, mas de vida.
Ao mesmo tempo que há uma célula de mudança, tem muito de mundo perfeito. Mas é incrível que existam canais como o Canal das Bee e o Afros e Afins, porque há três anos não se ouvia falar sobre esses assuntos, e isso é muito importante. Mas é preciso mostrar, principalmente para as meninas mais novas, que não é preciso pertencer a um grupo e você pode ser o que você quiser. Mas hoje, o “seja o que você quiser” acaba sendo entendido como “seja uma menina descoladinha, com cabelo rosa ou azul, piercing, mostrando a língua na Internet”. Nós já andamos bastante, mas eu não consigo pensar só em um lado bom, ainda há muitas coisas para melhorar.
Por Beatriz Arruda
beatriz.arruda12@gmail.com