Por Luccas Nunes (luccas.nunes@usp.br)
Já fazia cinco anos que eu tinha testemunhado ali na rua, em pleno Vale do Anhangabaú, pela primeira vez essa realidade inumana. Era 2012 e eu estava numa pesquisa de campo para um trabalho de escola, em uma das entrevistas que fiz, conversei com uma moradora de uma ocupação de rua. Suas condições de moradia eram, no mínimo, insalubres.
Uma dezena de barracas, bem precárias, sujas e bambas, aglomeradas de modo a fornecer um teto meio torto e empoeirado para uma quantia igualmente grande de famílias. Ali dentro havia colchões amontoados no chão duro e quente de asfalto e até uma cozinha com um fogão improvisado e umas panelas velhas. Ao longo de todo o “complexo” de barracas, no chão, viam-se algumas tampas de esgoto daquelas de ferro, que ficam na rua.
As barracas eram quase todas brancas ou remendadas, as vezes os dois, era quase como se elas gritassem “estamos sujas; estamos rasgadas; não somos um teto que dê dignidade e conforto a essas famílias”. Elas estavam dispostas de um jeito disforme, o que dava ao aglomerado um aspecto frágil e vulnerável ― eu estava convencido que qualquer chuva mais forte poria tudo abaixo.
A rua também não era um exemplo de plano ― era uma leve subida, o que dificultava ainda mais a integridade das barracas em sua hercúlea tarefa de servir de teto àquelas famílias. As barracas ficavam levemente tortas ― não o suficiente para cair, mas o suficiente para ficarem com um desnível preocupante para o equilíbrio geral. Mas para eles, aquele era seu lar: não só um teto, mas também parte do seu fazer político.
Eles ficavam em frente a alguma edificação importante ― talvez o teatro municipal? O Shopping Light? A galeria do rock? O fato é que não lembro, e esse é exatamente o problema: tornamo-nos insensíveis e anestesiados contra a agonia diária da vida alheia.
Ouvi relatos hediondos, como o de uma criança que, por falta de condições de higiene, dormia suja e com restos de comida e tinha, por isso, os cantos de sua boca roídos por ratos. Até o mais insensível e radical dos “cidadãos de bem” que se colocam em oposição às ocupações habitacionais se sensibilizaria vendo aquela criança. Mas mesmo assim eu esqueci. Joguei o sofrimento deles para o segundo plano. Não, não para o segundo, para o último.
Mas cinco anos depois, em julho de 2017, volto ao berço da minha consciência de classe. Onde conheci o que verdadeiramente significa ser esmagado de cima para baixo pelo Estado e pelo capital sem sequer ter sua causa exposta e defendida ― sofrer com o pior tipo de morte: a social.
Naquele dia amanheceu frio e nublado, os termômetros marcavam 10 graus. Eu e Emily, uma amiga, tínhamos acabado de chegar ao metrô República, da linha vermelha. Saímos pelas catracas e fomos em direção à Praça Ramos de Azevedo ― escolhemos descer a pé para poder aproveitar de todo o ar cosmopolita que a cidade tem. Pessoas das mais diversas cores, idades, origens e ocupações, todas compondo o ar cultural que tem o coração da cidade.
Não demoramos mais do que alguns cinco minutos para chegar ao nosso destino, e chegando lá não nos alongamos muito, também, para que encontrassemos ocupações como aquela de 2012, só que menores. Confesso que senti apreensão em abordar seus moradores: não sabia quais seriam suas reações. Não que eles fossem naturalmente agressivos como que por uma lei determinista ou coisa que o valha, mas o ar cinza da cidade mais citadina do Brasil me inspirava mais curiosidade do que segurança.
Decidimos dar uma volta pelo lugar, que tinha diversas barracas: aqui; ali; acolá. Por onde quer que se olhasse era possível vê-las: amarelas; pretas; azuis e de toda a sorte de cores, algumas rasgadas, outras com aspecto novo. Andamos um pouco e subimos uma praça onde cantavam alguns bolivianos em um espanhol muito rápido e alegre, acompanhado de uma flauta. Mas em meio a esse mar de informações das mais diversas e sinestésicas, o que me chamou a atenção foi um par de senhores concentrados em algo que estava entre eles, apoiado numa mesa.
Aquela cena me chamou muito a atenção, então me aproximei. Eram cinco os integrantes daquele retrato urbano: dois homens, negros, já aparentando estar nos seus sessenta para setenta anos. Eles sentavam em bancos e tinham, entre si, uma mesa improvisada que apoiava um tabuleiro tão improvisado quanto, que usavam para jogar damas. Outros dois homens estavam em pé, aos lados da mesa. Um era branco e alto, trazia consigo um cabelo ralo e uma barba com tons de ruivo. O outro era baixo, negro e tinha dreads que caíam-lhe até os ombros, mas barba não tinha.
Eles conversavam calmamente com os jogadores ― talvez sobre o Brasileirão, talvez sobre o Planalto Central, talvez sobre as reformas na legislação polonesa, quem garante que não? O último integrante da pintura era um cachorro. Com o pelo preto limpinho, ele não era gordo, mas passava longe de estar com aparência doente; procurava efusivamente no bolso do dono, o homem baixo de dreads, uma bolinha de tênis verde.
Senti que eles seriam amistosos e resolvi me aproximar mais e, meio tímido, puxar conversa. “Oi… Boa tarde, tudo bem? Me chamo Luccas, sou estudante de jornalismo. Será que eu posso conversar um pouquinho com vocês? É pra um texto que tô escrevendo”. Um dos jogadores me olhou, curioso e perguntou sobre o que eu queria conversar, eu expliquei que queria dar voz para que eles contassem as experiências que tinham. O outro, impaciente, não deixou que ele conversasse comigo e disse para que voltasse ao jogo. Nisso, dos outros dois, que tinham se afastado da mesa, um deles, o dono do cachorro e da bolinha verde de tênis, disse que podia conversar.
Eu mostrei a ele meu bloquinho da faculdade em que anotava as perguntas que pretendia fazer, ele me disse que não podia responder àquelas perguntas porque tinha medo do que podia acontecer: aquilo de ocupação ia mais fundo ― “política, gente rica e até o tráfico que controlam isso aí, melhor ‘cês’ não se ‘metê’ com isso não… Eu não quero essa dor de cabeça pra mim não.” Já achei que aquilo não daria em nada, mas foi ali que tive a maior aula que jamais teria fora das ruas.
O homem, que vou apelidar aqui de “Habitante do mundo”, tal qual o eterno Milton Santos, fez questão de dizer que não era nenhum mendigo não. “A gente aqui, a gente toma banho. A gente faz uns bicos aí, a gente não é pedinte não. Às vezes o pessoal que passa aí na rua deixa um troco pra gente e a gente não nega, né”, riu e completou: “mas pedir a gente não pede, não.”
A partir daí ele parece que se sentiu confortável e me contou sobre tudo que parecia estar entalado como um grito em sua garganta: “a rua é mais segura que os albergues. Lá quem controla é ‘os nóia’, a assistente social não pode fazer nada, não. Outro dia entraram no albergue lá embaixo e tentaram matar o cara, mas erraram e quase mataram o outro ― foi esfaqueado pro hospital! Até internado ficou.”
Ele falava sobre sua vida e, veladamente, respondia a cada uma das perguntas que eu havia lhe mostrado. Ele falava descontraído, brincando com seu cachorro, de coisas da maior seriedade: descaso do Estado; desemprego e falta de transparência do governo. Para o Habitante do mundo, boa parte das pessoas na situação dele só procurava a moradia, o emprego para se manter nela não. “Tem gente aí que aceita todo bico que dão pra gente, porque se a gente vai procurar emprego eles não assinam carteira, sabe? É ‘mó’ errado isso aí, a gente só perde tempo de serviço e nem pode pegar seguro nem nada, né… ‘Mó’ errado…”
E é realmente “mó” errado. As pessoas discriminam tanto os moradores de rua ― “vagabundos, irresponsáveis, não trabalham porque não querem.” Pois eles querem, sim! E como querem. O Habitante do mundo me contou que procura empregos de diversas formas mas nunca ajudam. “Querem colocar torneiro mecânico pra fazer artesanato, pô! Como pode?”. Fiquei meio atônito com essas informações, nem sonhava com a ideia de que pessoas em situações em situação de rua teriam formação profissional ― um claro preconceito meu, do qual me envergonho de ter tido, mas que deixei para trás e busco expor como o prejulgamento que de fato é.
Eu agradeci pela conversa e ele fez questão de apertar minha mão e brincou: “se você quiser escrever um texto legal, passa a noite lá [nos albergues]: se você sobreviver vai escrever um bom.” Eu sorri, meio de nervoso e caminhei de volta ao metrô. Optei por ir para a Sé para ter mais tempo de absorver a aura paulistana e registrar ― na câmera e na memória algumas imagens com um contraste de rara beleza.
A causa: parte 1
Um mês depois, já de volta à minha casa ― já esquecido da vida sofrida daqueles que não têm uma casa para a qual voltar ― relembrei o assunto. E com essa lembrança veio, de novo, a indignação de que esses cidadãos e cidadãs ― se é que são, de fato, vistos assim ― sejam expostos e submetidos a essa realidade degradante. E o pior é que, na maioria dos casos, eles nem sequer chegaram a essa situação através de vícios, eles são consequência e não causa, ao contrário do que o consenso popular determina.
Felipe Moraes, analista socioeconômico, diz que as causas são muitas e que vão de vulnerabilidades econômicas e sociais a perdas e abandonos familiares, passando por produtos migratórios. Essa última é fortemente relacionada com o descaso do Estado para com o indivíduo: ele muitas vezes vem para grandes capitais em busca de uma melhoria ou reestruturação na vida ― tal qual algum parente seu provavelmente o fez no passado, leitor ―, mas acaba não encontrando empregos e sucumbe aos empregos informais, ou como dito pelo Habitante do mundo, aos “bicos” ― não menos honestos, porém menos estáveis.
E é, talvez, por não ter oportunidades, que essas pessoas são rotuladas ― preconceituosamente ― de “vagabundos” e drogados, por pessoas que não conhecem suas lutas diárias. Eles, que são quase sempre vistos pela gestão pública como “incapacitados”, “zeros econômicos” e “pessoas que atrapalham o convívio social”, como explicado por Felipe, são segregados e distanciados do convívio nos centros urbanos.
Esse quadro de invisibilidade a que são expostos diminui ainda mais suas chances de um emprego fixo, com carteira assinada, e assim contribui na perpetuação dessa situação. Assim, é fácil ver que o Estado não tem preparo ― ou vontade ― para lidar com esse grupo social, e acaba se aproveitando disso para jogar a população contra eles, eximindo-se de culpa.
A causa: parte 2
Mas, eu, pelo menos, nunca busco colocar todas as mazelas ou benefícios que atingem alguém ou a sociedade sobre uma única pessoa ou entidade ― social ou divina. Então, pensando mais cheguei a outro agente, talvez óbvio, que tem grande carga de culpa: o próprio sistema capitalista. Nas palavras de Felipe, “nossas cidades estão se transformando, em parte, num grande negócio em que a produção capitalista do espaço urbano passa a ser negociado também como uma mercadoria. Se podes pagar, ‘tens direito’ de consumir, morar em determinados setores da cidade.”
Frente a isso, a ocupação urbana é cada vez mais desincorporada de questões como direito à cidadania e dignidade ― previstos na constituição brasileira ― e associada à causa capitalista do “pague para usar”. Eis aí outro fenômeno urbano que implica num crescimento ainda maior da desigualdade e do contingente populacional em situação de rua. Em “economês” seria o mesmo que dizer que o valor de troca se sobrepõe ao de uso, ou seja, o valor que um espaço tem na condição de mercadoria, que pode ser vendida, tem mais importância que sua função social de abrigar e acolher os cidadãos brasileiros.
Essa realidade é tão arraigada na vida urbana que eu, nos meus quase 21 anos de vida nunca vi uma ocupação de prédios abandonados ― logo, que não cumpriam a função social deles ― serem apoiados pela gestão pública. Ao contrário, sempre as vi serem desocupadas à força e seus ocupantes escorraçados pela polícia, ou como diria uma professora minha: os cães do Estado, seu aparato repressor.
A causa: parte 3
Quando era mais jovem, na escola cresci ouvindo falar do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e de todos os seus direitos. Depois de mais velho, porém, nunca mais ouvi ninguém falar. ECA se tornou sinônimo exclusivo de faculdade. A constituição, então? Só entrava em pauta nas aulas de história sobre as muitas que o Brasil já teve. Elas foram se tornando mais “humanas” com o passar dos tempos, mas isso na teoria, na prática a atual constituição é apenas história para “boy” dormir.
Esse não cumprimento dos direitos do cidadão tem grande causa não só das ações da esfera pública, mas também da privada. Isso mesmo, eu e você. Uma sociedade é um organismo vivo e, tal qual, suas regras, direitos e deveres, bem como de seus integrantes, deve ser algo decidido e, mais importante, praticado pelos integrantes ― principalmente os que, de fato, têm voz ativa.
Pode-se pôr, então, na conta do comodismo da classe média ― apesar das muitas ofensas e discordâncias que eu receberia ―, uma parcela de culpa pela situação das pessoas que vivem nas ruas, em barracas, embaixo de pontes ou em praças com pequenos espaços cobertos, passando frio, fome, insegurança e medo.
Enquanto eu lembrava daquele dia, um mês atrás, pensei que o dia cinza parecia fazer juz à vida daquele habitante da Praça Ramos de Azevedo, que parecia tão cheia de incertezas e vazia de conforto e calor.