A sala de cinema pode ser uma das prisões mais cruéis. Nada naquele lugar me faz pensar que sou livre em algo, que tenho liberdade para fazer qualquer coisa como faria em qualquer lugar. Não tenho liberdade de expressão: poucas palavras que solto, já levo xingos, alertas, às vezes agressões dependendo do volume. Como poderia ser um lugar democrático, se nem posso dizer o que eu penso?
Sou privado da luz solar. Fico horas dentro de uma sala escura, com comida racionada e uma iluminação artificial constante que prende a minha atenção. Aliás, caso eu tenha um iluminador para poder enxergar melhor, voltam os ataques. Permaneço onde não posso ver a cor das ruas, nem ouvir o canto dos pássaros ou as vozes das pessoas.
Não posso usar meu próprio celular. Não que haja um governo maléfico que me proíba, aliás não são raras as vezes que se vê algum transgressor se comunicando na sala. Mas quanto mais uso funções, mais desaprovado eu sou: não posso mandar áudios, atender ligações ou ver vídeos. Já me privaram da natureza, da fala, do sol e, agora, dos meus pertences.
Mas o pior de tudo, definitivamente, é a tortura, que é quase um esquema pós-moderno de lavagem cerebral. Eu fico no escuro, recluso do mundo lá fora, das maravilhas das liberdades, para ficar olhando fixamente para uma tela que pode me fazer rir, chorar, presenciar violência e grandes atrocidades da história. Ou, talvez, um amor daqueles que eu nunca terei. Como pode existir um lugar que escancara as falhas da vida, a dor da morte ou a falsidade do humor e ainda ser palco para o entretenimento e o lazer cotidiano?
Mas aqui está o pulo do gato: Eu faço tudo isso por vontade própria. Eu prefiro, em uma certa tarde de domingo, ter uma das experiências mais arbitrárias que alguém poderia escolher do que outras possíveis programações. E por que? De onde saiu essa vontade da auto privação? De onde surge essa coragem de se exilar do mundo para entrar em uma sala maquiavélica?
Pois é no cinema onde eu me sinto mais livre. Sou livre para viajar, ir aos sete continentes sem sair de uma cadeira. Consigo ir para galáxias novas, planetas inventados, guerras da história e grandes momentos. Posso ver narrativas únicas, amores diferentes e horrores novos, tudo em segurança na minha poltrona.
De fato, eu não posso ver a luz do sol. Não consigo ver a minha terra ou as minhas plantas. Muito menos posso ver as minhas paisagens habituais. Mas, melhor do que isso, tenho a possibilidade de ver centenas de horizontes. Eu vejo as terras de norte a leste, as terras do passado e do futuro. Assisto o poente na França, no Japão e no Quênia. Observo as vegetações jurássicas, as árvores da China feudal e as plantas da Londres futurista (se essas sobrarem).
Então, se me perguntarem: “Mas você prefere, realmente, ver uma tela de cinema do que viver o mundo lá fora?”, eu direi “mas é claro!”. Como pode alguém não querer se aventurar nessa prisão mágica e se permitir chorar, rir, assustar e amar? Por poucas horas, eu abdico de qualquer liberdade para que eu possa, pelo menos um pouco, viver uma vida que jamais poderia viver.
*Imagem de capa: Divulgação/Columbia Pictures