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Brechó: do estigma ao hype

Como peças de segunda mão passaram a ocupar tanto espaço

Durante boa parte da minha infância, o brechó era o destino final das roupas que não me serviam mais ou que eu não pretendia usar de novo. Todos da minha casa separavam suas peças para doação e elas iam para bazares de igrejas, na maioria das vezes. Mas no começo da adolescência comecei a ver na internet pessoas comprando roupas usadas e eu não entendia o porquê. Isso começou a fazer mais sentido quando passei a me inteirar sobre questões de sustentabilidade e de vestimentas como uma forma de expressão política e de personalidade.

Uma breve trajetória dos brechós

Tudo indica que o surgimento do termo “brechó” no Brasil aconteceu no Rio de Janeiro no século 19, a partir de uma loja de vestimentas e objetos usados chamada Casa do Belchior. Desde então, a popularidade do local transformou esse nome numa categoria de comércio e o tempo fez as modificações que deram origem à palavra atualmente conhecida. O que há alguns anos era alvo de muito julgamento e totalmente associado a pessoas com menores condições de renda, hoje em dia é buscado por diferentes grupos de pessoas e pelas mais variadas razões, seja pelo preço,consciência ambiental ou busca por um estilo diferenciado.

Segundo a antropóloga Lígia Krás, até por volta do ano de 2009 ainda vigorava com força o tabu da “roupa de defunto” no Brasil, mas, devido à crise de 2008, a “cultura do usado” ganhou espaço no exterior e nós sofremos influência desse processo que se difundiu pelo mundo. A partir daí, ter consciência ambiental tornou-se uma questão de status. Nesse contexto surgiu o movimento Slow Fashion com a intenção de questionar as formas desenfreadas de se produzir e consumir roupas. Será que eram mesmo necessários o número de coleções lançadas e a frequência com que isso acontecia? É fácil perceber que não, quando observamos que essa quantidade é humanamente impossível de ser utilizada, mas a forma de lidar com o repensar do consumo passa por algumas etapas até que se chegue ao brechó em si.

Bazar Samburá-AACD em São Paulo
Bazar Samburá-AACD em São Paulo [Imagem: Reprodução]

Roupa de defunto?

Existe um grande tabu em volta das roupas usadas, no Brasil, por conta de crenças e religiões. É comum encontrar quem tenha medo de usar roupas que pertenceram a outra pessoa, principalmente se for um desconhecido, e os motivos principais, segundo Lígia, são morte, doença e sexo. A morte gera muito medo nas pessoas, há quem pense que ao comprar uma roupa de alguém que faleceu pode acabar carregando junto com a peça uma espécie de espírito, criando um bloqueio em quem quer começar a procurar esse tipo de roupa. Duda Santiago, que é artista, conta que sua mãe a princípio era bastante contra suas compras em brechós e por isso afirmava que “geralmente as pessoas dão roupas de outras pessoas que morreram”, mas isso não a impediu de continuar comprando peças usadas.

A doença e o sexo estão muito relacionados nesse contexto. É como se, ao vestir uma roupa que já pertenceu a outra pessoa, houvesse uma invasão da intimidade do antigo proprietário da peça, e por conta disso há o receio de que se contraia uma doença por meio do item usado. A representação da sujeira é mantida no imaginário das pessoas mesmo depois da devida higienização, o que também forma um bloqueio em relação às roupas de segunda mão.

Lígia Krás usando peças de brechós
Lígia Krás usando peças de brechós [Imagem: Arquivo pessoal]

O porquê do consumo em brechó

Em um primeiro momento, é estranho pensar que na produção de uma calça jeans são usados 10 mil litros de água, mas os números envolvendo os gastos da indústria da moda são realmente assustadores, tanto que em um par de sapatos, por exemplo, podem ser gastos 8 mil litros de água. Quantos milhões de litros estão “guardados” nos closets dos sonhos de muita gente?

Por trás de uma indústria que vende glamour, há uma das maiores fontes de poluição e degradação ambiental do mundo, e é por isso que várias pessoas estão mudando suas formas de pensar o consumo de suas roupas. Esse pode não ter sido o ponto de partida para quem entrou no mundo dos usados, mas parece um consenso que essa reflexão aconteça em algum momento. Duda conta que sempre pensa em como pode ajudar o meio ambiente e descobriu nas roupas usadas uma forma de reduzir seu impacto ambiental, “mesmo que seja pouquinho, eu sinto que estou fazendo minha parte”. Atualmente, quase todas as roupas “novas” que compra, vêm de brechós.

Mas a poluição da indústria têxtil não para no uso de água: os produtos químicos usados são muito nocivos ao meio ambiente, tanto aos empregados no plantio das fibras quanto dentro da indústria. Segundo o relatório “A new textiles economy: redesigning fashion’s future”, caso o ritmo da produção de tecidos não diminua até 2050, ela será responsável por 26% das emissões de gases estufa.

Atualmente são desperdiçados por ano 500 bilhões de dólares em roupas jogadas fora. Por isso, é possível e supostamente necessário que se produza mais, porém os recursos dos quais o planeta dispõe não condizem com essa forma de exploração. Quando, em vez de comprar uma peça nova, alguém opta por uma já existente, a demanda da produção diminui em uma unidade, e apesar da mudança parecer pequena demais, esse movimento já ganhou força o suficiente para começar a enfrentar a Fast Fashion, que é a produção de roupas em larga escala.

Um mergulho nas pilhas de roupas

Em todos os casos de pessoas que buscam o brechó, é preciso paciência e persistência, já que não é tão simples consumir roupas usadas, pois as peças que estão à disposição são muito diferentes do que se encontraria em lojas grandes. Na maioria das vezes, por exemplo, não há mais de um tamanho do mesmo modelo: é preciso estar disposto a lidar com a frustração de a roupa não ter o ajuste que esperava e aberto à possibilidade de pequenas reformas. Além do que, é preciso ter lidado anteriormente com seus preconceitos para aceitar essa forma de consumo e, no caso da Sara Godoy, estudante de medicina veterinária, os tabus não foram um problema. Por gostar do estilo de outras épocas, ela só encontrava as peças do seu gosto em lojas de usados ou em fast fashions que cobravam preços muito mais altos, “no primeiro brechó que eu fui eu até fiz amizade com o dono, ele mostrava bastante a importância de vender aquelas roupas e isso me sensibilizou”. Para Paula Canavezi, dona do brechó Old New Vintage, o que a levou a consumir roupas usadas também foi o gosto pelo estilo vintage. Tanto na família da Paula quanto da Sara e da Duda não havia a tradição de comprar roupas de segunda mão, elas foram as primeiras a experimentar essa forma de consumir.

Bazar Samburá-AACD
Bazar Samburá-AACD [Imagem: Reprodução]

Liberdade dos padrões de consumo

Outra mudança percebida pelas consumidoras de brechós foi o exercício da criatividade. Para Duda, o fato de terem roupas muito diferentes para ela experimentar ajuda bastante nesse processo criativo, “como artista, eu amo ser criativa e às vezes compro uma roupa no brechó só pra customizar”.
A diferença entre os brechós e as lojas comuns também está na distribuição das peças, pela menor organização das roupas é preciso buscar fora da da área predefinida que existe nas lojas grandes, seja a divisão por gênero, tamanho ou estilo.
“Comprar em brechó foi uma das melhores coisas que aconteceram pra mim, eu me libertei das lojas grandes e dos estereótipos das roupas que tem nessas lojas”, completou a artista.

Duda Santiago com peças que comprou em brechós
Duda Santiago com peças que comprou em brechós [Imagem: Arquivo pessoal]

Uma nova forma de apresentação

Com o aumento das compras de usados no final da década passada, as roupas que eram moda em outras épocas voltaram a circular com mais intensidade e o vintage entrou em alta. Com isso, não apenas os bazares de roupas usadas ganharam força, como também surgiram lojas especializadas em “garimpar” peças de boa qualidade e alinhadas com o estilo retrô.

Esse novo formato de brechó é mais moderno, tem uma melhor organização, iluminação e decoração, parecendo boutiques que vendem peças usadas. Paula, responsável pela escolha das peças de seu brechó, conta que o público que frequenta sua loja varia entre pessoas que buscam a exclusividade não encontrada em grandes lojas de departamento, ou que procuram produtos básicos, mas prezam pela qualidade dos tecidos, e “também tem os amantes do vintage, que sempre querem as peças colecionáveis”.

Arara do brechó Old New Vintage
Arara do brechó Old New Vintage [Imagem: Reprodução]

A nova forma do brechó se apresentar consegue atrair mais adeptos, pois ela se assemelha, de certa forma, com as lojas a que estamos acostumados, o que não necessariamente significa que as pessoas estão tomando consciência de seus hábitos de consumo. Em alguns desses brechós, como é o caso do de Paula, há um esforço em informar quem compra a respeito dos benefícios ambientais dessa mudança no consumo.

Justamente por sua aparência familiar e organizada, os tabus em torno das roupas desse formato de brechó são menos perceptíveis. Segundo Lígia, “a roupa de brechó só não é mais tabu porque virou moda”, ela ainda afirma que a satisfação com o consumo não se concretiza apenas com o que é necessário, “é natural do ser humano buscar o novo, ou para se sentir pertencente ou para conseguir exclusividade”, o que favorece esse novo formato que vem se tornando popular.

 

Um obstáculo para o Slow Fashion

Assim como ocorre em qualquer movimento com intenções anti-sistêmicas, o capitalismo tenta se apropriar do que pode lhe favorecer e desviar seu verdadeiro significado revolucionário. No caso da moda sustentável é comum ver como as grandes marcas começaram a investir em uma imagem de consciência ambiental, sem necessariamente deixar de produzir coleções novas a cada duas semanas.

Além disso, a tendência vintage é muito explorada pelas marcas de fast fashion para competir com a busca por brechós, já que é um “usado” aceito pelo público. De acordo com Lígia, a peça de segunda mão “carrega o status da memória, da história, da cultura, de você estar mostrando conhecimento através das roupas”, mas, quando são produzidas por grandes marcas, essas peças muitas vezes são mais caras e com menor qualidade.

Não parece estranho que uma peça comprada ano passado em lojas grandes agora apresente defeitos, enquanto outra produzida em 1960 esteja em perfeito estado? É claro que isso depende muito dos cuidados de quem possui a peça, mas não é pura coincidência: as roupas atualmente, assim como a maioria dos bens de consumo, são produzidas para durarem pouco. Essa obsolescência programada segue a lógica de produção das grandes indústrias, pois se a peça se mantiver em bom estado por tanto tempo e se for considerada atemporal, não há motivo para a compra de uma nova, e o que fazer com as novas coleções produzidas? É por isso que a lógica sustentável não é compatível com o sistema capitalista.

Além disso, as mídias responsáveis por propagar os ideais de consumo e necessidade são bastante contraditórias em difundir a ideia de que a compra em brechós é uma tendência a ser seguida sem conscientizar as pessoas da real intenção da sustentabilidade, que é o questionamento de toda a cadeia de consumo. Não há um incentivo a consumir apenas o que é necessário, pelo contrário, ao mostrar o brechó como tendência, existe uma indução ao consumo em si, deturpando o significado de consumo consciente. Isso fica claro quando comparamos a quantidade de buscas por brechós no google com as buscas por moda sustentável, a primeira é muito mais significativa por que se trata do ato de consumir e não necessariamente de agir de modo sustentável.

Mas por que isso acontece? Apesar da migração para o digital, as revistas que ditam a moda ainda são muito dependentes de anunciantes, e como eles fabricam itens a serem comprados, pela lógica, não seriam a favor de editoriais inteiros voltados às roupas de brechós, muito menos conteúdos que questionam a real necessidade de alguém comprar seus produtos. Por isso a divulgação da compra de usados sem a conscientização real do público é tão perigosa.

Instagram do brechó Old New Vintage
Instagram do brechó Old New Vintage [Imagem: Reprodução/Instagram]

E agora, com a Covid-19?

A certeza que se tinha a respeito do futuro do brechó era de sua digitalização. Sara, por exemplo, disse acompanhar lojas online e aplicativos de roupas usadas. Porém, por conta da pandemia, toda indústria vai passar por mudanças e isso implica em mudanças para os brechós também. A previsão de Lígia é de que esse tipo de comércio tenda a diminuir, pois agora não é a sujeira no sentido figurado, do preconceito das pessoas, “não é mais questão de energia, é questão de vírus”, afirma. Por termos que deixar de lado várias formas de contato entre as pessoas, a antropóloga não vê esse momento como propício para o brechó e considera que é possível que, apesar de as pessoas estarem precisando de roupas baratas, o vírus tende a tornar esse mercado recluso “talvez até por anos”.

1 comentário em “Brechó: do estigma ao hype”

  1. Regina Castanheira Alvaro

    Oi, Natália! Ótima matéria!! Aborda vários aspectos!
    Infelizmente, o preconceito e o mundo capitalista são grandes obstáculos na conquista de um comportamento sustentável e louvável como o apresentado em seu artigo. Apesar disso, acredito que o ser humano está em processo de conscientização. Ser sustentável é , antes de mais nada, ser inteligente!

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