Imagem: Audiovisual / Jornalismo Júnior
Por Ana Gabriela Zangari Dompieri | anagabrielazd@hotmail.com
O Segundo Olhar (Companhia das Letras) é uma antologia de poemas de Mario Quintana, organizada pelo escritor e professor universitário João Anzanello Carrascoza e publicada em 2018. O título do livro se deve ao poema homônimo, no qual é ressaltada a beleza das coisas que não chegaram a receber atenção mais de uma vez.
Carrascoza buscou aplicar o segundo olhar a mais de 50 anos de obra de Quintana com esse objetivo: o de apreender e repassar, em essência, a visão de mundo do poeta. Mario seria o melhor para avaliar a construção. Em seu poema “Intérpretes”, ele afirma: “Mas afinal, para que interpretar um poema? O poema já é uma interpretação”. Assim nota-se quão ambicioso foi o alvo de Carrascoza. O selo de fidelidade de Mario Quintana não seria conquistado de qualquer jeito. O autor gaúcho recebeu importantes prêmios, como o Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, e faleceu em 1994.
Na falta do poeta, o que talvez possa ser dito é que surgem pontos surpreendentes no desenrolar da tentativa. Na leitura leve e rápida, o leitor é pego de supetão algumas vezes – tanto por insights de Quintana, em cada poema, quanto de Carrascoza, na cuidadosa costura. Qualquer um pode ler os textos contemplados na antologia. A leitura é acessível, os pequenos e agradáveis sustos podem ser sentidos por um amplo público.
Fator central a que se devem as boas surpresas do livro é o encadeamento que Carrascoza conseguiu organizar. O critério para a construção da sequência de poemas não é a cronologia de sua escrita. O método é se aproveitar de ganchos com poemas consecutivos (como se um puxasse o outro), ou com a parte do livro em que o poema se localiza.
O início do livro, por exemplo, choca de tão bem encaixado. O primeiro poema é “Epígrafe para uma Antologia Lírica”; o segundo diz “O mais difícil da arte de escrever é quando temos de redigir // as dedicatórias”; o terceiro é “Dedicatórias”; o quarto, “Projeto de Prefácio”; e o quinto, “Da Paginação”. Por um momento não se sabe quem escreveu aquilo, Carrascoza ou Quintana. Parece improvável que o professor tenha conseguido garimpar e compilar esses textos da obra de Quintana de modo tão favorável ao desejado.
O mesmo acontece no final do livro, com “Leitura Interrompida” e “ Último Poema”.
Com pequenas oscilações, essa fluência permanece no decorrer de todo o livro – é ela que o produz, que faz o virar de páginas. Um dos exemplos que variam um pouco, mas seguem a lógica dos ganchos, aparece quase no meio do livro. A página 48 tem apenas dois poemas curtos. O primeiro chama-se “Verão”, e o segundo, também.
A trama tecida por Carrascoza concilia ritmos e tamanhos discrepantes. A página 82 conta com três versos, e a 83, sua dupla, é preenchida do início ao fim, por 19 deles. Mas a trinca de páginas da 64 à 66 só permite poemas de uma estrofe. E a 60 e 61 são de poemas de nada mais que um verso. O tratamento pouco uniforme que se dá a esse tipo de problema formal permite que o leitor se instigue e não que se desencoraje a ler a colcha de retalhos. Pode até se fazer incrédulo caminhando sobre desníveis, mas enfrenta as disparidades sem que cheguem a ser obstáculos.
O clima geral do livro é para cima, e se pode falar em clima geral, porque, por culpa da costura, chega a parecer que o livro todo é um poema só, como no que se inicia na página 66 e se estende até a seguinte:
“Gestos
A mão que parte o pão
a mão que semeia
a mão que o recebe
– como seria belo tudo isso se não fossem
os intermediários!
Os Intermediários
Nunca me acertei bem com os padres, os críticos e os canudinhos de refresco
Ah, Mundo…
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
– rotos e felizes! –
por essas estradas do mundo.”
O recorte da obra poética de Quintana faz-se parecer também com algo tão intimista quanto um caderno seu, com registros que vão de lembretes de dois versos para uma maior inspiração futura, como “Anotação para um Poema”, a “Soneto”, passando por pequenas sacadas suas que gostaria de guardar:
“Vento
pastor das nuvens.”
Graficamente, o livro também traz a estética das anotações na capa, com uma série de imagens de registros feitos à mão – são, na verdade, grafismos criados a partir da assinatura do autor. No todo, a parte gráfica se alinha com o absorvido da obra.
As tiras coloridas e retas da capa disfarçam as anotações, o que lembra o tom humorístico muito recorrente no lirismo de Quintana. As próprias cores, fortes, claras e alegres, falam da sua simplicidade e traduzem a heterogeneidade dos textos que serão encontrados no livro. No decorrer das páginas creme, às vezes aparece uma lilás; são os citados insights que nos roubam uma surpresa. E os escritos emaranhados da capa, serão desenrolados com naturalidade pela linha condutora que escreverá a coletânea que se segue.
As imagens poéticas de Quintana são destacáveis. Muitas de suas referências são coisas do cotidiano, conceitos bem delimitados: “Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página (…)” (Tristeza de Escrever); em outra página Saturno faz bambolê (Astronomia), e “aviões abatidos são cruzes caindo do céu” (Guerra). Essa singeleza é justamente o que faz o leitor captar a profundidade da imagem criada, como em “Os Poemas”:
”Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem (…)”
Difícil dar um segundo olhar ao segundo olhar de Carrascoza sobre O Segundo Olhar de Quintana. É o cúmulo da função de intermediário, que, a exemplo dos padres e dos canudinhos de refresco, não agrada muito ao poeta. Se não se pode ter certeza que a interpretação de Carrascoza é precisamente a de Quintana, talvez se possa dizer qual é o impacto sentido a partir da fusão do trabalho dos dois.
Ao terminar o livro a sensação que fica é a de que é fácil estar aqui, de que é relativamente simples. Uma simplicidade que não menospreza, mas sim elogia e resgata o que há de mais franco, a atenção às coisas do entorno. A antologia parece ter caído como uma luva na época da internet, em que só nos entretém aquilo que não contém falhas, ou que tem as falhas perfeitas para o conjunto da perfeição – como a cicatriz no canto esquerdo da sobrancelha do galã do filme. Se não é plástico rosa chiclete não tem chance para agradar aos olhos – o prazer tem que caber no primeiro olhar, não disponibilizamos nenhum outro. Somos ansiosos visuais.
Nos acostumamos a ter satisfação com cada vez mais explosões, com um amor mais maluco, com efeitos especiais mais fantásticos, quando na verdade – ou pelo menos na acolhedora verdade de Quintana -, nos faltaria olhar o aqui e o agora. Isso bastaria para nos satisfazer e, ao mesmo tempo, nos acalmar pela segurança que dá ver a solidez das coisas que simplesmente são e estão. Ler O Segundo Olhar é um movimento que tem se tornado raro: o de deixar de lado a sensação de inconstância, fragilidade e ausência gerada pelas telas. Quintana provoca o reencontro da graça no corriqueiro, nas figuras comuns, nos objetos.
É como se fôssemos transportados àquela época dos nossos primeiros olhares de fato. Eram naturalmente atenciosos e pouco banais. A continuidade das linhas que rodeiam um objeto já era intrigante por si. Ou das infinitas linhas que o preenchem, que formam sua textura. Ou ainda seu balançar no vento, ou sua inacreditável e espetacular capacidade de permanecer indefinidamente estático.
Quintana provoca o reencontro da graça no corriqueiro, nas figuras, nos objetos.
A naturalidade bem pensada e executada na organização de Carrascoza não atrapalha o contato do leitor com essa sensação: só colabora, porque essa organização constrói sobre blocos de poesia, em uma linha simples de se acompanhar. É por conta do trabalho de Carrascoza que o leitor consegue se familiarizar com o clima de simplicidade, singeleza e fluidez, sempre com algumas surpresas, de Quintana. O trabalho de Carrascoza ajuda a provocar o retorno do olhar do leitor à beleza do tangível, do belo e tangível como o próprio livro.