Por Yasmin Constante (yasminconstante@usp.br)
Nesta terça-feira (30), completou um mês desde a inauguração da Rue du Dr. Sócrates — Rua Dr. Sócrates — em Saint-Ouen, cidade próxima à Paris, na França. Segundo a prefeitura da cidade, o nome foi escolhido por motivos para além do talento do ícone no futebol, mas também por sua luta pela democracia. Por ser um dos criadores da Democracia Corinthiana — que inclusive é citada na placa — e por sua ativa participação no movimento das ‘Diretas Já’, Sócrates se tornou para o povo um símbolo na luta contra a Ditadura Militar. A via fará parte da Vila Olímpica, que receberá os atletas nos próximos Jogos Olímpicos, sediados em Paris neste ano.
Em 2021, dez anos após sua morte, a Editora Grande Área publicou uma biografia em homenagem ao Eterno Doutor.
As muitas faces do jogador
“A vida não refletida não vale a pena ser vivida”
Sócrates, por volta do século 5 a.C.
A frase é do filósofo ateniense, mas descreve perfeitamente o pensamento de seu homônimo, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, médico e jogador de futebol, nascido 25 séculos depois, em Belém do Pará.
É o jornalista Andrew Downie o responsável por contar a vida e história dessa importante figura. Através de técnicas jornalísticas, o autor trabalha com diversas fontes durante todo o livro e cita cada uma delas nas últimas páginas. Graças a recursos como este que o leitor pode sentir segurança no que foi escrito e ser transportado para os anos relatados, sentindo todas as emoções que atravessaram a trajetória do jogador, desde o início de sua carreira no Botafogo de Ribeirão Preto, quando ainda era estudante de medicina, até seus últimos dias de vida.
A obra analisada faz parte de uma edição limitada, com prefácio escrito por seu irmão mais novo — e também jogador de futebol —, Raí. O ex-jogador do São Paulo fala de seu irmão com muita admiração, como um grande craque e também símbolo de um movimento pró-democracia. “Sócrates não tinha medo de se entregar aos deleites, delírios, abismos e transbordamentos do que ele considera sua maior obsessão: a liberdade”, palavras ditas por Raí e sabiamente escolhidas para compor a contracapa do livro, que podem caracterizar muito bem o personagem principal dessa biografia.
A história começa a ser contada no auge de sua carreira como jogador, na Copa do Mundo de 1982, mesma temporada em que as sementes da Democracia Corinthiana viriam a florescer. Uma das razões que levou Sócrates a se encantar pelo futebol era seu desejo de ganhar uma Copa pelo seu país: ele cresceu vendo Pelé brilhar na seleção e sabia o quanto uma conquista como essa era significativa para o povo. Como capitão e em sua melhor forma, aquele parecia o ano perfeito. Não era só a nação que acreditava no título, os jogadores estavam confiantes e conheciam o potencial do grupo, tudo parecia perfeito. Até o dia de sua eliminação, o Brasil estava invicto e encantava na competição, tendo feito grandes partidas.
A Seleção entrou como favorita contra a Itália, com jogadores mais qualificados. O time italiano, ao contrário de seu adversário, fez uma campanha fraca até então, com três empates e nenhuma vitória na fase de grupos, mas contou com uma surpreendente atuação de Paolo Rossi: o jogador estava suspenso desde 1980 por envolvimento com apostas esportivas, e marcou os três gols da vitória. Com essas circunstâncias, a Itália levou a melhor sob os brasileiros, vencendo o confronto por 3 a 2, em um dia em que a bola parecia não querer entrar. Segundo Sócrates, se o jogo acontecesse mais 100 vezes, o Brasil venceria 99 delas.
Seu brilhantismo em uma competição deste tamanho jamais poderia ter sido admirado se não fosse o início de sua carreira no Botafogo de Ribeirão Preto, time da cidade que abrigou sua família desde seus seis anos, e que ele teria como lar pelo resto de sua vida. Foi ali que teve os primeiros contatos com a realidade fora da sua bolha: vindo de uma família de classe média, Sócrates pôde observar as dificuldades de seus colegas. Para ele, aquele começo foi crucial para entender e lutar contra as desigualdades do país em que vivia.
“As pessoas me perguntam: ‘Pô, qual foi a sua grande glória?’, e eu digo que a minha grande glória foi aquele comecinho”
Sócrates Brasileiro
O sociólogo Sérgio Buarque de Holanda descreveu o brasileiro como um “homem cordial” — a cordialidade em questão deriva da palavra cor do latim, que significa “coração”. Sócrates se encaixa perfeitamente na descrição: era um homem coordenado pela emoção muito mais que pela razão. “Ele dizia o que pensava e não se importava com as opiniões dos outros. Adorava ser contraditório, por vezes beligerante, e o prazer que sentia ao se comportar assim funcionou como o incentivo ideal para depois lidar com generais, presidentes de clubes e os gritos de milhões de torcedores”, comenta o autor da biografia.
Entre o campo e o estetoscópio: o dilema da escolha profissional
A profissionalização no esporte aparece em sua história pouco depois de começar a cursar medicina na Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto. Sócrates adorava o futebol, mas seu desejo era ser médico — na opinião do ex-jogador, ele não abandonou a medicina, foi capaz de cursar o que desejava e ao mesmo tempo jogar futebol. Durante o curso, sua prioridade era os estudos, mas seus dirigentes sabiam que, mesmo treinando pouco, com a bola nos pés ele resolveria e traria a vitória para o time, portanto eram mais flexíveis com suas necessidades.
Em dezembro de 1977, Sócrates concluiu o curso, mas optou pela carreira esportiva. Um ponto importante nessa decisão foi poder praticar a medicina depois do futebol, e não o contrário. Após se formar, o desejo de jogar por um clube grande era o que prevalecia. Assim que a proposta do Corinthians surgiu, o jovem agarrou a oportunidade.
Quando o futebol se torna uma voz de resistência: a influência da Democracia Corinthiana
O novo clube foi crucial para sua história, assim como ele foi crucial para a história do clube. Sócrates obteve triunfos dentro de campo, mas o mais importante aconteceu fora dele: a Democracia Corinthiana. O Doutor era contrário ao modo que os jogadores eram tratados desde sua época em Ribeirão Preto. “Eu percebi que era uma maneira de desrespeitá-los, colocando-os em uma posição inferior. Desde o começo, sempre achei que o tratamento dado aos jogadores tinha o objetivo de reduzir a sensação de poder que eles poderiam ter em termos de comunicação”, explica. Foi com a chegada do novo diretor de futebol, o sociólogo Adilson Monteiro Alves, ao lado de outros grandes jogadores como Casagrande, Zenon, Zé Maria e Biro-Biro, que o movimento surgiu, ainda sem nome à época.
As decisões eram votadas por todos dentro do Corinthians: jogadores, diretores e presidência, o que gerou um bom ambiente fundamental para a conquista do bicampeonato Paulista em 1982 e 1983. O crédito do movimento era tão grande que, segundo Sócrates, todos os envolvidos, inclusive ele, poderiam olhar para trás em suas vidas e demarcá-las em dois estágios: o antes e o depois da Democracia Corinthiana. Nada parecido aconteceu no futebol desde então. O autor deixa evidente que este foi um grande momento na história de Sócrates, crucial para marcar sua herança no futebol.
Em um ato de ousadia naquele contexto político, os jogadores do Corinthians usaram em suas camisas a inscrição “Dia 15, vote”, em um jogo no fim de outubro, com objetivo de convencer seus torcedores a participar nas eleições estaduais em 15 de novembro. Eles foram forçados a retirar a mensagem, mas a repercussão que desejaram foi alcançada. Em outra ocasião, Sócrates, Casagrande e Wladimir subiram no palco da cantora Rita Lee em show realizado no Ginásio do Ibirapuera, em novembro de 1982, e cantaram a música “Vote em mim”. O trio ainda presenteou Rita, torcedora alvinegra, com uma camiseta do Corinthians.
Sócrates embarcou na luta contra a Ditadura Militar instaurada no Brasil na época, e desejava cada dia mais passar a ideia da democracia para seu povo. Ele era apaixonado pelo movimento que ajudou a criar, e a volta da democracia, agora no mundo político de fato, passou a ocupar um espaço muito importante em sua vida. No dia 16 de abril de 1984 — o “dia do fico” do Doutor —, em meio a conversas sobre sua ida para jogar na Europa, ele declarou publicamente que não aceitaria jogar na Itália caso a Proposta de Emenda Constitucional idealizada por Dante de Oliveira, para o retorno das eleições presidenciais diretas, fosse aprovada. Para Sócrates, a redemocratização era mais importante que a estabilidade financeira que o novo clube poderia oferecer. Porém, a emenda não foi aprovada: o Doutor acertou a transferência para a Fiorentina.
Quando as expectativas não se concretizam
No novo clube, ele não se adaptou ao ambiente e não fez grandes aparições. Sem sucesso, Sócrates retornou ao Brasil. Segundo Downie, “era o homem errado no lugar errado e na hora errada, e a única solução era voltar para casa”. A cena pareceu se repetir quando se transferiu para o Flamengo, para o Santos, e em seu retorno ao Botafogo de Ribeirão Preto, último clube que defendeu. Pela Seleção, correspondeu às baixas expectativas do povo brasileiro na Copa do Mundo de 1986. Talvez pela idade, lesões ou marcas de uma vida pouco saudável, sua carreira como jogador se encerrou de maneira triste e singela, sem festividades ou grandes anúncios.
A partir destas situações, a leitura da biografia fica mais densa. Ver aquele atleta, outrora brilhante, vivendo um momento de baixa constante emociona o leitor, que no início da história admira seus grandes feitos. Após sua aposentadoria, não concluiu nenhum dos projetos que iniciou. Como treinador da LDU de Quito, por exemplo, se manteve no cargo por apenas dois meses.
“Era um sujeito melancólico, de uma tristeza profunda. Nunca o vi alegre com a vitória ou triste com as derrotas, ele estava sempre do mesmo jeito, com a mesma expressão”
Edwin Andara, diretor de futebol da LDU na época
Talvez o grande problema em ser cordial — neste caso, agir com a emoção —, estava na inconstância, seus interesses passavam com facilidade. De opiniões contraditórias e rápidas paixões, passou seus últimos anos “preso entre um passado que ele não tinha desejo de revisitar e um futuro para sempre indefinido, Sócrates se concentrou no presente e no que mais gostava de fazer: na última década de sua vida, sua companhia mais constante foi a bebida”, segundo o autor da biografia.
“Ele estava buscando algo que nunca encontrou”
Sóstenes, irmão de Sócrates
Das vitórias aos abismos
Sua formação em medicina não impediu o Doutor de beber e fumar constantemente. Nos anos seguintes ao fim de sua carreira, por mais que tivesse tido quatro esposas, a bebida e o tabaco foram seus maiores parceiros. Segundo Raimundo, seu irmão, Sócrates era tímido e usava da bebida para contornar esta situação, como um antídoto para a má disposição e a rabugice. Ele começou a beber aos treze anos, o que era comum em uma cidade de altas temperaturas como Ribeirão Preto. Durante todo o livro, fica evidente que o álcool o acompanhou por toda sua trajetória.
O uso desenfreado de bebidas não passou batido pelo corpo do ex-atleta. Mesmo com o diagnóstico de cirrose, Sócrates jamais admitiu que possuía um problema de alcoolismo, e nunca tentou fazer algo para melhorar sua saúde. Por mais que seus amigos e suas companheiras tentassem intervir, ele jamais se manteve longe do álcool e do tabaco.
“Eu quero morrer num domingo, num dia que o Corinthians for campeão”
Sócrates Brasileiro
O desejo do eterno Doutor Sócrates se tornou real no dia 4 de dezembro de 2011. É esta ilustre frase que Andrew Downie explora para encerrar sua obra. Enquanto o corpo do ídolo corinthiano era velado, na capital paulista acontecia o clássico entre Corinthians e Palmeiras, um empate sem gols que trouxe o pentacampeonato brasileiro para o clube em que Sócrates ficará marcado na história.
*Foto de capa: [Yasmin Constante/Acervo pessoal]
Parabéns, ótima resenha,