Imagem: Capa do Livro / Companhia das Letras / Reprodução
Por Giovanna Simonetti | g_simonetti@usp.br
O brasileiro pensa que conhece o Rio de Janeiro. Dizem: “Claro, eu já vi Cidade de Deus, Tropa de Elite ou qualquer outro filme que se ambiente na capital carioca”. Ou então: “Óbvio, eu vejo TV, leio o noticiário, sei como o Rio funciona”.
Opa, vamos com calma. Não é bem assim. As relações no Rio de Janeiro – da mesma forma como no restante do Brasil – são bem complexas, ainda mais quando falamos de favelas, tráfico e polícia.
Na Cidade Maravilhosa, mais especificamente nas comunidades, existem hierarquias. Relações de poder, regras de comportamento, códigos de conduta. A maioria não precisam ser ditas: são ensinados ao longo da vida, às vezes uma única vez para nunca mais. Um erro, um deslize, um descuido, pode custar sua vida.
Sobre esse diverso e complicado universo surge o fenômeno literário de 2018, O Sol na Cabeça (Companhia das Letras). O livro, composto por 13 contos, é ambientado na capital carioca e discorre sobre o modo de vida e as relações humanas dentro das favelas. E quem melhor para contar essas histórias do que um local? Geovani Martins é nascido em Bangu e já morou na favela da Rocinha e do Vidigal. Ou seja, vivenciou aquilo que escreve, o que dá uma força enorme ao seu texto.
Com clara inspiração autobiográfica, Martins consegue traduzir em seu livro de estreia ao mesmo tempo crueza e sensibilidade. A realidade das favelas não é bonita, muito menos fácil. Em nenhum momento do livro ela é idealizada. Vemos a face sincera desta vida, especialmente retratado do ponto de vista das crianças e adolescentes. Desta maneira, o autor consegue transmitir de forma muito poética e verdadeira os sentimentos desses personagens, que estão em fase de crescimento e descobrimento.
Com uma linguagem que mescla a informalidade – recheada de gírias locais e palavrões – e a poesia, Geovani nos mostra o mundo a partir de seu ponto de vista. Perpassando temas tabus, os contos abordam as drogas – com destaque para o baseado – e o tráfico, o preconceito e a violência policial. Apesar disso, não os retrata de maneira gráfica, mas sim sutil. Martins sabe equilibrar as palavras de forma a construir um cenário cru, real, honesto sem apelar a violência e choques gratuitos.
Além disso, consegue trazer questões existenciais, que fogem da velha classificação maniqueísta de “bem ou mal”. Vemos seus personagens em uma situação não muito convencional: a de vulnerabilidade. Adentramos em seus psicológicos e temos acesso às suas angústias, medos, sonhos. Existe um contato humanizado do leitor com os personagens, com o objetivo de ultrapassar preconceitos e visões superficiais ou ignorantes de suas realidades. É muito bonito ver que, apesar de vivenciarem horrores diariamente e serem afetados, a universalidade do amor, da amizade, do medo e da esperança ainda existe dentro deles.
Os contos nunca se repetem, e sim se complementam, o que estimula o leitor a querer continuar e descobrir o que será narrado a seguir. Em “Espiral”, Martins trata da discriminação racial e de classe que os moradores das favelas sofrem, que são materializados no medo que as classes mais altas têm quando eles estão por perto. Em “A História do Periquito e do Macaco”, vemos as mudanças na Rocinha depois da instalação das UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora. O candomblé e a diversidade religiosa são abordados em “O mistério da Vila”, ao contar a história de uma mãe de santo. Já em “Sextou”, testemunhamos o abuso de poder e negligência da Polícia.
Em meio a essa diversidade de temas, Geovani consegue imprimir a sua marca. Com realismo, o autor traz originalidade e frescor a um mercado editorial saturado e traz atenção a assuntos importantes. No contexto atual em que nos encontramos, o lugar de fala é necessário. E o de Geovani Martins é mais do que relevante.