Por Matheus Andriani (andrianimatheus@usp.br)
O Brasil contemplava a estreia de um dos maiores astros do rock nacional em carreira solo no dia 18 de novembro de 1985. Recém-separado da banda Barão Vermelho, Cazuza aspirava a liberdade de explorar novos horizontes dentro da música e transformar seus anseios sentimentais em arte. Foi assim que nasceu o disco Exagerado (1985): obra de maior impacto do letrista na indústria fonográfica.
Responsável pela consolidação da identidade artística de Cazuza e por seu epíteto “Poeta Exagerado”, a obra marcada pelo romantismo exacerbado e pela mesclagem de elementos do rock com a MPB e o pop, também anunciou ao grande público as boas novas: o cenário da música ganhava uma nova lenda.
“Não me considero um cantor. Levo legal o meu lero. Sou afinado. Mas não passo de um letrista que canta, que gosta de palco.”
Cazuza
Um destino traçado na maternidade
Na noite do dia 4 de abril de 1958, Maria Lúcia já começava a sentir as contrações. Mãe de primeira viagem, ela e seu companheiro João Araújo esperavam pela chegada do filho que por tanto tempo sonharam juntos: Agenor de Miranda Araújo Neto, ou como apelidado pelo pai ainda no útero, Cazuza.
Nascido em Ipanema, no Rio de Janeiro, e filho de um produtor musical e uma filantropa, o artista já demonstrava aptidão para a música durante a infância. Cazuza acompanhava o pai em seu trabalho na gravadora Som Livre e foi impactado pelo contato direto com grandes nomes da indústria musical, como Caetano Veloso, Elis Regina, Gal Costa, Gilberto Gil e Novos Baianos.
Suas canções favoritas eram as melancólicas, como as de Cartola, Noel Rosa e Maysa. Por volta dos sete anos de idade, o artista passou a escrever letras e poemas, que mostrava à avó Alice, sua companhia nas saídas dos pais para o trabalho. Sua mãe, Lucinha, também cantava, e a mistura de talentos musicais, que vinha dos pais, foi essencial para sua formação artística.

Cazuza foi uma criança criativa e empenhada nos estudos e demonstrava interesses prodigiosos para sua idade. Aos oito anos, gostava de inventar histórias: criava enredos completos, com diversos personagens e um destino traçado para cada um deles. Desenvolvia tramas de traição, mortes, vingança e poligamia. Também tinha curiosidade por geografia e costumava ler livros de romance sempre com um atlas ao lado, para entender melhor onde se situavam os acontecimentos. Seu pai brincava: “Vai querer ser professor de geografia, Cazuza? Isso não dá dinheiro, meu filho”.
Com o passar do tempo, o menino se tornou cada vez mais sincero e sem filtro, o que colocava seus pais frequentemente em situações embaraçosas. Certa vez, receberam em casa Manoel Guevara, então Ministro dos Transportes da Venezuela, casado com uma das primas de Lucinha. Durante o jantar, Guevara se gabou sobre a construção de um túnel de trem subterrâneo no país, e afirmava que era a maior construção daquele tipo da América Latina. Prontamente, Cazuza interrompeu: “Não é, não!”. Correu ao quarto e voltou com um livro, que provava existir construções maiores. O Ministro foi embora encantado, e no dia seguinte lhe mandou como presente um atlas inglês dos mais sofisticados.
Eu protegi o teu nome por amor
Seu nome de batismo foi uma homenagem ao avô paterno, por insistência da avó. João Araújo se sentiu pressionado e, apesar de ter prometido realizar o desejo da mãe, arrependeu-se no meio do caminho, já que achava um nome feio. Lucinha também acatou o pedido na esperança de ter outros filhos, pois poderia escolher o nome que quisesse aos próximos. Mas não teve.
Registrado Agenor, o cantor já era Cazuza antes mesmo de nascer. Isso porque, durante toda a gestação, sua família materna cravava a chegada de mais uma menina. Mas seu pai insistia: “Eu vou ter um moleque, vai vir um cazuza!”. O termo “cazuza” era utilizado para se referir a garotos no nordeste durante a década de 1950, e Araújo sonhava em ser pai de um menino. O apelido também foi uma alternativa que o casal encontrou para chamar o filho após se arrependerem do registro que lhe foi dado.
Ele só se deu conta que seu nome era Agenor aos três anos de idade, quando começou a frequentar a escola. Não respondia à chamada: ficava esperando ouvir o apelido pelo qual sempre foi tratado. Lucinha só entendeu a confusão que havia criado na cabeça do filho em um dia em que foi buscá-lo. Viu a professora chamando “Agenor” repetidas vezes, sem que o menino sequer levantasse a cabeça. Então sugeriu: “Experimenta chamar por Cazuza.” Foi imediato: ele atendeu na hora.
Sou feliz em Ipanema, encho a cara no Leblon
Já na adolescência, o letrista assumiu uma postura de rebeldia que intimidava os pais. Trocava de colégio quase todo ano por baixo rendimento, matava as aulas para sair com os amigos, pegava o carro de João escondido e passou a adotar um estilo hippie de se vestir — que sua mãe repudiava.

[Imagem: Lucinha Araújo/Arquivo pessoal]
Com muita insistência de Lucinha, se formou no segundo grau através de um supletivo e seu pai prometeu lhe dar um carro se passasse no vestibular. Em 1976, Cazuza foi aprovado no curso de Comunicação, mas desistiu da faculdade três semanas depois.
Mais tarde, começou a frequentar o Baixo Leblon, onde viveu uma vida boêmia. Como forma de impedir que o filho passasse seus dias bebendo e fumando com os amigos, o pai criou uma vaga de emprego em sua gravadora para o jovem trabalhar no departamento artístico, com triagem de fitas de novos cantores.
No final de 1979, Cazuza mudou-se para os Estados Unidos para fazer um curso de fotografia na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Foi ali que teve contato pela primeira vez com a literatura da geração beat — os chamados poetas malditos — que mais tarde marcariam profundamente sua escrita. De volta ao Rio de Janeiro em 1980, ingressou no grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, no Circo Voador. Foi nesse período que cantou em público pela primeira vez. Convidado para integrar uma nova banda de rock de garagem que estava se formando no Rio Comprido, o cantor Leo Jaime recusou, mas indicou Cazuza para assumir os vocais. Ali, nascia a banda Barão Vermelho.
Quem vem com tudo não cansa
O grupo Barão Vermelho formado por Cazuza, Dé Palmeira, Frejat, Maurício Barros e Guto Goffi fez sua estreia em 1981, em um condomínio na Barra da Tijuca, o Riviera Dei Fiori. No palco, Cazuza embriagado e com a braguilha da calça aberta fez peripécias que voltaram a atenção do público unicamente a ele.

Com uma produção barata e gravado em apenas dois dias, o conjunto lançou em 1982 seu primeiro álbum, de nome homônimo à banda. O disco reuniu faixas que se tornaram emblemáticas posteriormente na carreira de Cazuza, como Down em Mim e Todo Amor Que Houver Nessa Vida. Apesar de bem recebido pela crítica, o trabalho teve um desempenho modesto nas vendas, alcançando cerca de sete mil cópias.
Após uma sequência de shows entre São Paulo e Rio de Janeiro, a banda voltou ao estúdio e gravou seu segundo disco, Barão Vermelho 2, lançado em 1983. O projeto marcou a virada comercial do grupo e alcançou 500 mil cópias vendidas.
Foi nesse período que Cazuza recebeu seu primeiro grande reconhecimento público. Durante um show da banda no Canecão, Caetano Veloso o apontou como “o maior poeta de sua geração” e criticou as rádios por deixarem de tocar o som do Barão, priorizando apenas o pop brasileiro e a MPB. O sucesso do Barão Vermelho ganhou força com o terceiro álbum, Maior Abandonado (1984), impulsionado pela canção Bete Balanço, que se tornou um dos maiores clássicos da banda e conquistou um disco de ouro. Pouco depois, em janeiro de 1985, o grupo se apresentou na primeira edição do festival Rock in Rio.
Meses após o festival, Cazuza decidiu deixar o Barão Vermelho. Segundo ele, era “muito egoísta para dividir a atenção e os palcos”. A banda e o cantor chegaram a combinar sua participação no quarto álbum, Declare Guerra (1986) e manteriam a decisão em sigilo, mas em meios aos ensaios do disco o cantor reuniu os amigos e anunciou oficialmente sua saída para seguir em carreira solo.
Eu sou mesmo exagerado
O álbum de estreia de Cazuza em carreira solo chegou às lojas no dia 18 de novembro de 1985. Inicialmente intitulado como Cazuza, o projeto logo foi renomeado para Exagerado, pelo sucesso da faixa de mesmo nome. O disco apresentou um repertório mais autoral, e contava com músicas que exploravam os anseios pessoais do cantor em diferentes momentos de sua vida.

Produzido por Ezequiel Neves, parceiro inseparável do artista, o álbum contou com dez faixas que transitavam entre a intensidade, como Desastre Mental, Mal Nenhum e a faixa-título, e a balada de teor íntimo como Codinome Beija-Flor, essa última escrita pelo cantor no hospital enquanto tratava uma pneumonia no mesmo ano.
O lançamento do LP reforçou a mudança de posição que o compositor buscava para sua carreira, e consolidou elementos que passariam a definir a imagem pública de Cazuza em sua fase solo. A combinação de composições de carga emocional com uma interpretação marcada pela exposição direta de sentimentos projetou o artista para além da estética associada ao Barão Vermelho. Foi a partir desse lançamento que a imprensa passou a adotá-lo com maior frequência como “poeta exagerado”.
Faz parte do meu show
Na contramão de sua estreia, o álbum Só Se For a Dois (1987) não se resumiu ao rock. Com composições mais melódicas e centradas no afeto, como O Nosso Amor a Gente Inventa, Completamente Blue e Solidão Que Nada, o cantor decidiu explorar novos horizontes e exagerar no sentimentalismo, além de incluir na produção elementos da MPB e do pop.
Ainda no ano de lançamento, na semana anterior ao início da turnê que levava o nome do álbum, uma notícia viria para abalar a carreira e a vida pessoal do compositor. Cazuza descobriu ser portador do vírus HIV. Não quis interromper a agenda, e seguiu com os compromissos firmados. Após o encerramento, um quadro de pneumonia o levou a semanas de internação na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro. Sem melhora, foi levado pelos pais aos Estados Unidos e submetido a um tratamento à base de AZT durante dois meses.
De volta ao Brasil em dezembro de 1987, Cazuza iniciou as gravações de seu terceiro disco, Ideologia, lançado em 1988. O álbum marcou sua inserção no debate político da música brasileira da década de 1980, ao reunir composições que abordavam desigualdade social sem abandonar o lirismo característico de sua escrita, caso de Ideologia, Blues da Piedade e Faz Parte do Meu Show. Entre as faixas de maior impacto, destacou-se Brasil, samba-rock que ganhou projeção nacional ao ser regravado por Gal Costa e se tornar tema de abertura da novela Vale Tudo (1988-1989).
Vida louca, vida breve
Debilitado, o cantor estreou a turnê do disco Ideologia em agosto de 1988, que contou com a direção de Ney Matogrosso, seu amigo íntimo e de longa data. Após o fim da agenda de shows, retornou a Boston para dar continuidade ao tratamento.

[Imagem: Lucinha Araújo/Arquivo pessoal]
Rodeado de especulações da mídia sobre seu estado de saúde, o letrista evitava dar declarações sobre o assunto, mas no dia 13 de fevereiro de 1989, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, declarou publicamente que era soropositivo. Dois meses depois, compareceu à realização da segunda edição do Prêmio Sharp no Copacabana Palace. Visivelmente magro, de cadeira de rodas e usando um lenço na cabeça, Cazuza foi ovacionado pela classe artística presente no evento e deixou a premiação portando três troféus.
Após quatro meses submetido a um tratamento alternativo em São Paulo, o artista viajou novamente para Boston em razão de uma infecção. Sem apresentar melhora, recebeu da equipe médica americana a informação que mais temia: não havia mais caminhos possíveis para a recuperação, o que motivou seu retorno ao Rio de Janeiro em 9 de março de 1990. O cantor manteve seu bom humor, visitou os amigos, frequentou shows e sempre que podia saía de casa para se distrair durante os últimos meses de vida.
E foi nesse equilíbrio frágil entre a doença e o desejo de viver que vieram seus dias finais. Na manhã de 7 de julho do mesmo ano, Cazuza morreu no apartamento dos pais, em Ipanema, aos 32 anos, em decorrência de um choque séptico causado pela AIDS.

[Imagem: Reprodução/Instagram/@cazuza.oficial]
Mais de mil pessoas se reuniram no Cemitério de São João Batista para se despedir. O caixão, coberto de flores, foi levado pelos ex-integrantes do Barão Vermelho e por Ezequiel Neves, enquanto aplausos e vozes cantavam seus maiores sucessos em despedida ao poeta que marcou a história da música brasileira.
“Prefiro me arder inteiro na vida, viver. Prefiro viver 30 anos a morrer velho.”
Cazuza
