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Ensaio | 15 anos de ‘Cisne Negro’: um retrato do desumanizante mundo do balé clássico

O balé de emoções de uma dançarina em busca da perfeição reflete as maiores dificuldades enfrentadas pelas bailarinas em sua carreira
Por Livia Bortoletto (liviafb@usp.br)

No dia 3 de dezembro de 2010, há 15 anos, Cisne Negro (Black Swan, 2010), dirigido por Darren Aronofsky, chegava aos cinemas dos Estados Unidos. O filme é uma mistura de suspense e terror psicológico, que mostra a trajetória de Nina Sayers — interpretada brilhantemente por Natalie Portman —, uma bailarina delicada e esforçada que sempre sonhou com a chance de se destacar na companhia por meio de um grande papel. Essa oportunidade surge quando Thomas Leroy (Vincent Cassel) anuncia que irá escolher uma nova bailarina para a encenação de Lago dos Cisnes, pois Beth MacIntyre (Winona Ryder), que foi a protagonista na apresentação durante muitos anos, iria se aposentar da carreira na dança. 

O balé Lago dos Cisnes, de Piotr Ilitch Tchaikovsky, conta a história de Odette, uma princesa que foi transformada em um cisne branco por um mago. Para quebrar a maldição rogada sobre a jovem, é preciso um amor verdadeiro. Porém, Siegfried, o príncipe que a amava, é seduzido por Odile, o cisne negro, e quebra o seu juramento de fidelidade à Odette. Há diversas versões do final da obra, mas a mais conhecida, e retratada em Cisne Negro, é aquela em que Odette se suicida.

Nina sempre sonhou em ser uma bailarina de destaque na companhia em que trabalhava [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

A trama do filme se dá pelo fato de que Thomas decide que os dois cisnes, tanto Odette como Odile, devem ser encenados pela mesma bailarina. Nina é perfeita para o papel do cisne branco: é frágil, graciosa e sensível como Odette, além de ter perfeição técnica. O problema, contudo, está em encenar o cisne negro, que é malicioso, sensual e agressivo.

Para conseguir participar dos dois papéis, Nina precisa se aproximar do pior lado de si mesma, representado no filme como uma espécie de “gêmea má”. O preço que Nina paga pela ambição de ser perfeita é o declínio completo de sua saúde mental.

O desumanizante mundo do balé

O longa retrata, de modo realista, o desgaste físico e mental exigido na profissão de bailarina, que, como mostra Aronofsky, vai muito além dos pés machucados e das lesões. É um ambiente de violência psicológica, permeado por estresse, ansiedade e competição.

Nina é pressionada pelo seu treinador a atingir a perfeição em todas as suas performances e é constantemente humilhada e comparada com outras bailarinas. Thomas quer que ela se entregue aos papéis por completo, independentemente do que isso irá lhe custar. Além disso, há a competição com as outras bailarinas, especialmente Lily (Mila Kunis), com quem ela disputa o papel de cisne negro. 

Devido a todas essas pressões, Nina se isola socialmente. Seu mundo se resume ao balé e à relação com sua mãe. E esse relacionamento também é permeado por problemas profundos: Erica (Barbara Hershey), uma ex-bailarina, projeta as suas ambições fracassadas em Nina, compondo mais um dos elementos de pressão pela perfeição na vida da jovem.

A mãe a critica constantemente, apontando os obstáculos na vida da filha de modo sutilmente cruel. Erica é superprotetora e manipuladora e demonstra enorme irritação quando sua filha, de 28 anos, a desobedece. Ela infantiliza e controla Nina, inibindo seu desenvolvimento como mulher adulta.

Nina também se sente pressionada em relação ao próprio corpo — outro aspecto muito comum na dança profissional. Isso fica evidente na cena em que Erica compra um bolo para comemorar após a filha ter conseguido o papel em Lago dos Cisnes. A jovem demonstra preocupação e certo desespero ao ver a sobremesa e hesita em comer uma fatia muito grande. A mãe, em mais um de seus acessos de raiva, se irrita com a filha e diz que irá jogar o bolo no lixo — mais uma evidência de seu comportamento descontrolado e obsessivo.

Em meio a esse contexto desumanizante em que Nina — e muitas outras bailarinas fora da ficção — vive, ela começa a se cobrar excessivamente, tentando atingir tanto a expectativa de Thomas e de sua mãe, como a perfeição a que ela tanto almeja.

Essa obsessão pelo impecável arruína a sua saúde mental: a jovem começa a ter alucinações e a ferir às próprias costas cada vez mais intensamente ao longo do filme. A pressão do ambiente cruel e competitivo da dança clássica levou Nina a acreditar que um fracasso no balé seria o mesmo que um fracasso na vida. 

A rivalidade feminina e o etarismo no balé

O filme também ilustra um aspecto latente das companhias de balé: a rivalidade feminina entre as bailarinas. Aronofsky personifica esse fenômeno por meio de uma relação específica, a de Nina e da novata Lily. A protagonista passa ter uma certa fixação pela moça, muito incentivada pelas comparações que Thomas faz entre ambas.

Nina sentia medo de ser substituída por Lily no Lago dos Cisnes, pois a novata era perfeita para o papel do cisne negro: dançava com desenvoltura e naturalidade e era sensual em sua essência. Esse fato também é ilustrado perfeitamente no âmbito visual, já que Lily possui uma tatuagem de asas pretas nas costas e sempre veste roupas pretas.

Na medida em que as alucinações de Nina aumentam, ela começa a ter visões irreais também com Lily. A protagonista passou a ser obcecada pela ideia de que a novata iria roubar o seu lugar na peça e no coração de Thomas. E essa ideia é reforçada quando, em um dos dias de ensaio, Nina chega atrasada e encontra Lily ensaiando em seu lugar para o papel do cisne negro.

Isso faz com que a protagonista entre em desespero e ensaie até a exaustão. E esse esforço excessivo levou Nina a ter mais alucinações, na interpretação do público. A moça vê Lily e Thomas se beijando. Em outras cenas, também tem alucinações em que transa com Lily e outra, mais ao final do longa, e em que a mata com um pedaço de um espelho. 

A rivalidade feminina também é representada por meio da personagem de Winona Ryder. Aqui, Aronofsky mostra não só a competição entre as bailarinas, mas também o etarismo presente no mundo da dança. Beth, que era a principal bailarina da companhia, é substituída na dança do Lago dos Cisnes, por ser considerada “velha demais”. Isso gera um conflito entre ela e as outras bailarinas, principalmente com Nina, que a substitui.

O diretor ilustra de forma chocante — talvez com o objetivo de chamar a atenção para essa questão — a consequência psicológica dessa troca para Beth: ela tenta o suicídio e passa a não conseguir mais andar, e, consequentemnete, dançar. Quando Nina vai visitá-la no hospital e a diz que seu trabalho era perfeito, Beth diz que “agora é nada”.

Beth entra em crise após ser negligenciada na companhia por ser considerada “velha demais” [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

O assédio dos treinadores

O assédio sexual e moral por parte dos técnicos é outro aspecto cruel do mundo da dança. Muitos deles se aproveitam do fato de que a carreira e o sucesso das jovens depende de seu auxílio e aprovação para agir de forma desrespeitosa ou tomar atitudes de cunho sexual sem consentimento. 

Um exemplo de caso como esse envolve o ex-diretor da New York City Ballet (NYCB), Peter Martins. Em 2017, mais de vinte bailarinas denunciaram o coreógrafo por assédio sexual e abuso verbal e físico. Peter se demitiu após as acusações, mas não recebeu nenhum tipo de punição judicial.

Aronofsky explora esse problema em Cisne Negro com o personagem Thomas. Ele critica e humilha a jovem constantemente e a leva ao extremo de sua capacidade física e mental. Sob a alegação de “libertá-la” para o papel do cisne negro, Thomas toca no corpo da jovem sem a sua permissão.

Thomas se aproveitava das fragilidades de Nina para assediá-la [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

A mesma situação ocorria com as outras bailarinas, inclusive Beth. O treinador fazia as moças acreditarem que precisavam de seu amor e favoritismo para que pudessem ascender profissionalmente. Manipulada também por essa ideia, Beth, quando é substituída por Nina, se sente abandonada e rejeitada por Thomas e acusa Nina de estar envolvida em um caso amoroso com ele.

O declínio da sanidade 

Apesar das hipérboles da ficção, Aronofsky também mostra no filme a realidade de degradação física e mental das bailarinas devido ao estresse e às pressões de múltiplos lados. Aos poucos, Nina começa a ter alucinações em que vê reflexos de si mesma no metrô, no espelho e até caminhando na direção oposta à dela. É como se esse reflexo fosse a versão “má” de si mesma, o próprio cisne negro invadindo a mente da jovem.

Também passam a aparecer machucados em suas costas, causados por suas próprias unhas. A ambivalência da psique de Nina — entre o amor e o ódio, o prazer e a obrigação, o viver e morrer — é representada visualmente por Aronofsky por meio da oposição entre as vestimentas de Nina: no começo, quando a bailarina ainda era a representação do cisne negro, elas eram claras; já do meio para o final do filme, elas eram escuras, remetendo à apropriação de Odile sobre Nina.

A grande transformação da bailarina se dá quando ela vai a uma balada com Lily e consome um tipo de droga. É a partir desse momento que Odile passa a se sobressair na personalidade de Nina e a jovem perde sua inocência. Seu comportamento passa a ser confuso e de rebeldia: ela discute com a mãe, finalmente deixando claro que não quer ser tratada como se fosse uma criança. 

O quadro de Nina passa a piorar cada vez mais, até atingir o pior estágio no dia do espetáculo. Antes de a bailarina acordar, Erica havia ligado para a companhia e dito que Nina não poderia se apresentar, pois não estava se sentindo bem, o que deixa a jovem furiosa. Ela corre para o teatro e encontra Lily ensaiando em seu lugar, o que faz com que o delírio a domine em absoluto. Em uma cena de atuação impecável de Natalie Portman, Nina tem uma nova alucinação, em que supostamente discute com a novata e a mata com um pedaço de espelho quebrado. 

A sua transformação por completo em Odile se dá durante o terceiro ato do Lago dos Cisnes, em que de fato o cisne negro domina a narrativa. Nessa cena, Aronofsky dirige brilhantemente a metamorfose de Nina: ela ganha asas pretas e as feições do cisne negro enquanto dança. Ao fim do espetáculo, o espectador descobre que a alucinação de Nina quanto a matar Lily não havia sido apenas em sua cabeça; ela havia apunhalado a si mesma com o pedaço de espelho, e o sangue se espalhava por seu vestido. A bailarina sacrificou a própria vida pelo sucesso.

Aronofsky dirige brilhantemente a transformação de Nina no próprio cisne negro [Imagem: Reprodução/The Movie Database]

A Odile que residia dentro de Nina teve que matá-la para surgir por completo, pois ela mesma era o obstáculo para a própria perfeição — uma metáfora de Aronofsky para mostrar que não é possível que o ser humano atinja a perfeição. Após o fim da apresentação, quando a essência da moça havia sido totalmente aniquilada e o domínio do cisne negro estava completo, Nina proclama suas últimas palavras: “Eu senti. Foi perfeito”.

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