Por Regina Lemmi (regina_lemmi@usp.br)
A Hora dos Ruminantes, de autoria de José J. Veiga, lançado em 1966, poderia ter sido a adaptação brasileira mais promissora de 1967. 58 anos depois, Tarsila Araújo e Marcelo Cordeiro de Mello lançam o documentário, Os Ruminantes, com base no roteiro do longa inacabado para narrar os desejos não concretizados do cineasta Luiz Sérgio Person (1936 – 1976) antes de sua morte.
O livro é descrito pela sinopse da Companhia das Letras como “A chegada de um grupo de homens e a invasão de dezenas de cães e de bois na pacata cidade de Manarairema altera a rotina dos moradores locais e coloca em evidência a imprevisibilidade da vida”.
A partir de entrevistas com Marina Person, Jean Claude Bernardet, Sebastião de Souza, e extratos de uma entrevista com o diretor e roteirista Person, o documentário se desenrola de maneira sucinta e prática. Entretanto, em 1 hora e 30 minutos, a obra se perde em menções a figuras da cinematografia brasileira dos anos 1960 e 1970 desconhecidos pelo público geral, o que sugere ao espectador que esta produção foi feita de conhecedores da arte do cinema para eles mesmos.
Após o documentário manter-se desatento em apresentar os filmes famosos feitos por Person, como São Paulo S.A. (1965) e O caso dos Irmãos Nave (1967), finalmente narra-se as interessantes dificuldades em produzir A hora dos Ruminantes, o tal filme “maldito”.
As produções
O filme teve duas tentativas de gravação. As duas, fracassadas.
A versão de Luiz Sérgio Person não foi produzida porque o produtor foi aconselhado pela esposa em focar no tratamento de problemas cardíacos. Em 1979, o cineasta José de Anchieta decidiu produzir o longa, com a doação de 500 cachorros de rua pela Secretaria de Saúde da Prefeitura de São Paulo. Entretanto, em fevereiro de 1979, as chuvas na região causaram uma grande inundação do rio Turvo — elemento essencial para a história do livro —, e a maior parte dos animais foi levada pela correnteza.
Os entrevistados afirmam que produzir o filme era um grande desejo de Luiz Sérgio Person como um testemunho de estética e de suas ideologias de esquerda resistentes ao golpe militar de 1964. Marina Person conta que, antes do pai falecer, ouviu de uma conhecida da família que se o cineasta morresse antes de fazer este filme, morreria frustrado.

Tratando do desenvolvimento da produção, o clímax do documentário acontece de maneira abrupta. O filme, que desponta-se como apenas uma adaptação, se torna um símbolo de resistência crucial para os documentaristas, que poderia ter sido mais explorada e composto metade do longa. Ao invés disso, o projeto apenas aponta evidências de que Luiz Sérgio Person foi alvo de boicote pelo órgão de repressão brasileiro DOI-CODI, em parceria com a Association of Motion Pictures of America, para não exibir o filme O Caso dos Irmãos Nave nos Estados Unidos. Um tema tão crucial e interessante para entender a importância de fazer este documentário se tornou apenas meros segundos de tela.
Com tom conclusivo, Tarsila Araújo e Marcelo Cordeiro de Mello destacam a importância de narrar, nos dias atuais, a história de um cineasta paulista fracassado e um filme amaldiçoado. Enquanto na época, em A Hora dos Ruminantes, a invasão dos bois na praça e ruas da vila criticava o golpe militar de 1964; o livro e possível adaptação tem valor inestimável para a atualidade do século XXI, por criticar o poder exploratório do grande agronegócio brasileiro e o desmatamento das regiões naturais brasileiras.
“Eu acho que vocês estão perdendo a chance de fazer um filme sobre a bancada ruralista. Os bois são deles”
Jean Claude Bernardet
É assim que o documentário Os Ruminantes conclui-se. Com pequenas sugestões às mazelas sociais enfrentadas atualmente e durante o período do golpe militar, o documentário satisfaz qualquer espectador que conheça sobre o cinema brasileiro e suas dificuldades, mas priva o telespectador geral de entender uma nova história desconhecida.

Esse filme fez parte do Festival Internacional de Documentários ‘É Tudo Verdade’. Para mais resenhas do festival, clique na tag no início do texto.
*Imagem de capa: Reprodução/TMDB