Em 1921, o linguista estoniano Jakob Linzbach publicou um livro no qual, como muitos de seus contemporâneos, propunha uma língua artificial comum, capaz de auxiliar a comunicação entre falantes de todo o mundo, na forma de uma “língua franca” (como diz a expressão latina). A ideia de língua comum a todos era tão popular que o próprio livro de Linzbach foi publicado em interlingue, uma conlang (constructed language, ou língua artificial) criada pelo seu amigo, o também linguista Edgar de Wahl, a partir da junção de diversas línguas latinas – derivadas do latim e faladas pela maior parte da Europa e por praticamente toda a América Latina, por exemplo. A ideia desse livro, no entanto, é diferente da proposta por Wahl em seu interlingue ou da sugerida pelo polonês Ludwig Zamenhof em seu famoso esperanto: ao invés de combinar línguas diversas, Linzbach buscou algo ainda mais universal: a matemática. Assim nascia a Álgebra Transcendental.
A ideia dessa língua é representar quantidades e variáveis constantes por meio de símbolos pictóricos, isto é, símbolos que correspondem visualmente à ideia representada (como aqueles utilizados na pintura rupestre). A associação desses símbolos em operações matemáticas gera significados cada vez mais complexos. Assim, a Álgebra Transcendental seria capaz de servir à expressão humana como um todo, ao traduzir muito mais do que conceitos matemáticos.
Quer um exemplo? Unindo símbolos pictóricos que representam humanos em uma expressão matemática temos a representação da amizade. Se essa expressão for multiplicada pelo número imaginário (aquele desenvolvido e utilizado pela matemática), representamos uma amizade que se tornou imaginária, e portanto chegou ao fim.
E é por essa capacidade de expressar, através da lógica matemática, o que não é completamente lógico no ser humano que a língua de Linzbach levanta uma discussão importante: será que a matemática e a nossa expressão linguística são realmente universos tão separados como o senso comum costuma acreditar?
“Tanto a matemática como a língua são sistemas simbólicos”, afirma a professora Carolina Lindenberg Lemos, doutora em linguística e pesquisadora na área de semiótica pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Segundo ela, a reflexão dos seres humanos, em geral, é marcada pelo uso de símbolos, mas eles não estão limitados às letras do nosso alfabeto. Os sinais matemáticos, como “+” ou “=”, também são um conjunto de símbolos que têm significados comuns para várias pessoas, e por isso também podem ser usados para expressar ideias.
Quando se pensa na linguística, que é a ciência que estuda a língua, surgem novos pontos em comum: “Muitas das teorias linguísticas usam modelos matemáticos para descrever a linguagem, por exemplo a linguística de Noam Chomsky, a gramática gerativa, que usa meios próximos aos matemáticos para descrever a língua”, diz Carolina.
Como aponta a professora Maria das Graças Volpe Nunes, doutora em informática e pesquisadora na área de Processamento de Língua Natural, a linguística se aproxima de ciências exatas, como a matemática, ao estudar a estrutura da língua e buscar padrões dentro dos idiomas, de maneira próxima ao que a matemática faz com os números. Por isso, diz ela, em diversos contextos a linguagem formal (lógico-matemática) presente em algoritmos é capaz de analisar textos escritos em línguas naturais (aquelas que usamos para comunicação no dia a dia, como o português).
Mesmo que esses universos compartilhem bem mais do que crê o senso comum, não é possível ignorar que existem diferenças. “Muitas correntes linguísticas acreditam que a língua surge naturalmente, e, de fato, percebemos que todas as sociedades humanas desenvolvem linguagens. Mas, apesar de toda sociedade humana também desenvolver algum conhecimento sobre matemática, a matemática que todos conhecemos é algo que surge artificialmente de um trabalho científico por parte de pesquisadores”, aponta a professora Carolina. “A língua natural é usada para comunicação entre humanos. Além das regras de formação de palavras e frases, a língua natural se completa com significados e intenções”, diz a professora Maria das Graças.
Por isso mesmo, há situações em que a lógica matemática é mais eficiente, como a transmissão de conhecimento científico. Como afirma Maria das Graças, “a variação no modo de expressão e compreensão, que faz parte da linguagem humana e que é essencial para a construção do significado do que dizemos, fica de fora da linguagem matemática, que exige objetividade para divulgar conhecimento universal”. Do mesmo modo, quando se realiza a análise da língua natural somente com as ferramentas derivadas dessa lógica matemática, “necessariamente a porção da linguagem que diz respeito à significação, à intencionalidade e à subjetividade ficará de fora”. Isso quer dizer que o famoso dito pelo não dito, que está por todo lado no que falamos no cotidiano, não existe na linguagem matemática, e nem pode ser entendido por ela.
Exemplo disso é que as linguagens de programação, que também são baseadas na lógica matemática e podem criar interfaces que servem para a expressão humana, não estão nem próximas de se prestar ao uso que Linzbach imaginava para sua Álgebra Transcendental, pois falham justamente em entender esse dito pelo não dito. “Na área de tradução automática,” diz a professora Maria das Graças, “durante bastante tempo, era corrente a ideia do uso de uma linguagem intermediária e universal, capaz de representar o significado – numa linguagem de programação – independentemente das línguas envolvidas. Apesar da beleza e da complexidade desse modelo, os resultados não eram bons”. Assim como a Álgebra Transcendental, a ideia caiu em desuso.
Mas, como o exemplo do termo “amizade que chegou ao fim” mostra, na Álgebra Transcendental existe sim este espaço para variação de expressão e compreensão. Logo, essa não seria uma prova de que há espaço para isso na matemática?
Na verdade, esse lado é exatamente o que distancia a língua de Linzbach da matemática, e ele se intensificaria cada vez mais se a língua de fato fosse utilizada. De acordo com a pesquisadora Carolina, na medida em que caísse em circulação, a Álgebra Transcendental estaria sujeita a alterações e perderia o que a torna única: o caráter universal que a matemática lhe confere. Isso acontece porque, como produto cultural, os idiomas estão em constante transformação, isto é, a língua é viva e muda com o tempo e espaço. Da mesma forma que o português falado no estado de São Paulo hoje não é mesmo de 50 anos atrás, ele também é diferente do falado pelos vizinhos cariocaxxx. Essas variações linguísticas aconteceriam com os símbolos matemáticos até passarem a ter significados particulares em diferentes grupos sociais. “Quando entra em uso, um símbolo também é adaptado e expandido. A álgebra transcendental começaria a ganhar conotações e sentidos figurados, por exemplo, e com isso nuances e variações”, completa.
Álgebra Transcendental: O que faz com que as línguas não sejam universais?
E, apesar de ser o diferencial da língua de Linzbach, muitas dessas nuances que diferem matemática e língua mostram que esse caráter universal não é o mais importante. “O que faz com que as línguas não sejam universais? É que elas essencialmente carregam uma cultura junto delas. A sua língua é a sua forma de se comunicar com os outros mas é também a sua forma de se identificar no mundo, de se identificar como indivíduo, como parte de um certo grupo de pessoas. O fato de a língua estar muito ligada a quem nós somos como indivíduos e a quem nós somos dentro de uma sociedade faz com que tenhamos diferentes línguas, porque afinal nós temos diferentes sociedades”, diz Carolina. “Assim, ao lado de uma força de união, existe também uma força de individualização na língua, que faz parte dessa construção identitária. Então essas forças vão lutando, ou talvez colaborando, ou se delimitando, e talvez uma língua só nunca seja o suficiente para os homens”, completa.
A Álgebra Transcendental nos mostra que a matemática também é uma forma de expressão humana, e por isso a língua e a matemática têm sim coisas em comum. No entanto, suas diferenças permitem que cada uma funcione perfeitamente para uma necessidade do ser humano. Por isso, se há 100 anos a ideia era desenvolver a língua que unisse todos, hoje essa mesma língua pode nos mostrar como a diversidade nos ajuda a expressar mais e melhor.