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É possível separar a obra do artista?

Acusada de transfobia, J. K. Rowling aumenta debate sobre os limites entre a arte e o autor

Há 24 anos se iniciava a história de um dos bruxos mais famosos de todos os tempos. Em 26 de junho de 1997, foi lançado Harry Potter e a Pedra Filosofal (Harry Potter and the Philosopher’s Stone), livro que originou um legado de mais seis sequências literárias, oito adaptações cinematográficas, parques em Orlando, nos Estados Unidos, diversas obras derivadas, e que deu início ao império da autora britânica J. K. Rowling. A influência que a escritora e seus personagens fictícios exerceram sobre gerações é inegável, ao ponto que, até hoje, a obra continua fazendo sucesso mundialmente.

 

No entanto, em 2020, por conta de uma série de tweets considerados transfóbicos, o legado de J. K. Rowling estremeceu. Muitos fãs repudiaram os comentários e se mostraram decepcionados, e até mesmo alguns dos atores dos filmes de Harry Potter, como Daniel Radcliffe e Emma Watson, se manifestaram publicamente contra os posicionamentos da autora. Tendo em vista a importância da saga na vida de milhares de pessoas e, em contrapartida, as controvérsias envolvendo a sua criadora, uma famosa questão tomou notoriedade sobretudo na internet: é possível separar a obra do artista?

 

Como tudo na arte, não existe uma resposta exata. Para Mariana Duarte, estudante de publicidade e propaganda, e fã de Harry Potter desde a infância, é impossível desconsiderar o posicionamento de J. K. Rowling, mesmo enquanto admiradora da saga: “quando as falas vêm à tona, dá para identificar na história os momentos problemáticos que ela deixou passar para o mundo que criou”. Apesar disso, Mariana conta que tenta dissociar as duas coisas: “tem até uma brincadeira entre os fãs, de comentar que os livros na verdade foram escritos pela Hermione (uma das personagens da história). Acho que isso é uma forma de tentar separar tudo de ruim que a autora representa, da história que criou”.

 

Na imagem, a atriz Emma Watson, intérprete de Hermione, apresenta no centro da imagem com uma pena na mão.
Hermione, bruxa inteligente e estudiosa, é interpretada pela atriz Emma Watson nos filmes da saga. [Imagem: Reprodução/Warner Bros. Pictures]

 

Já para Gabriella Sales, estudante de jornalismo e amante da saga desde nova, a questão é ainda mais complexa do que isso. Para ela, sob uma perspectiva introspectiva, talvez essa separação possa ser realizada: “às vezes o que você pensa, o que você sente, e o que você entende de uma obra pode estar muito distante do que o que o autor quis dizer com aquilo de fato, e a sua própria relação, seu próprio significado com aquela coisa valem por si só”. Por outro lado, ela opina que, socialmente, a situação é diferente: “eu acho que é um argumento muito perigoso, sabe? Porque faz as pessoas nunca pararem para pensar sobre a responsabilidade de quem está produzindo a arte no mundo em que a gente vive”, conta Gabriella.

 

Representatividade X Preconceito

O que faz Harry Potter atingir tão intimamente seus fãs, além de todo o universo mágico inventado, são as mensagens positivas. Mariana expõe que a saga transmite mensagens sobre amor, família e amizade, além de valorizar o acolhimento e a questão de “ser você mesmo”. Para ela, essas lições transmitidas pela saga se tornam contraditórias ao avaliar a conduta e os limites pessoais de J. K. Rowling.

 

Os protagonistas da saga Harry Potter encontram-se conversando entre si na imagem, em um momento dos filmes.
O chamado “trio de ouro”, composto por Harry (Daniel Radcliffe), Rony (Rupert Grint) e Hermione demonstra uma amizade que se mantém mesmo nos momentos difíceis. [Imagem: Reprodução/Warner Bros. Pictures]

 

Apesar dos ensinamentos valiosos sobre companheirismo, aceitação e acolhimento, para muitos, Harry Potter não é algo que possa ser considerado muito inclusivo. José Souza, fotógrafo, designer e fascinado pelo mundo mágico desde criança, diz que a obra não apresenta muita representatividade: “para mim, que faço parte da comunidade LGBTQIA+, ter essa representatividade é importante, essa conexão com determinados personagens”. 

 

Esse é um aspecto a ser considerado quando avaliamos a abordagem de J. K. Rowling, afinal, apesar de tecer comentários preconceituosos, comumente eles são acompanhados de uma “mensagem de apoio” à comunidade trans e às minorias no geral. No entanto, esse apoio se restringe a breves menções que não fazem muito sentido sob uma ótica mais ampla, e com isso, tal comportamento expande-se também para o universo criado pela autora.

 

 

Em 2007, J. K. Rowling afirmou que sempre imaginou Dumbledore (personagem da saga de Harry Potter) como gay, tendo ele, inclusive, se apaixonado por outro importante bruxo da narrativa. No entanto, essa informação não foi mencionada diretamente em nenhum momento da história original, e somente obteve atenção em Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore (Fantastic Beats: The Secrets of Dumbledore, 2022) isto é, 15 anos após o tweet divulgado pela autora e 25 anos após o lançamento do primeiro livro. 

 

As controvérsias que permeiam as atitudes de Rowling, ainda que fora da obra, de uma forma ou de outra interferem no universo criado, já que algumas observações feitas por ela são realizadas a partir de sua intenção como autora como no caso da sexualidade de Dumbledore. Nesse sentido, para José, as declarações de J.K. foram capazes de afetar negativamente a relação da saga com os apoiadores da causa trans. Ele explica que, tendo consciência sobre a marginalização de pessoas que fazem parte dessa minoria, sentiu-se incomodado com os posicionamentos da escritora, o que o levou a questionar também as escolhas autorais inseridas em Harry Potter.

 

“Tem muito dela ali (em Harry Potter)”, acrescenta Gabriella acerca das interferências da autora na obra, “aquilo saiu da cabeça dela, e se saiu da cabeça dela, tem coisas que ela pensa também, tem ideais dela, e eu acho que a prova disso são essas nuances que a gente vai percebendo quando começa a olhar com um pouco mais de criticidade”.

 

Quais as consequências dessa discussão?

Apesar de todas as polêmicas envolvendo o seu nome, J. K. Rowling não parece ter mudado sua posição. Pelo contrário, a britânica constantemente faz questão de reforçar os seus preconceitos não só em suas redes sociais, mas também em seu trabalho. Em setembro de 2020, sob o pseudônimo de Robert Galbraith (nome que também foi alvo de críticas), lançou o romance Sangue Revolto (Troubled Blood), que narra as investigações sobre um serial killer que se disfarça de mulher para cometer seus crimes. Apesar da premissa ser, aparentemente, inofensiva, ao conhecer o histórico da autora e analisar passagens do livro sob um olhar crítico, Sangue Revolto foi considerado por muitos uma obra transfóbica. Ainda assim, foi premiada na categoria de melhor livro criminal e ficcional pelo British Book Awards

 

Além disso, J. K. Rowling foi a autora mais vendida no Brasil em 2020, sendo Harry Potter o responsável por 99% de suas vendas. Levantamentos como esse instigam um outro questionamento: afinal, até que ponto o público é capaz de causar impactos sobre artistas já bem consolidados?

 

Na imagem, uma parte dos parques temáticos de Harry Potter, em Orlando, aparece ao centro.
Reprodução do “Beco Diagonal”, local fictício da saga, no parque movimentado de Harry Potter em Orlando. [Imagem: Reprodução/PxHere]

 

Tendo em vista toda a repressão que a escritora recebeu não só de seu público, como também da mídia e até de colegas de trabalho, seria de se esperar que suas ações transfóbicas resultassem em consequências negativas para a sua imagem e para o seu lucro (o que, como pudemos observar, não foi bem o que aconteceu). 

 

Ainda assim, muitos fãs ou até mesmo aqueles que abdicaram do título veem como uma possível solução não consumir nada que resulte em ganhos para a autora, e alguns até viram necessidade em se desfazer dos itens já adquiridos. Mariana, Gabriella e José fazem parte da parcela de pessoas que, apesar do amor à saga, pretendem ao menos evitar adquirir novos produtos que envolvam o universo de Harry Potter ou tenham o nome de Rowling envolvido.

 

Para além do mundo de Hogwarts

Ainda que J. K. Rowling tenha evidenciado a discussão sobre a possibilidade de separação entre a obra e o artista, ela está longe de ser a única a fazê-lo. No mundo da cultura pop, constantemente surgem polêmicas envolvendo famosas personalidades que colocam o debate em pauta.

 

O cinema, por exemplo, é um grande palco dessa discussão. Famosos cineastas como Woody Allen e Roman Polanski, ambos acusados de abuso sexual de menores, já dividiram o público sobre a moralidade do consumo de suas produções. José opina que, em casos como esse, não há outra opção senão boicotar o material, e exemplifica ao citar Azul é a Cor Mais Quente (La vie d’Adèle – Chapitres 1 & 2, 2013), filme francês cujo diretor foi acusado de cometer abusos físicos e mentais contra as protagonistas: “a gente não vai consumir porque essas cenas não tiveram uma direção adequada. As pessoas não estavam confortáveis e a mensagem passada depois que você sabe disso é completamente desconfortável. Não tem como você ver aquilo e tratar com naturalidade”.

 

As protagonistas de Azul É A Cor Mais Quente aparecem no centro da imagem, olhando uma para outra.
Embora a história trate de uma jornada de autoconhecimento e de exploração da sexualidade, os bastidores de Azul é a Cor Mais Quente não sustentam sua mensagem positiva. [Imagem: Reprodução/Lucky Red Distribuzione]

Rowling não é o único alvo da discussão no mundo da literatura. Autores como Monteiro Lobato e H. P. Lovecraft, acusados do racismo que, inclusive, se transporta para suas famosas obras, são alvos de críticas mesmo décadas após suas mortes. Lovecraft, que, de maneira semelhante à criadora de Harry Potter, foi responsável por criar um vasto universo fantasioso que mantém a sua influência até os dias atuais, teve a sua obra reinventada através da série Lovecraft Country (2020). A produção da HBO, baseada no romance homônimo de Matt Ruff, ressignifica os valores de Lovecraft ao apresentar uma história pautada na crítica ao preconceito e à segregação racial. Nesse sentido, Gabriella opina: “eu acho que você pode fazer da arte uma coisa um pouco sua. Retirar daquele contexto e colocar no que você prefere, num contexto que você acredita”.

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