Por Rachel M. Mendes (rachelmmendes@usp.br)
Com seu início oficial no século 16, na Holanda, a arte Vanitas é um subgênero de natureza morta que carrega noções morais de transcendência e preocupação espiritual. A inspiração surgiu da versão latina do versículo bíblico de Eclesiastes 1:2: Vanitas vanitatum et omnia vanitas (“vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, em tradução livre). Sua estética se baseia na noção de Memento Mori, lema latim que significa “lembre-se que morrerá”, mas extravasa esses limites ao refletir acerca da transitoriedade da vida e da vaidade contida nas criações humanas e seu inevitável fim.
“Vaidade das vaidades,
diz o pregador, tudo é vaidade.”
Eclesiastes 1:2, Bíblia Sagrada
Segundo Maria Berbara, professora de História da Arte da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em entrevista ao Sala33, o início do Renascimento na Holanda e na Europa caracterizou-se por transformações constantes e a crescente ideia de progresso promovidas pelas descobertas das Grandes Navegações. A vaidade e orgulho nacional faziam-se cada vez mais proeminentes. Não parecia haver limites para a vontade humana.
Nesse contexto, inspirados pela moral cristã e pela compreensão de que a vida humana é passageira. A duração dessa aparente glória passa a ser pensada e questionada por artistas que escancaram de forma estética a vaidade presente em tudo aquilo que, como todas as coisas, estaria condenado à passagem do tempo.
Além disso, a medicina passava por mudanças, com os primeiros estudos detalhados da anatomia de seres humanos, iniciados no século 15. O conhecimento dos corpos em meio ao avanço científico encantava a população e tornava a representação da morte cada vez mais frequente nas pinturas. Esse simbolismo viria a ser crucial para a formação estética da arte Vanitas.
Os símbolos concentram-se em elementos de vida passageira ou estereotípicos da vaidade humana. Entre os mais emblemáticos, encontram-se: o crânio humano, como representação de que, apesar de classes sociais e bens possuídos em vida, a vinda do fim não era persuadida ou prorrogada por status; bolhas de sabão; frutas apodrecidas e flores murchas. Comumente, esses elementos aparecem ao lado de pessoas e objetos luxuosos, o que para a doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Letícia Raiane dos Santos destaca que toda existência é vã e o esplendor terreno, vazio.
Maria Berbara nota que até mesmo a ciência, o progresso e o conhecimento são trazidos como formas de vaidade pela arte Vanitas, visto que cada ideia é logo superada por outras mais atualizadas com a passagem do tempo. Com isso, instrumentos musicais, livros e artefatos científicos também compõem os símbolos vaidosos e passageiros nas pinturas. Outra representação notada por Berbara é a da fragilidade dos impérios, cujo orgulho e glória são sucedidos por queda e ruína e, portanto, revela-se como vaidade.

[Imagem: Wikimedia Commons]
Apesar da estética morta da arte Vanitas, ela não deve ser encarada de maneira fatalista. Pelo contrário, o intuito desse movimento não é que a inevitabilidade da morte seja encarada de forma passiva e conformada. Por possuir suas raízes na fé cristã, Vanitas é um convite para uma vida bem vivida e para o cuidado da alma. Um lembrete de que, se tudo é vaidoso, transitório e fugaz, então deve-se viver com o foco em algo que transcende à compreensão dos limites terrenos e humanos. Que não se vá com o tempo, mas que seja eterno e duradouro.
Maria Berbara nota que é esse o ponto em que o Vanitas e o lema do Carpe Diem (em latim, “aproveite o dia”) se diferem. Este último lema aparece pela primeira vez em um poema de Horácio e reflete acerca do fato de que, visto que a vida acabará, é necessário que se viva intensamente, com prioridade aos prazeres. Assim, o lembrete da morte é respondido pela filosofia epicurista, cujo foco está naquilo que é prazeroso. Diferente do Vanitas, em que o embasamento religioso torna o lembrete da morte em um convite à retidão moral e à transcendência espiritual.
Na Arte Plástica, pintores conhecidos por sua produção no gênero natureza-morta fizeram parte da estética Vanitas. Entre eles estão Willem Claezs Heda, David Bailly, Pieter Potter e Jan Davisz de Heem.

[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Vanitas na Literatura
Em meio às questões existenciais evocadas pela Literatura, a morte e sua inevitabilidade aparecem, vez ou outra, ecoando indireta ou diretamente os temas centrais da arte Vanitas. Na peça teatral de William Shakespeare, Hamlet, a democracia da morte é trazida em forma de humor ácido. Um exemplo é a cena em que o protagonista, Hamlet, visita o cemitério e ironiza o fato de todos os falecidos terem se tornado crânios, apesar de seu status em vida. Maria Berbara considera a personagem uma representação dessa reflexão literária, ainda que não seja pertencente oficialmente do Vanitas por conta do contexto geográfico.
Segundo a pesquisadora Letícia Raiane dos Santos, os conceitos de Memento Mori e Vanitas reaparecem em movimentos literários como Arcadismo e o Ultrarromantismo (com a presença de nomes como Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu). “Até o Modernismo, encontramos ecos da reflexão sobre o tempo, a passagem da vida e a inevitabilidade da morte, mostrando que o tema atravessa séculos e permanece relevante, adaptando-se a diferentes contextos culturais e filosóficos”, explica.

Letícia comenta que, no âmbito literário, os símbolos de Vanitas permanecem, mas “adquirem camadas adicionais de significado”. A especialista demonstra que esses aspectos não se limitam a servir como imagens decorativas ou grotescas: “tornam-se metáforas capazes de provocar uma experiência emocional, sensorial e intelectual simultânea”. Além disso, imagéticas extraídas da tradição bíblica como a de “retorno ao pó” também incrementam o simbolismo literário do movimento.
Em narrativas e poemas, esses símbolos criam uma tensão entre a busca humana por sentido e a efemeridade do mundo sensível, o que eleva a reflexão sobre a existência a um nível filosófico e existencial.
“Ao confrontar o ser humano com sua mortalidade, o Memento Mori e o Vanitas promovem um
exercício de autoconhecimento e introspecção, incentivando a busca por
um propósito maior que transcenda os prazeres e conquistas efêmeras.”
Letícia Raiane dos Santos
Vanitas na atualidade
Maria Berbara observou que o questionamento acerca da vaidade tende a retornar em situações em que algum evento contrapõe o orgulho humano e relembre a fragilidade da vida. Guerras, pandemias e desastres naturais compõem esses lembretes. Exemplo disso é o retorno da estética de caveiras na segunda metade do século 20, dado o contexto de episódios conflituosos entre potências, genocídios e o surgimento da AIDS.
Quanto à forma da arte Vanitas existir nos séculos 20 e 21, Berbara aprofunda-se em uma linguagem tecnológica e contemporânea das artes visuais: a fotografia, em seu artigo redigido ao lado do Doutor em Crítica e História da Arte pela UERJ, Raphael Fonseca, “Vanitas Fotografada: Considerações sobre fotografia e morte”.
Outro exemplo de retorno da estética típica à arte Memento Mori é o emocore. O subgênero do rock surgiu na década de 1980 e inspira-se nas características do Ultrarromantismo.

[Imagem: Reprodução/Youtube]
Caveiras, roupas escuras e letras emotivas são próprias dessa subcultura que fez sucesso entre adolescentes e jovens até o início dos anos 2010. No exterior, bandas como My Chemical Romance, Fall Out Boy, Panic! At the Disco e Simple Plan foram símbolos na consolidação das características mais memoráveis do subgênero. Já no meio nacional, Fresno e NX Zero se destacaram na formação do emo brasileiro.
