“Um cara amado pelo povo, que não conseguiu amar o próprio filho”, é o que diz Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, mais conhecido como Gonzaguinha, sobre a relação com seu pai, em uma das cenas do filme Gonzaga – De Pai pra Filho (Idem, 2012), que estreia esse ano, em que é comemorado o centenário do Rei do Baião.
Esta fala traduz bem como o longa-metragem vai tratar da vida de do Gonzagão e de seu filho: uma história de laços afetivos, que transcende a personalidade que que cada um deles representa. Apesar do sucesso que tiveram no meio musical, por muito tempo, pai e filho mantiveram uma relação pouco sadia, calcada na distância. Através dos relatos biográficos, os conflitos decorrentes disso se tornam o motor da trama.
O filme começa pelo final, mostrando um encontro, inicialmente conturbado, entre Gonzagão e Gonzaguinha no sertão, já adultos; são dois indivíduos que compartilham muitos momentos de suas vidas, mas que, na verdade, não se conhecem e tentam fazer isso. É baseado nisso que o filme, fundamentado em entrevistas originais que Gonzaguinha gravou com seu pai, se desenvolve. Os nós do presente encontro se mostram fruto dos laços frouxos do passado e Breno Silveira, diretor do filme, acredita que a exploração disso é fundamental. “Uma biografia não é só contar uma história, mas contar um drama. O cinema vive do conflito”, declara.
Após tal cena, têm-se início a série de flashbacks que expõem o passado de Gonzagão, contados por ele mesmo, de modo muito linear – acontecem algumas voltas ao presente, mas de modo pontual. A trajetória do sanfoneiro começa quando ele ainda morava em Exu, no sertão de Pernambuco. Progressivamente, mostra-se a época que ele passou no Exército; depois, quando mudou-se para o morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, e na cidade fincou-se; construiu a carreira musical e começou a obter sucesso, casou-se duas vezes e da primeira união nasceu Gonzaguinha.
O tempo que passou na cidade carioca acabou sendo uma verdadeira volta ao folclore nordestino, esquecido nos tempos do exército. Luiz Gonzaga tentou seguir no caminho da música tocando as modas da época, com fardos, tangos e valsas, mas nada atraia a atenção do público – era mais do mesmo. Só conseguiu atingir o sucesso quando recorreu ao Baião, ritmo nordestino que era desconhecido no Rio. Assim, as regiões, tão distintas por suas realidades econômicas e culturais, praticamente isoladas, passam a se unir em um mesmo ritmo, o Baião de Gonzaga. “A música de Gonzaga rompe qualquer preconceito”, diz Breno Silveira, que também dirigiu o longa-metragem Dois Filhos de Francisco (Idem, 2005).
Apesar de sempre cuidar para que não faltasse nada à seu filho, quanto mais ficava famoso, mais Luiz se distanciava de Júnior afetivamente e a situação só piorava à medida que o menino crescia. Gonzaguinha passa de filho único a filho bastardo quando o pai se casa novamente. Seu interesse musical – bastante influenciado pela música de protesto da época da ditadura militar – foi subestimado por Gonzaga, que queria que o filho se tornasse “doutor” e não seguisse tendências “comunistas”. O ápice desse conflito faz com que, a partir daí, pai e filho sigam trilhas independentes, que pouco se cruzam – o que é perceptível na diferença de sonoridade da música de cada um. Gonzaguinha conseguiu obter sucesso sem a ajuda de seu renomado pai e em um campo musical muito diferente. Ele estampou um sucesso talvez tão influente quanto Asa Branca, a famosa O que é O que é.
Por ser uma história de dois músicos, as canções tocadas no filme não são apenas trilha, mas contam uma parte da história. A produção soube explorar bastante isso, colocando as músicas mais emblemáticas não apenas por serem famosas, mas explorando-as em em momentos certos. Asa Branca , por exemplo, aparece no filme após a segunda partida de Gonzaga do sertão, quando já é um músico reconhecido, que passou muito tempo sem ir à terra natal. Vale ressaltar também os arranjos bem construídos, baseados nas canções dos próprios biografados, que ambientam o filme.
Diferentemente da maioria de tramas biográficas, em que o acervo original de arquivos costuma aparecer apenas no final do longa-metragem, em Gonzaga – De Pai Para Filho, o material coletado é mostrado durante a história, sendo explorado de maneira inteligente também, em contextos propícios, assim como as músicas emblemáticas das personalidades.
É notável também o cuidado que se teve para a escolha do elenco. Como as duas figuras principais são retratadas em diversas fase da vida, não seria possível que apenas um ator interpretasse os respectivos personagens. Percebe-se que houve um cuidado para que os traços físicos entre todos eles – levando em conta também as personalidades reais Gonzaga e Gonzaguinha – fosse similar.
A escolha para o Luiz Gonzaga principal demorou cerca de um ano, até que se chegasse em Chambinho do Arcordeon. Buscava-se mais do que um bom intérprete, mas uma alma parecida com a do Rei do Baião e segundo Silveira, Chambinho, que nunca havia atuado antes, possui “alma de sanfoneiro, e não de ator”, o que o aproxima de Gonzagão. Já o Julio Andrade que foi atrás do papel de Gonzaguinha. O cantor estava presente na vida do ator desde a infância, antes da própria profissão, e Julio não mediu esforços para conseguir o papel. Já no teste, ele encarnou o ídolo: chegou caracterizado e manifestando os trejeitos dele. Tanto empenho só podia resultar na ótima atuação que se vê no filme.
Gonzaga – De Pai pra Filho desconstrói o mito que é Luiz Gonzaga ao mostrar o lado mais frágil de sua personalidade, tornando-o mais humano e tangível. Ao mesmo tempo, a trama reconstrói essa figura mítica por mostrar a bela – e inacreditável – trajetória que ele escreveu em sua vida. O expectador definitivamente há de se identificar com a história em algum ponto, pois além de uma biografia, o filme é também uma história de redenção entre pai e filho, em que um amor destrutivo consegue se transformar em um amor construtivo. “Você é meu pai”, Gonzaguinha interioriza, abraçando seu pai no sertão.
Por Luiza Fernandes
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