Jornalismo Júnior

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Concreto e diversidade no coração de São Paulo

Um perfil da Praça Roosevelt, que apresenta seus problemas e conflitos, mas mesmo assim continua acolhendo todos os perfis que passam por lá.

Por Fernanda Pinotti (fsilvapinotti@usp.br)

Em pleno centro paulistano, não são apenas a Rua Augusta e a Avenida Consolação que se encontram, na Praça Roosevelt as mais diferentes tribos convivem em harmonia ─ ou quase ─ no piso de concreto que serve de palco, pista, cama ou apenas chão para os frequentadores.

A praça é grande e sempre movimentada e o cenário é composto por diversidade. De um lado, um grupo de moradores de rua que, sentados em círculo, fazem rimas improvisadas enquanto se utilizam do chão para produzir a batida de fundo; do outro, skatistas que tornam cada banco um obstáculo; mais a frente, duas senhores fazem crochê sentadas ao sol. A Praça Roosevelt tem espaço para abrigar todos os perfis.

Ela promove não só o encontro dessas diferenças, como também a interação entre elas. É impossível passar uma noite na praça e sair de lá sem ter conhecido alguém novo. Murilo, de 20 anos, fala que frequentar a praça é conhecer pessoas com histórias impressionantes e com realidades diferentes, “sempre tem uma roda de conversa, e essa roda se abre pra todo mundo que tá no local.”

Roosevelt também é, historicamente, palco de manifestações culturais e artísticas diversas. O teatro, o circo, a poesia, o rap, a música e o que mais trouxerem, florescem simultaneamente, transformando a praça em um lugar de vida.

(Imagem: Fernanda Pinotti)

O SLAM Resistência, uma competição de poesia que conta com várias etapas até chegar na esperada final, acontece toda primeira segunda-feira do mês. Os poetas se posicionam no centro de um círculo formado por pessoas, algumas que vão apenas para assistir e outras que se aventuram nos momentos iniciais, a declamar algo de sua autoria. Enquanto o microfone ainda está aberto.

Iniciada a competição, as rodadas selecionam os melhores poetas baseadas nas notas dos juízes – pessoas da plateia que recebem uma pequena lousa para isso. Na final, dois poetas se enfrentam, sempre declamando um poema autoral, dentro do limite de tempo de três minutos. Conforme a competição avança, a qualidade, que já costuma começar alta, sobe cada vez mais, junto com a frequência de vezes que os pêlos ficam arrepiados.  Os poetas costumam retratar a realidade das periferias, da resistência negra e do empoderamento feminino.

O SLAM é uma forma mundialmente utilizada para popularizar a poesia, historicamente reconhecida como expressão exclusiva das elites. Na Praça Roosevelt se expressa quem quiser, quem aparecer por lá, quem tiver algo a dizer.

Toda quarta-feira se encontram também duas tribos distintas naquele chão de concreto. Se de um lado uma batalha de rimas improvisadas acontece; do outro, bambolês, bolinhas e claves vão para o ar no que os circenses chamam de Encontro de Malabares. Os artistas de circo se reúnem e praticam lado a lado contorcionismos, malabares e estranhezas que apenas o circo proporciona, transformando a praça em um borrão de cores e movimento. Os circenses dizem que é essencial existir um espaço como esse, grande e aberto para que todos possam aparecer e ensaiar juntos, sem empecilhos.

(Imagem: Fernanda Pinotti)

A Batalha da Roosevelt acontece há alguns passos de distância. Os concorrentes improvisam rimas na hora e qualquer um pode se inscrever para disputar por alguns minutos. Avança para a próxima rodada aqueles que a plateia decidir, por meio do barulho, que foram melhores. O clima de amizade entre os competidores que estão lá toda semana é visível, a maioria se conhece e já batalhou junto mais de uma vez.

No início da disputa, que começa às 20h e costuma durar até de madrugada, o chapéu é passado pra todos contribuírem com o prêmio do vencedor final. Porém, não é preciso ter dinheiro para fazer a contribuição, de chicletes a fones de ouvido usados, qualquer coisa pode ser acrescentada ao chapéu. Conflitos com a polícia não são raros, geralmente com o pretexto de barulho após o horário permitido, eles tentam acabar com a batalha mais cedo, mesmo que não sejam usados microfones ou caixas de som. Flor, uma das garotas que participa das batalhas, ressalta a importância de ocupar o espaço público, trazendo a cultura da periferia pro centro da cidade. “Sempre rola de parar a polícia pra encher o saco. Eu acho que muitas pessoas ocupando o espaço público de forma cultural incomoda, por isso a importância da batalha continuar acontecendo.”

Não é apenas com a batalha de rimas que o policiamento da praça implica, estão instalados ali dois postos, um da Polícia Militar (PM) e outro da Guarda Civil Metropolitana (GCM). Os conflitos ocorrem constantemente. Nas conversas com frequentadores, o assunto da repressão policial era quase sempre trazido à tona. Enquanto uns dizem que preferiam a praça antes da reforma, sem os postos policiais, outros afirmam que o espaço necessita de policiamento, porém estão descontentes com o modo que a polícia age.

(Imagem: Fernanda Pinotti)

Caio, de 28 anos, passeava com seu cachorro durante a tarde, quando notou agentes da GCM impondo que um microfone fosse desligado. Ele fala que a Praça se torna menos atrativa para todos por conta de ações como essa, “vira um espaço para o qual você vem e gosta, mas onde você se sente inibido.” Nilo, de 32, concorda e classifica a ação como “policiamento repressivo”. Ele acha necessário a presença dos guardas, porém apenas para garantir a segurança dos frequentadores, e não para reprimir as diversas expressões que tentam ocorrer diariamente.

O microfone, que por imposição permaneceu desligado, conduzia uma roda de discussão política que propunha debater o atual cenário brasileiro. A roda continuou o debate mesmo sem caixa de som, sob os olhos atentos da polícia. Murilo, de 25 anos, participava da conversa e ficou revoltado com a ação policial. “Num país onde a gente tem liberdade de expressão, proibir o uso do microfone em um domingo à tarde, em praça pública, é absurdo.”

Até mesmo os mais conservadores têm ressalvas quanto ao policiamento da praça. Carlos, de 56 anos, acompanha seu filho Bruno, de 11, que gosta de andar de skate no local. O pai não gosta muito da praça pois acontece lá muita “baderna”, mas fica revoltado ao observar situações nas quais a arte é reprimida. “Outro dia, tinha um pessoal fazendo um trabalho bonito, pintando uma faixa que eles mesmos trouxeram, e os guardas foram intimidá-los.”

A “baderna” a qual Carlos se refere acontece pois a Praça Roosevelt serve como ponto de encontro dos jovens da cidade. Lá, passam as noites de fim de semana ouvindo música, bebendo, conversando e conhecendo pessoas novas. Cascão, de 20 anos, frequenta o lugar com os amigos quase todo dia, a Praça representa para eles “o rolê”. É onde vão quando querem encontrar os amigos e sair do tédio. É também ideal para se fazer novas amizades. Nas noites de fim de semana, os bancos quadrados estão sempre cheios e promovem a integração de todos, seja compartilhando bebidas ou a famosa “pizza de 10”, que começa a ser vendida ali no começo da tarde e só acaba quando a manhã chega.

(Imagem: Fernanda Pinotti)

A Praça Roosevelt também é considerada ponto de encontro dos skatistas da cidade de São Paulo. Não é exagero falar que eles tomaram parte da praça para si. É preciso andar atento. Próximo à Avenida Consolação, skatistas cruzam o espaço constantemente e quando param para sentar nos degraus da escada, conversam e descansam por pouco tempo, antes de voltar para cima da prancha. Com o barulho das manobras batendo no chão de fundo, Tiago, de 21 anos, verbaliza a realidade de muitos que vão para a praça andar de skate. “A Roosevelt pra mim é uma válvula de escape pra eu esquecer dos meus problemas, eu venho andar aqui pra curtir e ficar mais tranquilo”. Tiago ainda acrescenta que há pouco tempo atrás aconteciam mais eventos relacionados ao skate e a Praça ficava lotada nessas ocasiões. Desses tempos pra frente, o local começou a ficar abandonado, já é possível ver os sinais de desgaste na construção.

Ao redor da praça estão vários prédios com numerosos moradores, que apesar de terem vista privilegiada para o palco de cultura que é a Roosevelt, não tem escolha quando se trata de encerrar o show. O barulho após o horário permitido é a grande queixa dos moradores.

Nilza, de 62 anos, mora em frente a Praça desde que tinha 28. Para ela, o barulho constante atrapalha, “as pessoas ficam na escadaria gritando, cantando e tocando instrumento musical até tarde da noite.” Ela gosta de ver a praça cheia e movimentada, porém é difícil conseguir dormir nos finais de semana, quando o barulho é maior. Também fala da diferença entre o local antes e depois da reforma que ocorreu em 2012. “Tínhamos o problema dos mendigos e moradores de rua, havia muito tráfico de drogas, era um local abandonado. Depois da reforma isso melhorou muito, mas agora temos barulho à noite.”

(Imagem: Fernanda Pinotti)

A reforma que ocorre em 2012 e muda completamente o formato da praça foi resultado de um esforço conjunto dos moradores e dos principais ocupantes na época de 2000, os grupos de teatro. Uma das ruas da Praça Roosevelt é ocupada apenas por companhias de teatro. Dentre os mais de cinco estabelecimentos que se encontram na mesma calçada, um deles é o Teatro Studio Heleny Guariba, no qual Dulce Muniz, de 71 anos, é diretora. Ela conta sobre como aquela calçada é, historicamente, um local de resistência cultural e discussão política. O número 184, local que o teatro ocupa, já abrigou parte do lendário Cine Bijou, o Cine Clube Oscarito e o Teatro de Câmara de São Paulo. O estabelecimento hoje possui este nome em homenagem a diretora e mentora Heleny Guariba, com quem Dulce estudou no Teatro Arena — uma das maiores expressões de teatro de esquerda do Brasil. Heleny via na arte uma forma de denúncia e resistência contra o regime ditatorial brasileiro. Na década de 70, foi capturada e assassinada pelos militares.

Os teatros da Roosevelt parecem encarar a arte da mesma maneira que Heleny, como forma de expressão política. Não fossem eles, a praça jamais teria sido reformada e reocupada pelo povo. Dulce explica que o modelo arquitetônico do local, construído na década de 70 pelos militares, tinha sido planejado para “impedir manifestações, aglomeração de pessoas e ocupação.” O arquiteto Sun Alex, alguns anos depois, elabora uma tese que confirma essa percepção. Sun escreve sobre como as praças “modernas”, de influência americana, apresentavam obstáculos propositais para impedir o convívio democrático e o uso do local para organizar protestos. De fato, após ser inaugurada como um gigantesco edifício de cinco pavimentos, pareceu se esvaziar no dia seguinte.

(Imagem: Fernanda Pinotti)

Anos depois, o lugar era ocupado pelos moradores de rua, pela criminalidade e pela violência. Apenas a partir da década de 90, o teatro começou surgir no espaço. O Studio Heleny Guariba abre suas portas em 1996 e, com a chegada dos diversos grupos teatrais, pelo menos uma calçada foi salva da degradação que acontecia no ambiente. Até que, em 2011, o edifício central é demolido e a Praça replanejada e reconstruída em 2012. “Os teatros foram fundamentais nessa melhoria. Nós lutamos muito, criamos a Ação Local Roosevelt, tentamos fazer um conselho gestor com os moradores e fizemos muitas reuniões com o Governo pressionando para que houvesse mudança”. Explica Dulce que, mesmo após a demolição do edifício, não se considera satisfeita. Em sua opinião, o concreto, a falta de áreas verdes e a presença avassaladora de skatistas desestimulam a vinda de um público mais familiar e idoso.

A artista também fala que as gestões mais recentes no Governo da Prefeitura impuseram novos desafios à ocupação, como a recente proibição de qualquer tipo de evento de grande porte na Roosevelt. “Não pode ter virada cultural, não pode ter carnaval. Estamos regredindo em relação a ocupação do espaço público.”

(Imagem: Fernanda Pinotti)

A história da Praça Roosevelt é uma representação das manifestações culturais que florescem no Brasil e que, mesmo reprimidas, sempre encontrarão espaço para continuar florescendo. Espero que a praça possa se tornar cada vez mais, nas palavras de Dulce Muniz, “lugar de convívio das várias expressões humanas, artísticas, políticas”, e que cada vez mais pessoas possam aproveitar e participar dessa mistura de todos os tipos.

1 comentário em “Concreto e diversidade no coração de São Paulo”

  1. Matéria muito rica, seja na história mas recente da Praça, seja na identificação dos conflitos entre uso da Praça pelas pessoas para atividades culturais, de recreação ou lazer e a insistência dos serviços da Guarda Municipal e da Polícia Militar em fazer da parte superior da Praça um estacionamento de viaturas ou pátio de manobras. Hoje os serviços públicos de segurança do município e do Estado estão ocupando mais de 30% da área útil da praça. Isso já configura um desvio de finalidade no uso do bem público: Praça.

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