Jornalismo Júnior

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A luta de Hollywood nos campos de batalha

Os filmes de guerra fazem uma romantização e idealização dos soldados ou realizam uma denúncia do conflito e da própria desumanização?

24 de Fevereiro de 2022. Uma data que entrará para a história, mas não por motivos belos, como o lançamento de um filme esperado pelo público ou o nascimento de um artista. Infelizmente, ficará marcada por mais um dos conflitos que assolaram o século 21: a Guerra da Ucrânia.

Mas muito mais do que gerar dor e sofrimento para as famílias destruídas pelo conflito, as guerras também são responsáveis por inspirar inúmeros filmes, os chamados filmes de guerra. A mais nova adição para o catálogo do gênero é o vencedor de quatro categorias do Oscar 2023: Nada de Novo de Front.

Mas como esses conflitos estão sendo representados nas telas? Será que esses filmes romantizam a guerra? Ou será que eles são responsáveis por denunciar os horrores da guerra?


O triunfo da guerra

Para responder às perguntas propostas acima, é preciso voltar um pouco no tempo para entender quais eram os propósitos iniciais por trás do gênero. Por isso, vamos voltar ao surgimento desse gênero tão presente no cinema norte-americano. 

Contemporâneos ao próprio surgimento do cinema no final do século 19 com os Irmãos Lumière, os filmes de guerra surgiram com o propósito de documentar conflitos históricos e importantes para a humanidade. Por isso, a primeira escolha de documentação foi a Guerra Hispano-Americana que ocorreu simultaneamente aos primeiros anos do cinema.

Entre 1898 e 1899, a Guerra Hispano-Americana foi um conflito entre os Estados Unidos e a Espanha pela independência de colônias espanholas, como Cuba e Porto Rico. O mais curioso sobre o conflito foi o uso do cinema para documentar o dia a dia dos soldados nas trincheiras através de curtas que os mostravam em atividades corriqueiras, como lavar louça ou enterrar os mortos. Dessa forma, as pessoas assistiam ao soldado diariamente, acabando por se solidarizar com ele pela situação que ele se encontrava.

Cena do filme O Triunfo da Vontade. Em preto e branco, soldados nazistas estão uniformizados e enfileirados para a guerra.
Durante o nazismo, filmes documentais como O Triunfo da Vontade mostravam o partido alemão como glorioso e invencível, fazendo com que aumentasse o apoio popular. [Imagem: Divulgação/UFA]

Então, desde os primórdios da ida do cinema à guerra, os filmes de guerra idolatravam e romantizavam a figura do soldado e o próprio conflito em si. Mais do que uma romantização, essa pequena semente plantada no início do cinema de guerra germinou durante as Grandes Guerras, quando documentários realizados no período buscavam provocar sentimento de patriotismo e apoio popular através da idolatração da guerra e dos soldados, como ocorre no filme nazista O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1935).


O resgate do cinema de guerra

Voltando para a atualidade, percebe-se que o cinema de guerra continua como na época dos grandes documentários, realizando uma idealização dos conflitos e das próprias pessoas envolvidas nele. Prova disso são os incontáveis filmes que romantizam a chegada dos norte-americanos na Normandia no chamado Dia D e a própria participação dos EUA na Segunda Guerra Mundial, como ocorre em O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998). Mas essa romantização da guerra não está somente em idealizar ao extremo um dos lados da guerra.

Como afirma Angelo Cinéfilo, um perfil do Instagram especializado em críticas de cinema, os filmes de guerra não apenas idolatram os soldados, como também romantizam o conflito ao criar a noção de bem versus mal. Pior do que isso, o cinema hollywoodiano cria uma visão maniqueísta no imaginário popular de que numa guerra existem vilões a serem combatidos pela população e que o outro lado é perverso e cruel. Mesmo em filmes que abordam conflitos mais recentes, como A Hora mais Escura (Zero Dark Thirty, 2012), há romantização ao vilanizar e estereotipar o outro lado, no caso, os árabes na chamada Guerra ao Terror.

Cena do filme O Resgate do Soldado Ryan. Soldados aparecem no campo de batalha. Um tanque é visto ao fundo.
Em filmes norte-americanos que abordam a Segunda Guerra Mundial, como em O Resgate do Soldado Ryan, ocorre uma idealização da figura do soldado, ao mostrá-lo como invencível e cheio de glória. [Imagem: Divulgação/Paramount Pictures]

“Não podemos nos ater somente a um olhar, porque se nós só atermos ao olhar norte-americano sobre a guerra, vamos acabar acreditando que todo filme de guerra possui um herói contra um vilão” comentou Ângelo ao discutir sobre a romantização presente nos filmes de guerra hollywoodianos “Esse outro olhar do mundo amplia os nossos horizontes, então, temos que nos permitir conhecer outros olhares para podermos sair dessa bolha de heróis e vilões.”


A romantização mais escura

Praticamente 80 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o cinema de guerra continua influenciando o imaginário sobre como os filmes precisam ter um mocinho e um vilão. O problema é que essa visão maniqueísta extrapola o limite cinematográfico e passa a manipular os pensamentos dos espectadores sobre a vida real.

Ângelo explica que o público médio consumidor deste gênero começa a acreditar que o outro e o desconhecido são inimigos e passa a odiá-los, chegando até mesmo a praticar discursos de ódio contra eles, como a islamofobia.

Como mostra o artigo feito pela Universidade do Sul da Califórnia (USC) sobre a representação islâmica no cinema, a população do Oriente Médio é normalmente retratada como terrorista e violenta. O problema está no pensamento racista do cinema que é transmitido a quem assiste, fazendo com que eles próprios comecem a defender a destruição dessa população para proteger o seu país como verdadeiros “mocinhos“.


O túmulo dos guerreados

Voltando às perguntas iniciais, o cinema de guerra pode tanto realizar uma romantização quanto uma denúncia da guerra. Depois de tantos anos mostrando uma idealização do que seria a guerra, os filmes de guerra começaram a mostrar um outro lado da guerra.

Como é possível ser visto em Vá e Veja (Idi i Smotri, 1985), os filmes de guerra começaram se preocupar em mostrar a humanização dos soldados envolvidos nos conflitos e todos os traumas e barbaridades que eles viram por lá, denunciando como a guerra é um terreno fértil para a crueldade humana de ambos os lados.

Essa é a premissa de um subgênero dos filmes de guerra: os filmes de anti-guerra. Preocupados em realizar uma propaganda de que é errado e não se deve fazer guerra, eles procuram muitas vezes desmistificar a narrativa clássica do mocinho lutando contra o vilão para salvar a humanidade. Pelo contrário, os filmes anti-guerra se preocupam em mostrar como em uma guerra não existem heróis e vilões, somente vítimas, como é representado na animação O Túmulo dos Vagalumes (Hotaru no Haka, 1988)

Cena do filme Vá e Veja. Uma criança loira sofre. Um soldado atrás dela aparenta ser o culpado.
Em filmes de anti-guerra, como Vá e Veja, pode-se observar os horrores da guerra através do olhar de um jovem soldado, que presencia crimes de guerra como estupro e destruição de vilas inteiras. [Imagem: Divulgação/Sovexportfilm]

Mas até que ponto um filme de anti-guerra, que mostra imagens cruéis sobre a guerra, também não é conivente com o conflito? Essa é a proposta feita pelo crítico e diretor de cinema François Truffaut que afirma que “todos os filmes de guerra são favoráveis à guerra”, já que ao levar o conflito para as telas de 35mm, você estaria levando também um entretenimento e espetacularização do conflito. 

Como todas opiniões são passíveis de desacordo, o perfil Cinema com Crítica apresenta uma outra visão sobre os filmes de guerra: a de que o propósito deles pode variar e apresentar uma crítica à desumanização presente no conflito.

“Aí entramos naquele ponto que discutimos sobre François Truffaut.” comenta Márcio, dono do perfil acima, ao abordar a importância e o papel dos filmes de anti-guerra “No momento em que o filme de guerra é um produto comercial, muitas das vezes de orçamento inflado, portanto suscetível aos mandos e desmandos dos estúdios, então se torna uma obra com o objetivo específico de lucrar, ainda mais quando provém dos grandes estúdios de Hollywood. Isso, é evidente, obriga a analisar se é moral lucrar sobre o infortúnio alheio, mas também força a pergunta se o lucro não é o mal necessário para a arte cinematográfica expor a sua denúncia.” 


Não vá, não veja e não lute 

A Guerra da Ucrânia continua ocorrendo mesmo com filmes russos criticando as crueldades que ocorreram na Segunda Guerra Mundial. As invasões norte-americanas continuam ocorrendo mesmo com animações mostrando a crueldade dos EUA com seus inimigos. Então, pra que servem os filmes de anti-guerra se as guerras continuam ocorrendo?

Como novamente explica Márcio, os filmes de anti-guerra possuem um propósito de denunciar a guerra e a crueldade e desumanidade presente nos conflitos dela, assim, conseguindo fazer com que o telespectador enxergue os horrores da guerra

Dessa forma, muito mais do que mudar o mundo, os filmes possuem uma preocupação maior em esclarecer a população, para que então ela mude o mundo. O melhor exemplo disso são os clássicos de Francis Ford Coppola (Apocalypse Now, 1979) e Oliver Stone (Platoon, 1985) que ajudaram as pessoas a tomarem consciência dos crimes cometidos pelos norte-americanos durante a Guerra do Vietnã

Cena do filme Platoon. Três soldados posam para uma foto no meio do campo de batalha.
Durante a Guerra do Vietnã, Hollywood começou a fazer filmes que criticavam os gastos excessivos com a guerra, a morte de jovens soldados no conflito e a própria violência norte-americana, como mostrado em Platoon. [Imagem: Divulgação/MGM]

Então, a própria crítica presente nos filmes de que era uma guerra desnecessária e uma perda irracional de recursos humanos e financeiros fez com que aumentassem as críticas ao sistema norte-americano. Por isso, os filmes até podem não revolucionar a humanidade e criar mudanças no governo, mas eles têm o poder de colocar uma pulga atrás da orelha de seu público para que ele procure revolucionar a humanidade e mudar o governo. 


2023

Independente do propósito por trás de um filme de guerra, não se pode negar a popularidade do gênero. Até porque, ano após ano, continuam sendo lançados filmes sobre os mais variados conflitos, acumulando prêmios e bilheteria, como o recente 1917 (2019). Mas o que de tão especial há nos filmes de guerra para conseguirem conquistar novos públicos e continuarem fazendo sucesso mesmo décadas após um determinado conflito?

Para o estudante do curso de audiovisual da USP, Gabriel Almeida, um dos fatores que explicam a popularidade do gênero é o próprio fator histórico. Como são histórias de eventos que ocorreram na realidade, isso gera o interesse do público para descobrir mais sobre uma história real e uma curiosidade para estudar sobre o período histórico e a própria guerra em si.

Além disso, muitos filmes de guerra que fazem sucesso com o público possuem clichês cinematográficos, como a jornada do herói ou histórias de superação, fazendo os telespectadores torcerem por esses personagens, como ocorre em Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016).

Cena do filme 1917. Um soldado corre em paralelo á luta.
Os filmes de guerra utilizam de uma narrativa épica, mostrando uma história de superação e de heroísmo do seu protagonista, como em 1917, fazendo com que o público se mobilize com ele. [Imagem: Divulgação/Universal Studios]

“Muitas dessas histórias possuem o tom épico, ou seja, contam uma história de superação de dificuldades com protagonistas que normalmente mostram humanidade até mesmo com seus inimigos”, disse Gabriel. “O que acaba gerando empatia de nós espectadores para que eles possam sobreviver ou alcançar seus objetivos neste ambiente perigoso. Além de que também é possível que nós, público distante da situação de guerra, consigamos imaginar como agiríamos neste ambiente.”


Destacamento Nova Guerra

Agora que já analisamos os propósitos por trás de um filme de guerra e a romantização e denúncia dos conflitos, podemos direcionar nosso olhar para outra questão: o futuro.

Pela última vez, Ângelo atenta uma prática comum não só para o cinema de guerra, mas para toda a indústria cinematográfica em si: a participação das chamadas “vozes invisíveis”. Por conta da inserção de profissionais vindos de minorias, como mulheres, negros, LGBTQIA+ e estrangeiros no mercado do cinema, os filmes começaram a ganhar novas histórias. 

Então, mesmo nos filmes de guerra que contam histórias sobre um mesmo conflito ocorrido há décadas, ainda existem novos filmes sobre grupos invisíveis que participaram da guerra para serem contados, como ocorre em Destacamento Blood (Da 5 Bloods, 2020), que mostra a participação de negros na Guerra do Vietnã.

Cena do filme Destacamento Blood. Cinco homens negros olham para algo no chão. Um deles está agachado e segura uma arma.
O futuro dos filmes de guerra está em mostrar histórias de “vozes invisíveis” durante a guerra, como ocorre em Destacamento Blood, que mostra a participação dos negros na Guerra do Vietnã. [Imagem: Divulgação/Netflix]

Então, independente de qual lado os próximos filmes da Guerra da Ucrânia escolherem (romantização, denúncia ou ambos), a certeza é que as vozes que antigamente eram silenciadas e atualmente são bombardeadas, finalmente, vão deixar de serem invisíveis e mostrarem o seu lado da guerra.

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