Entre os dias 23 e 25 de abril, ocorreu o festival Na Janela Reflexos – Diálogos Literários, organizado pela editora Companhia das Letras. O evento — cujo início coincidiu com o Dia Mundial do Livro — foi composto por diversos encontros literários on-line, durante os quais autores da ficção contemporânea brasileira entrevistaram outros autores, em uma conversa livre sobre leitura, personagens, processos de escrita e carreiras. Nesta edição, ainda em tempos da pandemia de Covid-19, o festival reforçou o compromisso social e incentivou o público a contribuir com os projetos Mães da Favela e Tem Gente Com Fome. Confira a segunda parte da cobertura realizada pelo Sala33.
Dia 25: Diálogos literários com Alejandro Chacoff & Noemi Jaffe
Por Thiago Gelli
Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira, crítica literária e autora de longa data — seu nome está na capa de quatro obras diferentes publicadas pela Cia. das Letras. Alejandro Chacoff é crítico e ensaísta, com passagem pela revista Piauí e publicações estrangeiras como a The New Yorker — em 2020, publicou seu primeiro romance, Apátridas .
Ambos foram selecionados para abrir o último dia de atividades do festival Na Janela. O diálogo entre críticos, e entre estreante e veterana, se fez frutífero em abordagens quanto ao tempo, ao cenário político-social e aos mecanismos de percepção e subjetividade.
Os pontos de discussão centrais foram as últimas obras publicadas pelos autores: para Alejandro, o semiautobiográfico Apátridas — sobre um narrador que transita por regiões do globo desde sua infância —, e para Noemi, O que Ela Sussurra (2020)— drama de Nadejda Mandelstam, personalidade real, sob o regime stalinista.
Na conversa, discutiram a relação com o tempo sob circunstâncias extremas, tal qual uma pandemia ou o totalitarismo. “A única tarefa extraordinária a que dedico afinco atualmente é frear a passagem do tempo”, diz Nadejda em Sussurra, citada por Alejandro na conversa. O debate sobre as “camadas” e a “espessura” do tempo ilustrou bem uma das potencialidades da literatura levantadas em pergunta da audiência: a de representar o amorfo e o ignorado.
Alejandro e Noemi também exploraram a inserção de si no drama narrado, seja pelas referências à mãe da autora em sua obra ou pelos paralelos entre o protagonista de Apátridas e a vida do autor. Para eles, o escritor é um “remexedor” e um lunático, que observa e cria muito mais do que meros relatos. Como Chacoff diz, “uma história é muito pouco”.
Mesa 7: Luiz Ruffato e Tércia Montenegro
Por Luisa Costa
A penúltima mesa do festival começou às 17 horas do domingo e foi protagonizada pelos autores Luiz Ruffato e Tércia Montenegro, que conversaram sobre seus processos de escrita, obras literárias e visões de mundo. Luiz Ruffato é escritor premiado nacional e internacionalmente, autor de romances como Eles eram muitos cavalos (2001), Estive em Lisboa e lembrei de você (2009) e O verão tardio (2019). Já Tércia Montenegro é fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará, autora de O tempo em estado sólido (2012), Turismo para cegos (2015), Em plena luz (2019) e outras obras.
A discussão entre os autores foi uma divertida conversa, na qual a partilha de experiências foi acompanhada por muitas risadas e por admiração mútua. Ao discutirem seus processos de escrita, Luiz e Tércia perceberam que são bastante diferentes: enquanto Luiz não faz planejamento algum para a construção de suas narrativas, Tércia disse ter paixão pela pesquisa prévia, pois permite que ela experimente a vida dos personagens que constrói. Já Luiz afirmou que apenas deixa que a narrativa amadureça em seus pensamentos: “Quando vou escrever, a história já está convivendo comigo há muito tempo; conheço o personagem o suficiente para que ele tenha confiança em mim e deixe que eu a conte.”.
Tércia levantou outra discussão interessante, sobre como cada livro é a solidificação de um momento, assim como a fotografia. “É um processo catártico que invariavelmente me coloca em algum lugar; é um testemunho de cada etapa da minha vida”, afirma. Luiz não tem a mesma percepção. Para o autor, suas obras não estão ligadas especificamente a um momento de sua experiência pessoal, mas a decisões estéticas. Ele afirmou que procura que cada livro seja totalmente diferente do anterior em termos formais, transitando pelas histórias de modos muito singulares.
Luiz e Tércia também discutiram sobre uma espécie de rótulo que às vezes é colocado sobre eles e sobre suas obras, enquanto mineiro e cearense, respectivamente. Luiz contou que é comum ser visto como “autor mineiro”, que escreve sobre Cataguazes; assim, suas narrativas seriam alvo de alguns preconceitos. Tércia compartilhou da percepção do autor e disse que já se esforçou em alcançar certo universalismo e neutralidade, mas percebeu que estes não existem. “Em um momento falei ‘Chega, preciso deixar essa besteira de conter o nome da minha cidade [Fortaleza] e abandonar essa espécie de autopreconceito e autoboicote”, afirma a autora. Mas ela explica que isso não se transformou em uma militância: “Não me obrigo a fornecer sempre uma localização muito explícita para as narrativas”.
Luiz Ruffato e Tércia Montenegro discutiram ainda outros aspectos relacionados a suas trajetórias e seus interesses, partindo também de questões fornecidas pela colaboração da jornalista Adriana Couto ao final.
Dia 25: Diálogos Literários com Natalia Borges Polesso & Marcelo Ferroni
Por Thiago Gelli
Para o encerramento do festival, Natalia Borges Polesso, autora de Controle (2019), e Marcelo Ferroni, autor de O Fogo na Floresta (2017) e outros livros, se juntaram às 19h para compartilhar histórias, experiências e comentários.
Grande parte do debate veio da colaboração de ambos os escritores em Corpos Secos (2020), thriller de ficção científica também escrito por Luisa Geisler e Samir Machado de Machado — participantes da mesa de abertura do Na Janela. A obra, que se trata de distopia (não tão distante) sobre um Brasil sem lei assolado por uma doença fatal, foi produzida antes da pandemia da Covid-19, mas, em retrospecto, provoca em ambos reflexões sobre o período e a escrita de ficção.
Marcelo, também editor, destacou como observa o aumento no fluxo de livros voltados para a fantasia em meio à crise, possível sintoma de anseio coletivo pela fuga da realidade, enquanto Natalia citou o gênero distópico como perspectiva de futurismo e descoberta.
A partir disso, o fluxo da conversa se direcionou para a construção de personagens e ambientes, peça que Natalia julga fundamental para a qualidade de qualquer obra. Em suas observações, o par explorou questões que atazanam muitos autores e apreciadores de literatura: o que faz uma boa personagem? Quanto de si é implicado às personagens? E, assim, como se faz a representatividade?
Natalia, como mulher lésbica e criadora de personagens lésbicas, apontou mais abertura, mais autores independentes e mais traduções que fazem parte de uma mudança social que hoje molda a literatura conectada a seu novo público.
A edição do festival Na Janela chegou a sua conclusão com perguntas da audiência e clima descontraído. A mensagem final foi a exaltação de personagens multifacetadas e não maniqueístas, desconcertantes para o leitor.
A íntegra do Na Janela Reflexos – Diálogos Literários está disponível no canal da Companhia das Letras no YouTube.