“Você diz que está com dor de cabeça, ele diz que você precisa emagrecer”. Esse é o relato de Dave Avigdor, publicitário de 27 anos do Rio de Janeiro. Quando perguntado sobre suas experiências com gordofobia no consultório médico, ele conta o seguinte: “Muitas vezes fui ao médico com um sintoma x e a consulta se tornou uma recomendação de bariátrica, com meus sintomas ignorados e reduzidos a ‘você tem que emagrecer, tem que se exercitar, tem que comer melhor’, sendo que nada me foi perguntado sobre minha rotina de exercícios ou de alimentação.”
Os obstáculos vão além dos profissionais e incluem também a própria estrutura dos hospitais. Dave conta como muitas vezes foram necessários improvisos para que conseguissem medir sua pressão e como até hoje não encontrou um aparelho de ressonância magnética em que possa realizar seus exames.
Nas palavras dele, a gordofobia significa, entre várias outras dificuldades, ter a saúde negada por profissionais de saúde. “É sobre falta de espaços, de acessos, de direitos, é sobre preconceito. É ser visto como uma característica antes de como um ser”.
Em agosto de 2020, a organização não governamental Obesity Canada publicou uma versão atualizada das Canadian Adult Obesity Clinical Practice Guidelines (Diretrizes canadenses para a prática clínica envolvendo obesidade em adultos). Além de fazer atualizações do que mudou no entendimento científico sobre a obesidade desde a publicação das diretrizes anteriores, o grande diferencial desse documento é o reconhecimento de que o estigma contra pessoas gordas acontece no sistema de saúde, algo que ainda é negado por profissionais de diversos países, incluindo o Brasil.
Diagnóstico
Os problemas relacionados à gordofobia são amplos e acontecem em várias etapas do processo. Para começar, existe uma série de problemáticas na forma como a obesidade é diagnosticada.
Na teoria, o diagnóstico de obesidade é feito utilizando o Índice de Massa Corporal (IMC). Essa medida foi criada pelo matemático belga Adolphe Quételet, reaproveitada em 1972 para o estudo da obesidade pelo fisiologista estadunidense Ancel Keys e depois se popularizou entre pesquisadores. Ela é a mais utilizada por ser a mais prática: com o peso e altura da pessoa, faz-se um cálculo simples para chegar ao resultado, que é realmente eficiente na maioria dos casos.
Na prática, a situação é mais complicada: “Existem evidências de que alternativas como a medida da circunferência de cintura são mais eficazes [que o IMC] em avaliar os riscos de mortalidade. Mas o que a gente vê é que os profissionais não usam nem um nem outro: eles olham para a tua cara e dizem se tu tens obesidade ou não”, afirma Marina Bastos Paim, nutricionista e mestra em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Mesmo quando efetivamente aplicado, o IMC tem vários problemas. Um deles está diretamente ligado à sua origem: utilizou-se como parâmetro um padrão demográfico muito limitado (exclusivamente de homens brancos, franceses e escoceses, especificamente). Consequentemente, o índice falha em levar em consideração a diversidade dos corpos. Ele não leva em conta, por exemplo, que mulheres e idosos acumulam mais gordura. Além disso, ele foi projetado para estudar grandes populações estatisticamente, não para avaliar a saúde de indivíduos.
De acordo com Marina, no contexto da prática clínica, ele é um método muito simplista que não vai dizer se, de fato, uma pessoa tem uma quantidade de massa gorda acima do ideal ou não, que é o elemento que faz a obesidade causar riscos à saúde.
Então, pessoas com biotipos diferentes – mais altas, mais musculosas, com uma densidade óssea maior – podem ser categorizadas pelo IMC como obesas, mesmo não necessariamente tendo uma quantidade excessiva de gordura. Existem pessoas com o IMC elevado que não terão nenhum dos problemas de saúde associados (pressão alta, resistência à insulina, triglicerídeos alterados etc.).
Para a nutricionista, está na hora do serviço de saúde repensar a prática que enquadra uma pessoa com um IMC alto, mas completamente saudável, em uma situação de dieta, sob medicamentos, que às vezes podem gerar mais danos do que se ela continuasse vivendo sem intervenção médica. Pensar no diagnóstico muda a forma como se intervêm na vida das pessoas.
As implicações disso seriam vastas: repensar esse critério exigiria uma grande reestruturação na forma como é feita a pesquisa científica sobre obesidade, pois grande parte dos dados produzidos até hoje são baseados em números de IMC e precisariam ser revisados.
Atendimento
Em sua pesquisa de doutorado, Marina Paim coletou depoimentos de centenas de pessoas gordas sobre suas experiências sofrendo gordofobia. O que ela constatou foi que o estigma se manifesta de várias maneiras: esses pacientes foram ridicularizados, ofendidos com termos como “hipopótamo” e “baleia”, pesados contra sua vontade.
Algo que foi mencionado com frequência foi que os relatos desses indivíduos sobre sua própria saúde são constantemente ignorados. Os médicos duvidam quando contam que fazem atividade física, supõem que estão diminuindo quando falam sobre o quanto comem.
Os profissionais também tendem a atribuir qualquer problema de saúde ao peso, e muitos pacientes relataram ter demorado a receber um diagnóstico correto de uma doença porque os profissionais simplesmente assumiam que o única causa era o peso e não investigavam as queixas reais de quem estavam tratando.
Tudo isso gera uma angústia nas pessoas ao ponto de elas terem medo de recorrer aos serviços: “A pessoa gorda só vai no sistema de saúde quanto está em uma situação muito grave, por que ela não vai querer ser colocada nessa posição de ser ridicularizada, humilhada e culpabilizada pelo próprio peso”, diz Marina.
Outra questão é a falta de acessibilidade física para pessoas gordas. Faltam cadeiras que as comportem nas salas de espera, medidores de pressão que caibam em seus braços, balanças que tenham capacidade para seus pesos. Em alguns casos, por exemplo, pessoas gordas precisam passar pela situação degradante de fazer uma tomografia em um centro veterinário.
Para a nutricionista, “é óbvio que uma pessoa gorda vai sofrer muito mais com doenças, porque a gordofobia nega o direito dela à saúde.”
Como combater a gordofobia na saúde
Marina aponta a necessidade de ir além da concepção individualista da saúde que reduz a questão da obesidade a mudanças comportamentais individuais, pensamento hegemônico que é propagado na mídia e que ainda está presente na postura de parte significativa dos profissionais.
Essa ideia culpabilizadora vai na contramão do que a ciência atual diz: existem vários fatores genéticos, biológicos, sociais e econômicos que contribuem para a obesidade e que estão fora do controle dos indivíduos.
Apesar disso, o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do Sobrepeso e Obesidade em adultos mais recente (que ainda vai ser lançado oficialmente, mas pode ser lido aqui) ainda indica a dieta hipocalórica como principal ferramenta de atendimento de obesidade, sem considerar os inúmeros estudos que apontam as problemáticas e a ineficácia das dietas restritivas.
Esses trabalhos científicos mostram que, entre outras coisas, um a dois terços das pessoas que fazem dietas recuperam mais peso do que perderam, que há evidência de que o processo de flutuação do peso que elas causam (o famoso efeito sanfona) é mais prejudicial à saúde do que manter o peso e que elas provocam uma relação transtornada com a comida.
Para a pesquisadora, o profissional de saúde precisa atuar em outras frentes para causar mudanças significativas, realizando um trabalho coletivo, multissetorial, que não se esgota no próprio serviço de saúde, citando a organização de feiras para comunidades que não tenham acesso a esse tipo de alimento saudável e a luta por políticas públicas para rotulagem de alimentos e taxação de hiper processados como exemplos.
Infelizmente, em sua análise, o governo brasileiro está indo na direção contrária. Ela cita os cortes no financiamento para novas equipes do Núcleo de Apoio a Saúde da Família e comenta: “Todo o nosso sistema está se estruturando agora para um atendimento super clínico e individualizado que não vai resolver os nossos problemas, porque eles são maiores do que isso”.
Ela também ressalta a importância de uma postura antigordofóbica por parte dos profissionais: “Dentro do consultório, a principal coisa que o profissional pode fazer é não culpabilizar o paciente, não estigmatizar e não praticar gordofobia. Só isso já vai melhorar muito a qualidade do atendimento.”