Desde quando foram notificados os primeiros casos da doença nos Estados Unidos, em 1981, e mais tarde identificado o vírus HIV, causador da Aids, a infecção por esse vírus esteve rodeada de preconceitos e desinformação, obstáculos para que medidas preventivas e o próprio tratamento fossem realizados da forma correta. Ainda hoje, muitos estigmas são propagados acerca de pessoas soropositivas, portadoras do HIV, interferindo drasticamente na vida após o diagnóstico.
É importante ressaltar que os termos HIV e Aids não são sinônimos. O HIV é o vírus causador da síndrome da imunodeficiência adquirida, que ataca nosso sistema imunológico, e sua transmissão ocorre por meio de relações sexuais desprotegidas, do compartilhamento de objetos perfurantes, como agulhas, ou de mãe para filho durante a gestação, parto ou amamentação. Já a Aids, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, é um estágio mais avançado da infecção causada pelo vírus, quando a quantidade de células de defesa diminui e abre caminho para doenças oportunistas, como a tuberculose.
Esclarecidos esses conceitos, é possível começar a criticar a forma como a doença é distorcida sob o olhar preconceituoso da sociedade, o que pode influenciar negativamente a percepção de como é a vida após o diagnóstico. Assim, para desmistificar e esclarecer o convívio com o HIV, esta reportagem do Laboratório irá analisar a dinâmica de prevenção e tratamento contra o vírus, assim como o histórico de discriminação de pessoas soropositivas que permanece até hoje.
ART, a primeira mudança na rotina
Ainda que vacinas estejam sendo estudadas, até hoje não há uma cura para o HIV: a partir do momento em que um indivíduo contrai o vírus, ele permanecerá para sempre em seu organismo. Porém, graças ao avanço da medicina, é possível controlar a progressão da doença através da Terapia Antirretroviral (ART) e, assim, uma pessoa pode ser soropositiva (portadora do vírus) e não desenvolver a Aids.
A ART é uma combinação de medicamentos que impede a multiplicação do vírus no corpo, diminuindo a carga viral. Essa queda pode ser tão significativa que o paciente pode atingir o nível indetectável e, se mantiver o tratamento, não transmitirá mais o HIV, apesar de ainda ser portador.
Portanto, a AIDS se tornou uma doença crônica, e essa mudança de pensamento também afeta a forma como as pessoas percebem a enfermidade: “Ela deixou de ser aquela doença que mata em 6 meses. Hoje, quando damos o diagnóstico de HIV para alguém, não tem o mesmo peso que a gente dava no passado, apesar disso depender muito da pessoa esperar ou não”. Essa é a avaliação do médico infectologista e diretor técnico de serviço de saúde da Casa da Aids do Hospital das Clínicas (SP), Dr. Karim Yaqub Ibrahim. Segundo ele, os poucos comprimidos diários — inicialmente dois — e os poucos efeitos colaterais facilitam a adesão ao tratamento, que pode ser obtido gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS).
Assim, uma pessoa portadora do vírus HIV pode — e deve — levar uma vida normal, desde que implemente os medicamentos na sua rotina. Adriano José Paulino (46), paciente da Casa da Aids de São Paulo, compartilha: “Eu não fiquei com medo, porque na época que eu peguei já tinha os tratamentos, então eu só queria saber de me cuidar, que agora eu tinha uma doença crônica”.
A ART deveria ser a única grande mudança após o diagnóstico, entretanto, as pessoas que se descobrem soropositivas enfrentam uma série de obstáculos além do tratamento.
Estigma e discriminação com origens históricas
A percepção que a sociedade teve das pessoas soropositivas sofreu modificações ao longo do tempo. Entretanto, até hoje, ela nunca deixou de ser preconceituosa.
No passado, além de o diagnóstico do HIV ser praticamente uma sentença de morte, havia uma carga extremamente preconceituosa na sociedade. Como os casos estavam concentrados na comunidade LGBT, uma conclusão precipitada e preconceituosa surgiu: era uma doença das pessoas gays. A partir daí, os homossexuais já não eram vistos como vítimas de um vírus, mas sim a causa deste. Nomes como “peste gay” e “síndrome da ira de Deus” eram utilizados inclusive pela comunidade científica, condicionando um ambiente de raiva e revolta contra esse grupo já marginalizado.
E tal estigma não somente prejudicou essa parcela da população, como também contribuiu para a disseminação do HIV. Como a Aids era considerada uma doença exclusiva de homens gays, as pessoas fora desse grupo não se sentiam vulneráveis ao vírus e não se protegiam, agravando a crise de saúde pública.
Em meio a esse cenário, foi a própria comunidade LGBT que ajudou a desestigmatizar a doença, realizando campanhas de conscientização e conversando com os profissionais da saúde para quebrar os preconceitos existentes, além de acolher as pessoas soropositivas. O primeiro Grupo de Apoio e Prevenção à Aids (GAPA), criado em São Paulo, por exemplo, desenvolveu propagandas criativas e sem tabu, mais diretas que as do governo, contribuindo para a orientação da população.
Além disso, com o tempo, as outras formas de transmissão do vírus foram descobertas, enfraquecendo as teorias homofóbicas da época. Porém, ainda que a associação entre sexualidade e Aids tenha sido corrigida e reformulada, muitos estigmas persistem, principalmente relacionados à doença e suas formas de transmissão.
Desinformação versus aceitação e apoio
Evitar o toque, não compartilhar copos, fazer comentários pelas costas: são algumas das reações que pessoas pouco informadas podem ter sobre a convivência com o HIV. Tais atitudes não somente discriminam esse grupo, como também impedem que outros indivíduos busquem a testagem e tratamento, com medo do julgamento da sociedade.
Segundo um estudo realizado pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), pouco mais de 64% das pessoas portadoras do vírus sofreram alguma forma de discriminação:
Logo após a notícia do diagnóstico, o paciente precisa lidar com sua nova realidade e também enfrentar diversos preconceitos, inclusive o seu próprio. Segundo o Dr. Ibrahim, muitas vezes não há mais a auto aceitação: “é um carimbo de preconceito que a pessoa acaba de receber, porque é um preconceito da sociedade e ela sabe que já não é mais a mesma. Talvez um preconceito que ela mesma teve em relação a outras pessoas. E é nesse momento que pode começar a depressão”.
Nesses casos, o acompanhamento psicológico e a existência de uma rede de apoio — familiares ou grupos de conversa —, são cruciais para a assimilação do diagnóstico e adesão ao tratamento. A pessoa deve se sentir à vontade para compartilhar — ou não —, suas experiências e frustrações e, para isso, precisa ser acolhida pelo seu círculo social mais próximo, algo que nem sempre ocorre devido ao medo ou vergonha.
Adriano conta que lida com o preconceito de diversas formas: “Otimismo, bom humor, jogo de cintura, esportiva. Cada um sai de casa com um problema e joga essas questões em cima da gente, então não podemos transferir esse problema para nós [soropositivos].” Porém, a carga negativa existe: “Depois que você conta, fica todo mundo com nojinho”.
HIV e Sexo
Então, usar preservativo é suficiente contra o HIV? Sim e não. A camisinha previne não só a gravidez, mas também outras ISTs e, por isso, deve ser utilizada em toda relação sexual. Entretanto, no caso da Aids, é possível fazer uma prevenção combinada, utilizando outros artifícios junto do preservativo: a profilaxia pré-exposição (PrEP) e a profilaxia pós-exposição (PEP). Seu uso é incentivado principalmente para pessoas mais vulneráveis ao contágio, como trabalhadores do sexo e aqueles que tem relacionamento com soropositivos, mas qualquer pessoa que sinta a necessidade pode ter acesso gratuito a esses medicamentos pelo SUS.
Assim, o sexo entre pessoas sorodiscordantes (portador e não portador do vírus) pode ser tão seguro quanto qualquer outro, ou até mesmo mais seguro com quem sabe a sorologia e faz o tratamento do que com quem não sabe: “Hoje eu não machuco ninguém, é mais fácil alguém me machucar”, afirma Adriano.
Convívio com HIV
Muito se fala sobre o vírus, a importância de usar camisinha, possíveis vacinas em desenvolvimento que colocarão um fim à epidemia. Porém, para combater o preconceito, é necessário falar de pessoas e desmistificar ideias ainda presentes no imaginário popular. Isso envolve humanizar os indivíduos, que não se resumem ao seu estado sorológico.
“Eu continuo indo na boate, continuei me divertindo, não abaixei a cabeça. Eu não deixei de ser feliz”, relata Adriano sobre sua convivência com o HIV.
O vírus não impede que você leve uma vida como qualquer outra pessoa, mas o preconceito sim. Para isso, é preciso estar bem informado, tanto para o seu bem estar quanto para o do próximo.
Material muito bem fundamentado!
Gostei bastante da escrita e as considerações acerca do tema! Parabéns , Sofia Lanza! Sucesso!
Parabéns a Sofia H. Lanza por discorrer de um assunto polêmico de um modo objetivo, natural e principalmente informativo