A manipulação genética presente nas ficções científicas está mais próxima de nós do que imaginamos e gera debates éticos na ciência
Por Amanda Panteri (amanda.panteri@gmail.com)
A engenharia genética, apesar da sua pouca idade, constitui um dos campos mais promissores da ciência no século XXI. As recentes descobertas sobre o funcionamento do genoma humano trouxeram à tona discussões éticas ao redor do mundo, além de aproximarem cada vez mais as ficções encontradas nos livros e filmes do gênero com a nossa realidade. Hoje em dia, por exemplo, já é possível identificar diversos aspectos da saúde de um indivíduo através da análise de apenas um fio de cabelo do mesmo.
Essa possibilidade, que há pouco tempo atrás pareceria surreal, em muito se aproxima com o filme Gattaca: Experiência Genética (1997), do diretor Andrew Niccol. O longa retrata uma sociedade futurística que legitima seu funcionamento por meio da manipulação genética e, com isso, acaba criando novos tipos de preconceitos e hierarquias sociais advindos da evolução tecno-científica. Num mundo onde os fetos são geneticamente programados em vista da perfeição, aqueles que possuem “defeitos” gerados pela fecundação natural acabam enfrentando dificuldades maiores do que os chamados “filhos da ciência”.
É o que ocorre com o protagonista Vincent Freeman (Ethan Hawke). Por ser fruto da concepção tradicional, o menino passa a infância inteira lidando com a discriminação. A miopia e a propensão cardiovascular — cujo risco dava a ele uma perspectiva de vida de somente trinta anos — se tornam motivos suficientes para a rejeição dos planos de saúde e creches aos quais ele é inscrito. Vendo o quanto o filho iria sofrer no futuro, seus pais resolvem que seu irmão, Anton (Loren Dean), será previamente programado para não passar pelas mesmas dificuldades que o primogênito.
Devido às suas características, Vincent se vê constantemente comparado à Anton, e seu sonho de virar um astronauta é encarado como um delírio para muitos. Revoltado com a situação, ele decide fugir de casa já adulto e recorre a uma espécie de pirataria: lança mão de todas as artimanhas possíveis para se passar por Jerome Morrow (Jude Law), um rapaz super dotado que se tornou paraplégico após um acidente automobilístico.
Cientificamente possível, eticamente discutível
A história, apesar de ter quase uma década de idade, abarca questões muito atuais. O limite experimental da ciência é um exemplo que levanta diversas discussões entre os estudiosos hoje em dia. Relatórios como o de Belmont tentam demarcar o que é eticamente aceitável e o que é condenável com relação às experimentações humanas desde os anos 70, e ainda que essa seja uma linha tênue e polêmica para a legislação, conceitos como a bioética já são muito bem definidos e devem ser respeitados.
A bioética é a conduta profissional de um cientista ou especialista da saúde cujo princípio básico se resume à defesa da vida. Para Maria Rita Passos Bueno, bióloga e professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP, os procedimentos devem sempre prezar pelo paciente e pela melhora em sua qualidade de vida. A tarefa não é tão simples quanto parece: avanços no conhecimento requerem testes e provas concretas. Por isso, os comitês de ética são tão importantes.
A escolha das características dos próprios filhos pode gerar argumentações contrárias e favoráveis igualmente legítimas. Ainda que não seja possível determinar geneticamente a inteligência ou cor da pele de um indivíduo (essas particularidades são extremamente atreladas ao ambiente externo), doenças e síndromes raras ligadas ao genoma como o Huntington, Down e Alzheimer podem ser previstos através da análise de embriões. O grande dilema aparece quando nos questionamos se é admissível a escolha de um embrião em detrimento do outro (uma vez que isso não seria possível com a fertilização natural) ou até mesmo se é justo diagnosticar um bebê com as doenças incuráveis que ele será acometido na fase adulta, visto que isso pode impactar tanto na vida da criança quanto da família.
No universo de Gattaca, todas as evidências de DNA descartados pelo corpo – fio de cabelo, restos de pele morta e até saliva – podiam ser e eram utilizados para identificação e rastreamento dos cidadãos. No mundo em que vivemos, essa ínfima quantidade de amostra também possibilita pesquisas a respeito dos genes de cada um, mas a professora Maria Passos lembra: “Hoje, em termos gerais, você pode fazer um teste em um material genético apenas se o seu dono consentiu. Esse é o recomendado”.
Embora acredite que a sociedade atual ainda esteja longe de ideias como o preconceito genético (sofrido pelo protagonista durante o filme), a professora alerta sobre o perigo do charlatanismo científico. Laboratórios não legalizados que prometem milagres são armadilhas reais para aqueles com pouco acesso à informação ou desesperados para encontrar uma cura, mesmo que não comprovada. Para ela, a escolha deve sempre partir do consentimento, pois “o grande problema é que se cobra, e muito. O que é uma injustiça com as famílias que já estão passando por problemas de saúde e têm de enfrentar, além desses, os financeiros”. Ela acrescenta: “Uma pesquisa demora, não é rápida. Para chegar a uma conclusão final são necessários pelo menos 10 anos”.
A revolução do Crispr-Cas9
Se os debates a respeito da análise do DNA humano já são complexos, os que tratam da manipulação e edição do mesmo produzem ainda mais contestações. A engenharia genética, como é denominado o ramo, ganhou muita atenção nos últimos anos, sobretudo devido a seus avanços tecnológicos.
A verdade é que o ser humano sempre praticou o que se entende por biotecnologia – o uso da vida animal e vegetal em busca do melhoramento no estilo de vida humano – e com a engenharia genética não foi diferente: desde a Antiguidade, era muito comum a seleção de sementes e espécies para o aprimoramento das colheitas e abates.
Somente em 1953, após a publicação do trabalho intitulado Estrutura Molecular dos Ácidos Nucleicos, descobriu-se que o DNA era formado por um esqueleto de dupla hélice, revolucionando assim todos os estudos sobre o conceito. O que faltava, agora, era conseguir sequenciar as moléculas a fim de determinar a ordem das bases nitrogenadas e saber em quais traços do indivíduo elas agiam diretamente. As pesquisas avançaram ao longo das décadas, e a ambição dos cientistas cresceu na mesma proporção: já se falava na edição de pedaços do ácido desoxirribonucleico.
Os primeiros métodos de manipulação passavam por grandes impasses: costumavam ser muito caros, demorados e difíceis de prever. Porém, durante a última década, a ciência descobriu uma técnica que pode representar uma revolução no manuseio dos genes e até na cura de doenças como a Aids: a Crispr-Cas9.
O método Crispr foi descoberto inicialmente como uma parte do sistema imunológico de bactérias contra vírus invasores. Durante os anos 80, percebeu-se que essas bactérias possuíam sequências únicas em seus DNAs e, coincidentemente ou não, esses pedaços eram exatamente os mesmos presentes em vírus predadores (um indicativo de que os códigos eram guardados a fim de se evitar futuros ataques).
Durante uma segunda invasão, a bactéria utiliza esse pedaço do DNA viral para produzir a endonuclease Cas-9, responsável por eliminar e recortar o inimigo com uma precisão nunca antes vista. A possibilidade da utilização da tecnologia em células humanas começou a surgir em 2012, e a partir de então muito se tem falado sobre isso.
Maria Passos considera essa novidade muito importante para o mundo científico, mas ressalta que os estudos ainda estão em suas fases iniciais. Apesar de otimista, ela conclui que “não é fácil, e, para a utilização em terapias, ainda há muito chão”. Alguns países aparentemente já perceberam o potencial da Crispr e começaram seus investimentos: a Inglaterra aprovou, em fevereiro, a manipulação genética de embriões para a pesquisa; enquanto os chineses afirmam ter clonado o primeiro primata utilizando a técnica.
Avanços como a Crispr-Cas9 tornam o sequenciamento e o manuseio do DNA muito mais viáveis e acessíveis, fazendo o assunto um dos mais promissores do século XXI. Apesar de distópico, hoje é possível imaginar um futuro como o de Gattaca, e é por isso que conceitos como a bioética devem estar muito bem esclarecidos no imaginário científico.