Jornalismo Júnior

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Como a fé, as religiões e as igrejas lidaram com a pandemia?

Entre as crises na saúde, na política e na economia, a religião encontrou desafios para resistir à covid-19, mas dá indícios de recuperação e esperança para o futuro

11 de março de 2020. Quando a OMS decretou a pandemia do novo coronavírus, era certo que o cotidiano, como estávamos acostumados, sofreria mudanças profundas. Economia, comércio e entretenimento foram só alguns dos setores que, logo de primeira, sentiram os impactos da covid-19 e da baixa circulação de pessoas.  Em um momento de crise sanitária e humanitária, outra área sofreu um forte impacto: a fé e a religião. Cultos e igrejas, inevitavelmente, ficaram por longos meses sem a presença dos fiéis. 

Cada religião e organização religiosa lidou de formas diferentes com esse período. Agora, com as restrições de circulação de pessoas chegando cada vez mais próximas do seu fim, é possível compreender mais claramente quais estragos a covid-19 deixou e quais soluções foram encontradas. 

 

“Por trás da dificuldade, há a superação” 

 

Celebração do sermão na Mesquita Brasil [Imagem: Reprodução/Facebook Mesquita Brasil]

O Ramadã expressa, por meio do jejum, o ato simbólico de o homem resistir aos seus desejos. Diferentemente dos outros animais, o ser humano é capaz de, a sua vontade, realizar o jejum, que traz benefícios sociais, físicos e, segundo o Islã, espirituais. No momento de pandemia, nos deparamos com outro desafio: o de se isolar, voluntariamente, do convívio social.  

O Islã tem uma antiga tradição de cuidado e atenção para a ciência. Por isso a preocupação das mesquitas nesse momento era atender às recomendações sanitárias e, principalmente, preservar a vida humana. “A vida social, as festas, nós podemos recuperar a longo prazo; a vida, nosso bem mais precioso, não”, diz o Sheikh Mohamad Al Bukai.

O líder religioso atua na Mesquita Brasil, a primeira da América Latina, na região do Cambuci, em São Paulo. Sua Mesquita, reaberta parcialmente no início desse ano, recebe nas sextas-feiras centenas de fiéis, sempre utilizando suas máscaras, para ouvir o sermão do Sheikh e, principalmente, buscar uma reconexão com o sagrado. O ambiente, ainda bem diferente do que era antes da pandemia, se mostra acolhedor. Um refúgio para o caos externo. 

A pandemia trouxe um misto de sentimentos: medo, preocupação, ansiedade, entre tantos outros. “Nessa adversidade, o ser humano recorre à espiritualidade. E para mim, aumentou e muito”, relata o Sheikh Mohamad.   

“O padrão do ser humano é, em momentos de adversidade, recorrer ao sagrado, à sua fé.” Com a Mesquita reaberta, um grande número de pessoas, além do esperado, retornou. “Costumo dizer que somos como a Arca de Noé. Acolhemos a todos, e as pessoas encontram aqui o que não veem lá fora, como a felicidade.” 

“Sempre por trás da dificuldade, há a superação. A pandemia deu um choque na nossa maneira de lidar com o mundo e o sagrado. Da forma como seguíamos, não estava dando certo.” O orgulho do ser humano, destacou Mohamad, o distanciava de Deus. “Viver sem religião é, para o homem, um sofrimento, e não se deve buscá-la apenas nas dificuldades, mesmo que isso seja o comportamento padrão do homem.”

Para o Sheikh, é possível, apesar de tudo, tentar se cercar de coisas boas durante o isolamento. Segundo o Islã, nunca estamos sozinhos, mas sempre junto ao criador. “A dificuldade em si está em não ter Deus ao seu lado. Já que estamos nessa condição, de preservar a vida humana, tentei utilizá-lo da melhor forma possível, com estudos, orações e leituras.” 

O final da pandemia poderá trazer um novo momento para o mundo, mas que, segundo o Sheikh, não deve deixar a espiritualidade de lado: “A vida tem propósito, e não devemos desperdiçá-la”. 

“Cada um é único” 

Igreja de Santa Rita [Imagem: Acervo Pessoal]

Muito longe de São Paulo, sede da Mesquita Brasil, fica a cidade de Santa Rita Sapucaí, no estado de Minas Gerais. Nela, um grupo de Irmãs da Providência de Gap cuida de idosos e fornece assistência social para a região. Maria Vanda, uma das irmãs, relatou em entrevista um pouco dessa realidade. 

A congregação da qual Vanda faz parte atua na região desde 1946. Já Vanda assumiu esse posto apenas em 2010, por conta de seu trabalho como enfermeira. As irmãs auxiliam idosos, na maioria das vezes rejeitados e abandonados, por seus parentes e pela sociedade.

Mais do que nunca o trabalho de Vanda se mostrou essencial. No contexto pandêmico, em que os idosos são um dos grupos mais vulneráveis, a congregação foi fundamental para manter os cuidados e o assistencialismo em sua região. 

“A primeira coisa que fizemos foi preparar os idosos e suas famílias para esse momento, além de orientar a população pelos meios de comunicação”, conta a irmã. Além disso, foi criado um espaço extra dentro do asilo para cuidar dos idosos que viessem a se infectar pela covid-19. 

Ao mesmo tempo, as irmãs mantiveram-se fortes, por meio da fé e da ajuda dos funcionários. No total, 54 funcionários auxiliavam as irmãs, além de cuidar de 86 idosos, formando uma grande família e união. Já a religião, sempre presente em suas vidas, foi um desafio nesse período. A Igreja São João, localizada dentro do asilo, teve de ser fechada durante um longo período, só podendo ser reaberta para as missas após um ano, com acesso restrito  aos idosos e irmãs. 

“Nossos momentos de oração, estudos e o acompanhamento dos padres, com toda a assistência religiosa, nos ajudou a atravessar esse período”, completa Vanda. Além disso, o auxílio da prefeitura, da comunidade de Santa Rita, também foi essencial para que fosse possível manter os cuidados e os trabalhos durante a pandemia. Em destaque, estão as doações de artigos sanitários, como álcool, fraldas geriátricas e materiais de limpeza. 

Com o avanço da vacinação, no Brasil e em Minas Gerais, o cenário para um retorno das atividades do asilo e da paróquia é positivo. Além disso, a maior parte dos idosos cuidados pelas irmãs já contam com a terceira dose da vacina, e desejam voltar à normalidade, como era antes da covid-19. “Cada um é único. Independente de idade, sexo, cor ou doença. Somos únicos diante de Deus e vamos vencer isto. Cuidado especial com a vida”, encerra Vanda. 

“Silêncio ensurdecedor” 

Imagem do ambiente interno de paróquia em São Paulo
[Imagem: Murillo César]

O ambiente da Igreja Católica é, salvo os dias de missa, de muito silêncio e paz. É possível perceber se deslocando a qualquer igreja num dia de semana comum. Essa característica, que antes era vista com bons olhos, passou a ser tida, para alguns, como algo negativo durante a pandemia. 

“Para mim, o silêncio tornou-se ensurdecedor com a ausência dos fiéis; a paz, um sofrimento sem fim”, disse João*, antigo funcionário de uma paróquia de São Paulo que foi afastado durante a pandemia. Por conta de sua idade e comorbidades, ele foi mais uma das milhares de pessoas que tiveram que lidar com o desemprego no último ano. 

Num encontro ao acaso, enquanto esperava para falar com o padre da região, João contou um pouco da sua realidade, que por vezes é suprimida pela mídia. Para o paulistano, a igreja e o seu trabalho significam tudo de mais precioso que a vida pode proporcionar, além de um refúgio; com a pandemia, tudo isso veio abaixo. 

“O início foi muito difícil, principalmente em maio, quando pensei em me suicidar. As contas continuavam chegando, o dinheiro não era suficiente e eu não me senti preparado para lidar com tudo isso longe da igreja”, relata João. Para ele, o que o manteve a salvo foi, acima de tudo, a possibilidade de voltar a conviver nesse ambiente religioso, que tanto já fez por ele. 

As orações também o ajudaram nesse quase um ano e meio, para fortalecer essa esperança. Mesmo longe da missa e da eucaristia, falar com Deus o ajudou a se sentir protegido. “A partir de abril, todos sabiam que ficaríamos por muito tempo trancados em casa; mesmo assim, é complicado lidar com tudo isso, até poder voltar” 

Com o fim das restrições em São Paulo, a igreja reabriu e João pode ter seu reencontro com sua segunda casa. Sentado no banco da igreja, com uma pasta na mão, carregando seus documentos e pertences pessoais, ele trazia consigo a esperança de dias melhores, que o salvou da morte. “Só o que eu quero é voltar a fazer o que eu amo”, e seguiu em frente para secretaria, levando consigo seu currículo. 

“Rezar pelas pessoas…” 

Papa Francisco sozinho na Praça São Pedro
[Imagem: Reprodução/YouTube]

A imagem do Papa Francisco, sozinho, na frente da Praça São Pedro, foi uma das mais simbólicas de 2020. Acostumado às multidões, a Igreja Católica teve de lidar com o isolamento, assim como o resto do mundo, e o Papa não foge a essa regra. Por outro lado, a rotina do Vaticano ainda passa longe das dificuldades que as demais igrejas tiveram nesse último ano. 

“A vida de um padre deve ser sempre junto a seu rebanho; sem eles, não há padre, muito menos Igreja”. A fala de Lúcio*, líder de uma igreja da zona leste de São Paulo, reflete uma dificuldade latente dos cultos religiosos por todo o mundo: manter sua essência, mesmo longe de seu povo. 

Em março de 2020, não houve tempo para planejar o futuro, escolher a melhor solução e perspectiva. O primeiro movimento foi lacrar as portas. Por algumas semanas, o padre  e seu colega ficaram trancados dentro da igreja com apenas um celular.

Além da tristeza em decorrência do isolamento, os padres também conviveram com a possibilidade de já estarem contaminados. “Até pouco antes do lockdown, eu ia às UTI’s, vi e orei por pacientes com sintomas de covid. Para mim, eu sentia como se já estivesse contaminado, e vivi 15 dias muito difíceis”, conta o padre. 

Após essa quinzena, o que poderia ser feito? A solução encontrada foi seguir rezando e realizando as missas, mas sem nenhum fiel presente. Além disso, o padre Lúcio conta que uma carta do bispo de São Paulo, Dom Odilo, incentivava que as missas fossem realizadas, a fim de preservar o espírito da Páscoa, que se aproximava. “Não há muito o que podia ser feito, mas eu consegui ao menos exercer a minha função: rezar pelas pessoas.” 

Com o distanciamento, os problemas financeiros não tardaram em chegar à igreja. Com isso, o padre teve de tomar algumas decisões que impactaram seu psicológico. Primeiro, cortar seu salário; segundo, demitir alguns funcionários. Com as contas no vermelho, a ausência dos fiéis e lendo as notícias do aumento dos casos de covid-19, Lúcio teve consequências severas, ao desmaiar, bater a cabeça e sofrer um acidente doméstico.  

Após a sua recuperação, a igreja recebeu uma solicitação que foi rapidamente atendida por Lúcio: em junho, uma nova carta do bispo pedia que os templos fossem reabertos. “A Igreja Católica, em sua essência, é presencial. Dessa forma, não há como manter a celebração dos sacramentos à distância.”  

Assim, no meio do ano passado, sua igreja voltou a receber, ainda que em menor número, fiéis e curiosos. Lúcio conta que, sendo um dos poucos lugares abertos em sua região, a igreja recebeu pessoas de diversos locais de São Paulo que passaram a vir até ele, para celebrar as missas e se confessar. Para o padre, esse aspecto foi muito importante para seguir em frente no restante de 2020.  

Mas ainda faltava resolver o rombo nas contas, deixado nos últimos meses. A solução encontrada foi a realização de eventos em seu bairro, com entregas e doações de alimentos pela comunidade, para sustentar os cofres. “Noite do hambúrguer, macarronada da mamma, feijoada em família… a gente conseguiu um grande lucro com essas festas, pra conseguir finalmente o suficiente para pagar o 13º e celebrar o Natal no fim do ano”, relata o padre. 

Dessa forma, ainda em 2020, a igreja do padre Lúcio conseguiu se reerguer e se recuperar do baque do início do ano. Com a reabertura, todas as missas voltaram a ser presenciais, com um número reduzido de fiéis. Além disso, também retornaram as aulas de catequese, o que gerou um lucro a mais para a congregação religiosa. 

Ainda assim, era inegável que o sentimento de medo prevalecia, já que não existia uma vacina para a covid-19 naquele momento. Mas novamente, para o padre, o desejo de realizar seu trabalho e exercer sua função o fizeram superar esse obstáculo. “As cartas do bispo nos davam confiança, esperança de mudança e de que tudo iria retornar à normalidade… num futuro muito breve.” 

Já em 2021, com a vacina e a segurança, o ano se iniciou com uma nova perspectiva. Mesmo assim, muitos dos fiéis ainda não haviam voltado a frequentar as missas. Rompendo com sua ideia inicial, a igreja decidiu, um ano após o começo da pandemia, adotar as atividades remotas.  

O padre afirma ter tido um impacto positivo ao reencontrar amigos que não via há mais de um ano e sentir um carinho duplo: presencialmente e à distância. Entretanto, os recursos tecnológicos ainda não eram o suficiente, além do custo extra para se realizar as transmissões.  

Assim, apenas uma missa era transmitida por semana, e havia problemas de conexão e imagem. “Não era o ideal, mas é o que tínhamos. Infelizmente o Brasil ainda está atrasado em diversos aspectos tecnológicos, e nossa igreja é apenas mais um exemplo disso”, ressalta o padre.  

Nesse 2021, após um difícil último ano, a igreja de Lúcio se mostra preparada para uma volta completa de suas atividades. O padre encerrou a entrevista com o seguinte pensamento, que buscou transmitir ao longo dessa pandemia: “Nós tivemos uma dificuldade muito grande de unir o Brasil. A igreja não deve ser tida como obstáculo. Vida em primeiro lugar, saúde para todos, para nos prepararmos para o futuro. Deus está conosco”, diz em referência às dificuldades e erros no enfrentamento da pandemia no país.

 

*Nomes fictícios. Os entrevistados desejaram não ser identificados. 

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