Esnobada nas categorias de atuação e de produção pela última edição do Globo de Ouro, e com impressionantes 98% de aprovação pela crítica do site agregador Rotten Tomatoes, I May Destroy You (2020) produzida pela HBO e pela BBC é, definitivamente, uma produção contemporânea. Afirmo isso não apenas por se tratar de uma série do ano passado, mas por seu conteúdo e forma. Além de um único acontecimento na vida da protagonista, a série aborda também uma gama de temas que envolvem nossas relações com amantes, chefes, familiares, amigos, redes sociais e o consentimento desses vínculos.
I May Destroy You (2020) apresenta traços biográficos da atriz, roteirista e produtora executiva Michaela Coel. Uma noite, enquanto trabalhava no roteiro de sua antiga série Chewing Gum (2015-17), Michaela saiu para beber e foi abusada sexualmente. Apesar da gravidade da situação, ela não se lembrava do ocorrido no dia seguinte e retornou ao trabalho para entregar o roteiro da produção. Nesse momento, o abuso passou a aparecer para a atriz como fragmentos em sua memória, gradativamente assimilados como realidade. É exatamente da mesma forma que a jornada da protagonista Arabella (Michaela Coel) em I May Destroy You se inicia.
Embora dinâmica, com episódios de 30 minutos, e relativamente movimentados, a série não deixa de lado as camadas de suas personagens e os variados tipos de abusos e percepções — ou não — deles no cotidiano.
I May também não se coloca como uma série “puritana”. Obviamente, ela não propaga uma cultura do estupro ou inocenta seus abusadores, mas promove uma construção mais realista de seus protagonistas.
Os amigos Kwame (Paapa Essiedu) e Terry (Weruche Opia) vão além de espectadores de Arabella, e suas dores e conflitos pessoais reforçam a discussão da série sobre os vários âmbitos do consentimento envolvido em nossas relações pessoais, assim como suas violações.
A relação entre Arabella e sua chefe, seu abuso sofrido com o colega Zain (Karan Giil), a participação da sobrevivente Theodora (Harriet Webb) e os interesses de seu envolvimento com Arabella são alguns dos momentos em que se percebe o quão real é o roteiro da série. Nenhum personagem é demasiadamente idealizado ou demonizado, o que não inocenta os abusadores dentro da história. Todos são testados em meio às cobranças físicas e emocionais de suas jornadas.
A necessidade de trabalho força Arabella a espremer todo seu trauma emocional, e tornar seu abuso em produto editorial. A relação dela e de sua chefe Susy (Franc Ashman), com quem acredita ter apoio em um ambiente hostil — por ambas serem mulheres negras —, na verdade é frustrada quando a chefe não apresenta qualquer sororidade pelo trauma de Arabella.
O grande destaque da temporada é seu episódio final. Ele mistura fantasia e realidade e mostra diferentes possíveis resoluções para o conflito de Arabella. O primeiro final mostra um linchamento literal do estuprador, utilizando-se de todos os artifícios para que o público sinta o peso simbólico de um final extremamente violento e, até certo momento, catártico para Arabella. Aqui, acredito que ocorra uma grande brincadeira com o nome da série, em que a possibilidade de destruição de uma pessoa é levada a patamar extremo. Já a segunda versão apazigua totalmente a violência do estupro e mostra a versão mais humanizada e arrependida do agressor, tornando-se opostamente exagerada. A terceira e mais enigmática demonstra uma troca nas relações de poder. Nesse cenário, são os homens que ficam vulneráveis, sofrem o abuso e têm seus corpos objetificados.
*Imagem de capa: Divulgação/HBO