Por Catarina Martines (catarina.martines@usp.br) e Livia Bortoletto (liviafb@usp.br)
A Floresta de Darién, também conhecida como “selva da morte”, é uma região de 17.014 km² localizada entre a Colômbia e o Panamá, e é a única rota terrestre que liga a América do Sul à América Central. É um local inóspito, que é atravessado anualmente por milhares de imigrantes de diversas nacionalidades em busca de melhores condições de vida. Em 2023, o número chegou ao seu recorde: 520.085 pessoas cruzaram a floresta, segundo dados do Serviço Nacional de Migração do Panamá (SNM). De acordo com o projeto de Migrantes Desaparecidos da Organização Internacional para as Migrações, 546 morreram ou desapareceram em Darién entre 2014 e 2025 – dado que, provavelmente, representa apenas uma fração do número real de mortes, devido à subnotificação e à dificuldade para encontrar os corpos.
A região é caracterizada por uma série de aspectos que a tornam um lugar hostil à presença humana. Dentre eles estão a flora local, constituída por florestas tropicais densas, manguezais e pântanos, somados a um clima quente e úmido, cujas temperaturas podem atingir 35ºC. O relevo também é um fator complicante para a travessia da floresta, pois apresenta diversas cadeias de montanhas, costões rochosos e terreno lamacento, especialmente na estação chuvosa. Além disso, há diversos animais selvagens presentes na região, como onças pintadas, cobras, aranhas venenosas e escorpiões. Darién também é um local de hidrografia rica e complexa: os rios – como o Tuira e o Chucunaque – apresentam forte correnteza, e, nas épocas de chuva, podem ter cheias repentinas e cabeças d’água.
Conforme explica Maurício Kenyatta, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário do Distrito Federal, entretanto, esses aspectos naturais não são o maior desafio na rota dos imigrantes. “A presença e a atuação de grupos criminosos na região são o principal fator que transforma uma jornada de alto risco natural em um cenário de terror sistemático” , aponta o pesquisador. Ele explica que grupos como o Clã do Golfo, um dos maiores e mais poderosos cartéis da Colômbia, controlam as rotas migratórias no lado colombiano da fronteira. A passagem dos imigrantes só é permitida mediante pagamento de “pedágio” para esses criminosos e, quem não pode pagá-lo, sofre represálias violentas. Os “coiotes”, aqueles que são contratados pelos imigrantes para guiá-los no trajeto, também podem desempenhar um papel relevante nesse cenário de violência. “Eles frequentemente têm vínculos diretos com os grupos criminosos. Podem levar os migrantes para emboscadas, abandoná-los no meio da selva após receber o pagamento ou participar ativamente dos crimes cometidos”, explica o estudioso.
Ainda, segundo Maurício, ao longo de todo o trajeto, gangues locais e oportunistas armados formam emboscadas para roubar os imigrantes. “Eles levam não apenas dinheiro e celulares, mas também comida, roupas e itens de primeira necessidade, deixando as vítimas sem meios para continuar a jornada”, afirma. O pesquisador também aponta a violência sexual como uma arma de terror usada por esses grupos criminosos. “Mulheres, adolescentes e, em alguns casos, homens são sistematicamente vítimas de estupro individual e coletivo. A violência sexual é usada não apenas como um ato de dominação, mas também como uma ferramenta de terror para subjugar os grupos e garantir o controle”. O pesquisador acrescenta que, embora menos comuns, sequestros também são métodos utilizados para exigir resgate por familiares que vivem no exterior.
“A travessia de Darién não é apenas uma jornada migratória; é uma luta pela sobrevivência em um dos ambientes mais hostis do planeta, onde a vulnerabilidade humana é explorada e os perigos naturais são exacerbados pela criminalidade.”
Maurício Kenyatta, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário do Distrito Federal
A interrupção na Rodovia Panamericana
A Rodovia Panamericana, uma estrada que atravessa a América, desde o Alasca até o extremo sul da Argentina, é interrompida no trecho de 108 km pela Floresta de Darién. Em 1937, 14 países, impulsionados pelos Estados Unidos, firmaram um acordo para a construção da rodovia, e estabeleceram que cada país seria responsável pelo trecho que passasse por seu território. Contudo, no começo dos anos 1960, o Panamá e a Colômbia começaram a discutir sobre como a rodovia transporia a selva de Darién: alguns sugeriram que fosse em linha reta, outros que houvesse um pequeno desvio ao norte. As discussões diluíram-se em conflitos orçamentários e processos burocráticos.

Segundo Camilo Carneiro, professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiânia (UFG), houve outro fator que contribuiu para que a Rodovia Panamericana não passasse por Darién. “No início dos anos 1970, houve um surto de febre aftosa nos rebanhos da Colômbia. Se esse gado tivesse livre circulação por Darién, poderia contaminar o rebanho do Panamá e, posteriormente, dos Estados Unidos”, ele explica. Esse argumento foi utilizado pelos EUA – o principal país a estimular a construção da rota na época – e por organizações sanitárias para desincentivar a presença da rodovia na Floresta de Darién.
O pesquisador também aponta que a ação de ambientalistas estadunidenses foi importante para interromper a rodovia. Isso porque a região apresenta uma enorme biodiversidade e diversos ecossistemas, e a construção da rodovia implicaria em desmatamento massivo, fragmentação de habitats e danos irreversíveis à fauna e à flora de Darién. Maurício complementa dizendo que o relevo da região, com serras, rios caudalosos e extensas áreas pantanosas, representaria um desafio de engenharia colossal, de custos financeiros exorbitantes. “O governo panamenho parece priorizar outras formas de desenvolvimento para a área, possivelmente temendo que a rodovia facilite o transbordamento de conflitos e atividades ilícitas provenientes da fronteira colombiana, além dos impactos ambientais”, aponta o estudioso.
O que leva os imigrantes a se arriscarem em Darién?
Maurício explica que as origens dos imigrantes que atravessam a Floresta de Darién são diversas. “Historicamente, o fluxo era predominantemente composto por migrantes de Cuba e do Haiti, além de cidadãos de países africanos e asiáticos, como Camarões, Gana, Índia e Bangladesh. No entanto, nos últimos anos, o perfil mudou drasticamente”, aponta. Segundo dados do SNM, atualmente, imigrantes de cerca de 70 nacionalidades diferentes cruzam Darién, sendo que Venezuela, Haiti, Equador, China e Angola são algumas das origens mais comuns.
Ainda de acordo com o SNM, a maioria dos imigrantes que atravessam Darién são venezuelanos. Camilo explica que esse movimento migratório se dá devido à decadência econômica do país, em que o desemprego e a pobreza são alarmantes. Além disso, a Venezuela passa por uma grave crise política, em que a ditadura de Nicolás Maduro persegue opositores.

Quanto às outras nacionalidades, Maurício explica que, dentre as principais razões que motivam os imigrantes a se arriscarem em Darién, estão as crises econômicas, em que a hiperinflação, o desemprego em massa e a impossibilidade de prover as necessidades básicas tornam a sobrevivência muito difícil. “Muitos dos imigrantes também fogem da violência de gangues, do crime organizado, da instabilidade política e de violações generalizadas dos direitos humanos”.
O fato de a Floresta de Darién ser a única rota terrestre que conecta a América do Sul à América Central é o que torna esse caminho quase obrigatório no trajeto desses imigrantes. Como explica Maurício, viajar de avião até algum país da América Central exigiria passaportes válidos, vistos e recursos financeiros significativos. A maioria dos migrantes que fogem de crises profundas não possui essa documentação ou os meios financeiros para comprar passagens aéreas e arcar com os custos associados. “Embora existam rotas marítimas, elas também são controladas por redes de contrabando, são extremamente perigosas devido ao risco de naufrágios e à pirataria, e podem ser ainda mais caras e imprevisíveis do que a travessia terrestre”, afirma.
“A decisão de cruzar Darién não é uma escolha, mas sim o resultado da eliminação de todas as outras opções.”
Maurício Kenyatta, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário do Distrito Federal
O pesquisador aponta que o país em que os imigrantes esperam encontrar essas novas oportunidades é, na grande maioria das vezes, os Estados Unidos. “A jornada através de Darién é apenas uma das etapas de uma longa e árdua travessia que continua por toda a América Central e México. O objetivo é chegar à fronteira sul dos EUA para solicitar asilo ou tentar ingressar no país em busca do que é popularmente conhecido como o ‘sonho americano’”, ele explica.
Devastação ambiental e comunidades indígenas
A Floresta de Darién é dividida em dois parques: o Parque Nacional Darién, no Panamá, e o Parque Nacional Los Katíos, na Colômbia. A área foi declarada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 1981.
A passagem dos imigrantes também representa um risco ambiental. As milhares de pessoas que cruzam a floresta levam consigo itens de higiene, alimentos e roupa. Com isso, a trajetória percorrida por eles deixa um rastro de lixo, no qual objetos como sutiãs, cuecas e fraldas são deixados para trás. O intenso fluxo de pessoas passa a representar uma ameaça para o meio ambiente, que não está preparado para esse tipo de uso humano.
A região também é lar de alguns povos indígenas, como os Guna (ou Kuna) e os Embera-Wounaan. Devido ao conhecimento sobre o terreno, os rios da região e seus perigos, os indígenas começaram a fazer parte do que Maurício Kenyatta chama de “indústria da migração”. Através de saberes ancestrais, alguns membros das comunidades atuam como guias, seguranças e até como carregadores de mochilas para os imigrantes que atravessam a selva. A oferta desses serviços transformou-se em uma importante fonte de renda para essa população. “A relação dessas comunidades com o crescente fluxo de migrantes é complexa e predominantemente de natureza econômica, tendo transformado as dinâmicas sociais locais”, explica.

Humanidade em pauta
Mayara Paixão, repórter da Folha de S. Paulo, foi, por muito tempo, produziu em 2024 uma série de reportagens sobre a Floresta de Darién com o fotógrafo Lalo de Almeida e foi premiada no Prêmio CICV de Cobertura Humanitária Internacional. Em coletiva de imprensa realizada durante o curso Jornalismo em Guerra e Violência Armada, oferecido pela Oboré, empresa de comunicação, e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Mayara contou que havia pouco espaço na imprensa brasileira para essa região e para o tema migratório. Para a realização dessa cobertura, ela viajou ao lado de Lalo e contou com uma estrutura básica: um carro, hotel simples e segurança policial panamenha. Por isso, afirma que não sentiu medo por sua integridade física, pois sua condição era muito diferente da dos migrantes que cruzam a selva em extrema vulnerabilidade. “Eu não me vejo nem no espaço de falar que eu tinha medo, num contexto onde, em um ano, mais de 250 mil pessoas cruzaram a floresta de Darién para tentar chegar a pé nos Estados Unidos”, disse a jornalista.
O impacto maior, segundo ela, foi psicológico e emocional, ao presenciar o sofrimento e a precariedade das pessoas em trânsito. Entre os diversos casos com os quais ela teve contato, um em especial a marcou mais. Foi a história de duas bebês encontradas sozinhas na selva, supostamente brasileiras, mas depois identificadas como filhas de imigrantes africanos.Uma foi repatriada ao Brasil; a outra, filha de uma angolana que morreu na selva, permaneceu por meses em um abrigo no Panamá, enquanto o pai, retido em Angola por falta de visto, tentava localizá-la. Mayara ajudou a intermediar o contato entre o homem e as autoridades brasileiras. Com o tempo, porém, ela passou a sentir frustração diante da lentidão burocrática e da dúvida sobre se a repatriação realmente melhorou a vida da criança.
“A cobertura migratória não acaba quando você vai fazer, ela vai se desenrolando. Poucas coberturas têm um fim em si mesmas, mas a cobertura migratória, de fato, não tem”.
Mayara Paixão, jornalista
Para ela, o papel da imprensa ao cobrir situações como a da Floresta de Darién está justamente em juntar o lado humanitário dessa questão com os fatores políticos e estar atento às injustiças cometidas. “Eu particularmente acho que você não tem como entender o mundo se você não entende os seus vizinhos”, destacou a jornalista ao falar sobre a necessidade de entender o contexto regional em que essas travessias acontecem e as relações históricas, econômicas e sociais que ligam os países do continente.
Queda do fluxo de imigrantes
Só em 2024, cerca de 302 mil imigrantes atravessaram essa selva rumo aos EUA. Esse número, embora menor quando comparado com os 520 mil imigrantes em 2023, continua a representar um risco. Maurício Kenyatta explica que por mais que políticas restritivas não detenham a migração, esse declínio pode ser explicado por mudanças nas políticas de asilo e acolhida e pelas medidas de regulação dos fluxos migratórios. Ele argumenta que reduções como essa tendem a ser apenas temporárias, já que políticas de contenção e repressão geralmente produzem uma queda inicial, mas não eliminam o fluxo — que volta a crescer conforme persistem as crises humanitárias nos países de origem. Juan Raúl Mulino foi eleito no Panamá no ano passado e, desde sua posse, adotou uma política mais rígida com o objetivo de fechar a rota de Darién. O governo anunciou o fechamento de cinco trilhas ao longo da floresta, através da instalação de cercas de arame farpado de pelo menos 80 metros de comprimento e três metros de altura. Elas bloqueiam passagens habituais dos imigrantes e afunilam o fluxo de pessoas na direção de postos de identificação das autoridades.
O Estado panamenho defende que essas medidas visam evitar que os imigrantes conduzidos por coiotes sejam vítimas de assasinato e de outros tipos de crime. A medida mais efetiva, de acordo com o governo, é, no entanto, o aumento da vigilância marítima e terrestre que busca impedir o transporte irregular de pessoas. Com a volta de Donald Trump ao poder nos EUA, os imigrantes que cruzam a floresta tiveram seu principal destino final como alvo de políticas de deportação desenvolvidas em conjunto entre os governos estadunidense e panamenho. Em acordo assinado em 1º de julho de 2024, mesmo dia em que Mulino assumiu o mandato, os Estados Unidos começaram a financiar voos de repatriação de pessoas que entrarem ilegalmente no Panamá.
O governo do Panamá mantém acordos com Colômbia, Equador e Índia para repatriar migrantes em situação irregular, por meio de mecanismos que incluem o retorno voluntário, a deportação e a expulsão. Os venezuelanos — que correspondem a cerca de 68% dos migrantes, segundo dados do Serviço Nacional de Migração do Panamá (SNM) — estão isentos de deportação, já que o governo panamenho não mantém relações diplomáticas com a Venezuela. Após serem identificados e registrados no chamado “corredor humanitário” da floresta, os migrantes são encaminhados por agentes panamenhos a um albergue, onde recebem assistência enquanto aguardam a definição de seu destino. Desde que o programa foi implementado, em meados de 2024, apenas 1.744 migrantes irregulares foram repatriados, o que representa cerca de 0,6% do total de 302.203 pessoas que passaram pelo Panamá naquele ano.
Quando conseguem chegar em seus destinos, os imigrantes ainda enfrentam desafios. As políticas de deportação somadas a um crescente discurso xenofóbico, aumenta sua situação de vulnerabilidade. Em vez de enfrentar as causas da crise, as políticas de contenção apenas deslocam o problema como observa Maurício: “elas focam na securitização e na dissuasão, em vez de em uma gestão humanitária coordenada”.
Ele considera que a crise de Darién é consequência de um conjunto de responsabilidades compartilhadas. O pesquisador explica que o problema decorre tanto da incapacidade dos países de origem em garantir condições básicas de vida à sua população, quanto da falta de proteção oferecida pelos Estados que servem de rota migratória e das políticas adotadas pelas nações de destino, que tendem a valorizar o controle das fronteiras em vez de promover uma resposta solidária e humanitária. Mayara Paixão afirma que “Darién é um caso muito atípico e mostra pra gente como várias crises globais foram se encontrar no meio das Américas”. Ao chamar a região de “atípica”, ela destaca a excepcionalidade dessa sobreposição de crises e expõe como políticas migratórias restritivas, desigualdades profundas e as próprias condições ambientais se entrelaçam em um único território.
[Imagem de capa: Harvey Barrison/Flickr]
