Por Giulia Polizeli (giulia.polizeli@usp.br)
Os anos de ouro do automobilismo, correspondente às décadas de 60 e 70, são marcados pela criação de lendas do autoesporte, corridas memoráveis e a falta de mulheres presentes dentro e fora das pistas. No entanto, a presença feminina sempre existiu no esporte por meio de figuras que lutaram por espaço nesse meio.
Histórico
Em 2009, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) criou a Comissão Mulheres no Automobilismo com o objetivo de financiar e apoiar projetos de inclusão feminina no esporte. A partir do trabalho dessa filial, surgiram iniciativas de apoio a jovens meninas que sonham em trabalhar no automobilismo meio, como o Dare To Be Different (D2BD), Girls on Track (GOT) e Girls Like Racing (GLR).
Fundada em 2016 por Susie Wolff, ex-piloto, membro da Comissão Mulheres no Automobilismo e presidente da F1 Academy, a iniciativa Dare To Be Different foi o pontapé inicial para a criação de projetos de incentivo à participação de mulheres no automobilismo. Em 2019, Susie Wolff se juntou à uma parceria com a FIA para criar o Girls On Track – Dare To Be Different, um programa educacional voltado a meninas entre 8 e 18 anos em Berlim e na Cidade do México. Após o sucesso da parceria, a federação decidiu adotar o modelo do projeto para uma expansão global: o FIA Girls On Track.
Atualmente, o FIA GOT é um dos principais projetos criados pela comissão e vem se expandindo internacionalmente ano após ano, abordando cada vez mais países e diferentes categorias do esporte.
As primeiras versões do projeto buscavam incentivar, principalmente, jovens pilotos de kart. [Reprodução: Instagram/cfabrasil]
FIA Girls On Track: Expansão Mundial
A primeira categoria criada pelo projeto, ainda em 2019, chamada de Girls On Track: Rising Stars, foi uma parceria com a academia de pilotos da Ferrari voltada ao público entre 12 e 16 anos. Divididas em duas categorias, junior e senior, as garotas passam por um programa de três anos para o desenvolvimento da sua carreira no Kart.
Após a criação do Rising Stars, outros projetos voltados para ajudar meninas a desenvolverem uma carreira foram criados. Na Europa, nove países participam do Girls On Track – Desafio de Kart, um programa de até dois anos onde as participantes competem representando suas nacionalidades até chegarem à corrida final. As seis vencedoras da competição formam uma equipe europeia e são enviadas para um acampamento de treinamento de pilotos criado pela FIA.
Durante o ano de 2023, a versão do projeto do Reino Unido levou um grupo de estudantes para conhecer a fábrica da equipe NEOM McLaren Formula E Team [Reprodução: Instagram/girlsontrackuk]
Na Austrália, foram desenvolvidos os projetos Girls On Track – Pathways e Inspire, focados em jovens meninas e mulheres na faixa de 15 a 22 anos. Nessa experiência imersiva, as selecionadas acompanham campeonatos locais de automobilismo e são introduzidas em equipes competidoras, ocupando cargos voluntários em diversas áreas, incluindo mecânica, engenharia e áreas de comunicação como social media e marketing.
Versão Brasileira
O FIA Girls On Track chegou ao Brasil em 2022, no Grande Prêmio de São Paulo da Fórmula 1, em uma parceria com a Forte Agência, focada em comunicação e marketing automotivo. Em sua primeira edição, vinte garotas incluindo estudantes de engenharia, alunas do ensino médio e criadoras de conteúdo automobilístico foram convidadas a passar um dia imersivo nos bastidores da mais famosa competição automobilística do mundo.
Apenas dois meses após o sucesso da primeira edição do projeto no Brasil, Giovanni Guerra, presidente da Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA), resolveu criar a Comissão Feminina de Automobilismo (CFA). Bia Figueiredo, piloto profissional, foi convidada para liderar a comissão ao lado de Rachel Loh, engenheira mecânica e Bruna Frazão, especialista em Marketing Automotivo. Atualmente, a CFA administra quatro projetos do Girls On Track.
Acolhendo até 120 estudantes por edição, a experiência na Fórmula E é o maior projeto administrado pela comissão brasileira e tem como principal objetivo apresentar a categoria e incentivar mais garotas a criarem um interesse por carros elétricos. A partir da sua segunda edição, a experiência Girls On Track – Fórmula 1 sofreu alterações e agora acolhe até 30 estudantes universitárias e de ensino médio entre 15 e 25 anos.
As selecionadas para qualquer edição do GOT Brasil são sempre acompanhadas de perto pelos membros da Comissão Feminina de Automobilística Brasileiro [Reprodução: Instagram/cfabrasil]
Além dos projetos de experiência imersiva, foram criados projetos focados em criar experiências profissionais para suas participantes. A Seletiva de Kart, por exemplo, permite que garotas entre 8 e 25 anos compitam em três categorias (Cadete, Júnior e Graduadas) pelo prêmio final – uma inscrição no Campeonato Brasileiro de Kart, com patrocínios e o apoio da Comissão Feminina de Automobilismo.
Já o projeto Girls On Track – Engenheiras e Mecânicas é a chance para que estudantes universitárias vivenciem na prática a rotina de trabalhar em uma equipe de automobilismo. Presente em campeonatos como a Stock Car, Porsche Cup e Copa Truck, o GOT permite que as participantes sejam integradas em equipes competitivas como voluntárias por um final de semana e trabalhem lado a lado com profissionais do automobilismo, proporcionando aprendizagem na área e networking com possíveis futuras equipes.
Acreditar é Transformar
Em entrevista ao Arquibancada, Caroline Politta, engenheira mecânica, criadora de conteúdo online sobre automobilismo e voluntária no GOT duas vezes, incluindo o projeto Engenheiras e Mecânicas, contou sobre a importância da visibilidade das mulheres nesses ambientes profissionais. “O FIA Girls On Track é um projeto que mostra para as equipes de corrida que existem muitas mulheres que possuem vontade de viver neste mundo e estão dispostas a trabalhar com automobilismo e a aprender, mesmo que seja puxando peso e sujando as mãos”, afirmou.
A visibilidade concedida pelo projeto à essas mulheres, apesar de parecer pequena e momentânea, possui um grande efeito na vida de suas participantes. Raquel Nunes, social media de automobilismo, participante do projeto em 2023 e voluntária em 24, relatou em conversa com o Arquibancada que iniciou sua carreira no automobilismo por meio de conexões que fez durante sua participação no Girls On Track. Nunes tem recebido constante suporte da Comissão desde a sua primeira participação no projeto. “Elas nunca irão te ensinar, mostrar como as coisas funcionam e, em uma oportunidade, abandonar você. Elas vão continuar acompanhando seu trabalho para ver como as coisas estão acontecendo.”
Na foto, o piloto George Russell da equipe Mercedes-AMG Petronas Motorsport conversa com as participantes do Girls On Track Formula 1 2023 [Reprodução: Instagram/cfabrasil]
Em outra conversa, a estudante de engenharia e participante do projeto, Giulia Demarchi, contou sobre como o GOT foi o principal fator para alcançar seu novo sonho de trabalhar na área de engenharia automotiva. Durante seu final de semana no GOT – Fórmula 1, Demarchi teve a chance de conhecer a garagem da Mercedes-AMG Petronas Formula One Team, e conversar com duas engenheiras da equipe, incluindo a engenheira aerodinâmica, cargo que sonha em ocupar algum dia.
“Depois que eu saí dos boxes, eu percebi que era aquilo que eu queria e hoje eu trabalho para isso, para ingressar nessa área ”
Giulia Demarchi
A história de Raquel e Giulia são apenas duas das centenas de garotas que tiveram a vida transformada por esse projeto. No entanto, o impacto causado pelo Girls On Track no Brasil ainda é pequeno em comparação com o seu potencial de influenciar a vida de meninas em todo o país.
Investimentos: O que falta para mudar o cenário?
O processo de implementação da iniciativa no Brasil vai além de juntar um grupo de garotas selecionadas para passar um dia ou um final de semana dentro das garagens e das pistas. É necessário um planejamento meticuloso que leve em consideração as diferentes realidades das participantes, além das limitações organizacionais e financeiras do projeto.
Até o momento, as oportunidades de acolhimento para garotas no mundo automobilístico são pequenas e o apoio financeiro ainda é um fator limitante no gerenciamento do programa. Levar candidatas de um estado para o outro, fornecer acomodação, alimentação ou qualquer tipo de suporte financeiro, por enquanto, são cenários inviáveis. Contudo, a CFA afirma ter como objetivo tornar os eventos do Girls On Track os mais democráticos possíveis.
Bruna Frazão, membro da CFA e especialista em marketing automotivo, concordou em conversar com o Arquibancada e contou sobre as ações feitas pela comissão para que essa meta seja alcançada e metas para o futuro. “Tentamos ao máximo sair da cidade de São Paulo. Um exemplo disso é a seletiva de kart que esse ano será realizada em Birigui, interior de São Paulo. Assim como os estágios em motorsport, que são realizados em parceria com as categorias em cidades como Goiânia, Cascavel, interior de SP, etc”, afirmou.
“Nosso sonho é conseguir mais verba e patrocinadores para alcançarmos todas as regiões do país e, principalmente, contar com uma verba extra de logística para trazer meninas de cidades distantes, para participarem dos eventos.”
Bruna Frazão
A falta de patrocínio para iniciativas como o Girls On Track pode não parecer um grande problema, mas é fácil perceber como esse incentivo pode fazer diferença quando olhamos programas como o Girls Like Racing By Ipiranga. Criada pela engenheira Erika Prado em 2017, a iniciativa era inicialmente uma comunidade no Whatsapp para criar uma maior união entre mulheres fãs de automobilismo.
Com o patrocínio da empresa Ipiranga, o grupo evoluiu para as pistas e atualmente, possui um projeto chamado Estágio em Motorsport que atua de forma similar com o FIA GOT Engenheiras e Mecânicas. O projeto leva grupos de mulheres para trabalharem como voluntárias em competições nacionais, como a Stock Car e Porsche Cup em diversos estados brasileiros.
O Estágio em Motorsport junta uma equipe de garotas para trabalhar lado a lado com mecânicos e engenheiros em dias de corrida [Reprodução: Instagram/cfabrasil]
O suporte às jovens meninas entrando no automobilismo vindo desses projetos é considerado crucial para que o esporte se torne mais acolhedor e feminino nos próximos anos. Desde a sua criação em 2016, o Girls On Track tem quebrado barreiras dentro do automobilismo e mostrado para futuras engenheiras, jornalistas e pilotos femininas que elas são capazes de seguir e atingir seus sonhos. Assim, para que as transformações iniciadas pela CFA continuem, o apoio do público e de patrocinadores torna-se cada vez mais necessário.