Por Matheus Andriani (andrianimatheus@usp.br)
No ápice do contexto repressivo do regime militar no Brasil, em 1973, apareceu, pela primeira vez em rede nacional, o que seria um dos maiores atos de rebeldia contra os preceitos do governo vigente. No palco da maior revista eletrônica da época, o Fantástico (1973-presente), na Rede Globo e em pleno horário nobre, surgiu para o grande público o Secos & Molhados, com uma abordagem artística que imediatamente causou espanto. Parcialmente despido, com adornos chamativos pelo corpo, plumas na cabeça e rosto coberto por pintura, estava Ney Matogrosso, um dos precursores de uma revolução que rompeu as possibilidades de criação e expressão dentro da arte musical.
“Ele é atemporal. Ney não se mede, se vive.”
Criolo, Extra

[Imagem: Ney Matogrosso/Acervo pessoal]
Ney de Souza Pereira nasceu em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, no dia primeiro de agosto de 1941, e sempre teve vocação para as artes: por volta dos oito anos, seu passatempo favorito era desenhar. Filho do sargento Antonio Matto Grosso com Beita de Souza Pereira, ele decidiu expressar ao pai a vontade de estudar pintura, o que gerou a primeira dentre as diversas represálias que o artista viria a sofrer de Antonio. O artista passou por um período nômade ainda na infância, pois o trabalho de seu pai exigia mudanças constantes: também morou em Campo Grande e em Recife.
O militar, que declarava não admitir em sua casa filho artista, passou a perseguir e agredir fisicamente o filho por sua personalidade dissidente. Em uma das vezes, o cantor chamou atenção da vizinhança aos gritos por uma surra que levava, na qual o sargento jurava não soltá-lo enquanto Matogrosso não chorasse. Obstinado de nascença e insubmisso por natureza, ele não chorou. Em 1959, aos 17 anos, já cansado das perseguições de Antonio e determinado a nunca se subordinar às suas imposições, o artista deixou a casa da família e seguiu para servir no Primeiro Esquadrão do Segundo Grupo de Transporte da Aeronáutica do Rio de Janeiro.
No ano de 1961, ele concluiu a temporada no quartel, mas sem pretensão de servir às forças armadas. Decidido a não voltar a Campo Grande, o cantor chegou a dormir na praça Serzedelo Correia, em Copacabana, até conseguir uma moradia. Indicado por um primo, mudou-se para Brasília e começou a trabalhar no laboratório de anatomia do Hospital de Base do Distrito Federal.
O primeiro ato de um espetáculo
Ainda em Brasília, Ney Matogrosso se matriculou no coral do colégio Elefante Branco e passou a ter um contato maior com a música. Na sua primeira apresentação em público, em um festival universitário da Universidade de Brasília, foi surpreendido por um ataque de cunho preconceituoso em cima do palco. Enquanto cantava, ouviu de uma pessoa da plateia um grito que exclamava “Bicha”. Resolvido como sempre, o cantor não hesitou e interrompeu o show dizendo: “Repete o que você disse!”. Entretanto, o agressor não apareceu.
Após o festival, Matogrosso concentrou suas atenções no teatro, pois tinha como objetivo demarcado se profissionalizar na área da atuação. Atrás deste sonho, ele deixou a capital federal e desembarcou no Rio de Janeiro em 1966, onde passou a viver da confecção e venda de peças de artesanato em couro. Nesse período, Ney se autointitulava um hippie.

[Imagem: Reprodução/Instagram/ @neymatogrosso]
O estrelato
Em 1971, Ney Matogrosso conheceu o produtor musical João Ricardo, que tinha como objetivo formar uma banda. João estava em busca de uma voz aguda, que fosse capaz de alcançar tons mais altos, mas que não fosse uma mulher. Ao ouvir Matogrosso cantar pela primeira vez, o também compositor teve certeza de que havia encontrado quem buscava e convidou-o para integrar o grupo. A partir de então, João Ricardo, Gerson Conrad e Ney de Souza Pereira — que substituiu seu sobrenome de batismo por “Matogrosso”, em homenagem ao estado de seu nascimento — firmaram uma parceria. Nascia então o Secos e Molhados.
O conjunto musical, que misturava em suas produções elementos do rock, MPB e samba, chamou a atenção do público em sua primeira aparição de âmbito nacional, no Fantástico, em 1973. Com uma apresentação ousada, acrescida de figurinos e maquiagens extravagantes, iniciava-se ali o processo de rompimento com o modelo de se produzir arte na época. O conjunto musical lançou, no mesmo ano, seu primeiro LP intitulado Secos e Molhados I (1973), que superou as vendas de cantores renomados da época, como Roberto Carlos, e ultrapassou as 550 mil cópias vendidas.
Em 1974, o grupo se apresentou no ginásio do Maracanãzinho. Com um público de cerca de 30 mil pessoas — um número impressionante para um show de música popular naquele período —, o evento demonstrou a força da banda como fenômeno de massa e símbolo de resistência artística. Entre o sucesso repentino e os apontamentos que surgiram do público sobre as performances audaciosas, Ney decidiu deixar o Secos e Molhados em 1974, após o lançamento do segundo LP.
“Eu queria tocar minha vida, falar o que eu quisesse, cantar o que eu quisesse. Eu até tinha proposto a todo o grupo que cada um fizesse um disco independente, para mostrar de onde vinha cada um, musicalmente.”
Ney Matogrosso, Revista Quem
Homem, mulher ou pássaro?
No início de sua carreira solo, Ney Matogrosso aprofundou a exploração da androginia — um traço que já marcava sua trajetória com o Secos & Molhados, mas que ganhou força em seu primeiro álbum individual, Água do Céu – Pássaro (1975). Nesse trabalho, ele abandonou qualquer resquício de identidade convencional de gênero, e assumiu uma figura ainda mais híbrida e provocadora. Ney não se apresentava como homem, nem como mulher: era algo instintivo, selvagem — um “bicho”, como ele mesmo chegou a ser descrito.

[Imagem: Reprodução/Instagram/ @secosemolhados]
A peculiaridade performática se refletia não só nos vocais agudos e viscerais, mas também nos figurinos, nas poses felinas, no gestual corporal e no repertório cuidadosamente escolhido, que misturava MPB com elementos de teatralidade e erotismo. No palco, Ney rugia, contorcia-se e olhava o público como um animal em cena — fato que desconstruiu a ideia de que a arte precisava seguir padrões binários. A identidade indefinida do artista abriu margem para discussões acerca das possibilidades de transição entre masculino e feminino, ao mesmo tempo que transformou o performer em um símbolo de resistência estética e cultural, com a libertação do corpo e da arte da repressão normativa.
Contudo, esse nunca foi o propósito de Matogrosso. É o que afirma Thereza Eugenia, em entrevista à Jornalismo Júnior. Fotógrafa íntima de artistas da MPB, ela acompanhou de perto a ascensão do cantor na mídia e fotografou shows marcantes de sua carreira como Homem de Neanderthal, em 1975 e Bandido, em 1976.
“Ele não tinha esse objetivo. Nunca quis ser representante para debate nenhum. Ney fazia o que tinha vontade, queria apenas se expressar porque isso era ele”, relata.
Thereza também é figura essencial para a realização da recente exposição Ney Matogrosso, no Museu da Imagem e do Som em São Paulo. A exposição esteve em atividade entre os meses de fevereiro e março e remontou a trajetória do multiartista, sob fotografias de Thereza, Ary Brandi, Daryan Dornelles e Madalena Schwartz.

[Imagem: Divulgação/MIS]
Sobre sua colaboração na exposição, a fotógrafa ressalta a importância de permitir às novas gerações conhecer a arte de Ney Matogrosso e sua importância. E destaca como sua proximidade com o cantor a trouxe uma visão do artista como pessoa que muitos desconhecem: “Humilde e acessível. Se pudesse resumi-lo em uma palavra seria essência”, comenta.
“O artista não é só aquilo que ele deseja, é quando ele se torna, e sua obra também, alvo e partícipe do processo de significação da construção do seu fazer artístico, é por conta disso que Ney se tornou um referencial. ”
Robson Pereira da Silva, Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia
O impacto
Não satisfeito com a repercussão de sua obra anterior, na qual interpretava um ser animalesco de identidade imprecisa, Ney decidiu objetivar o que era, até então, abstrato: o lugar que ocupava socialmente. No álbum Feitiço (1978), no qual reinterpretou canções de Lupicínio Rodrigues, o cantor introduziu em suas perfomances uma carga homoerótica e dramática nunca antes vista, que provocava o público e a crítica por explicitar sua sexualidade.
Nos anos seguintes, obras como Olhos de Farol (1999) e Atento aos Sinais (2013) reafirmaram sua postura combativa, crítica e libertária. Ney não se tornou um “ícone gay” no sentido clássico: ele sempre rejeitou rótulos, mas, paradoxalmente, foi essa rejeição que o transformou em símbolo de liberdade para a comunidade LGBTQIA+.

[Imagem: Divulgação/Daryan Dornelles]
Em conversa com a Jornalismo Júnior, Vange Milliet, cantora e compositora, que esteve ao lado do artista no show “Isca de Polícia + Ney Matogrosso”, reflete a maneira ao qual o processo de revolução realizado por Ney se deu. Segundo ela, o rompimento de padrões se estabeleceu de forma natural e não panfletária, o que gerou admiração do público pela sentimentalidade que era expressada e o “espírito de verdade” transmitido. “Ele conseguiu explicitar um ‘estado de liberdade’. Não há como se opor a tanta autenticidade, verdade e coragem. Nem ele mesmo poderia impedir esse transbordamento”, afirma Vange.
“Quando era pequeno não tinha ninguém para me espelhar. Não tinha alguém na TV que eu olhava e falava: ‘Eu posso ser isso’. Até que conheci o Ney, mas ele era uma divindade, muito distante de mim.”
Pabllo Vittar, POPline