Por Alessandra Ueno (aleueno@usp.br) e Melannie Silva (melanniesilva@usp.br)
O Instituto Butantan, localizado no bairro Butantã, zona oeste da cidade de São Paulo, tem uma longa história de contribuição à ciência e é reconhecido, principalmente, pelas produções de soros antiofídicos, utilizados para tratar picadas de cobras venenosas, e vacinas, que constituem o calendário nacional de vacinação como: HPV, influenza e hepatite A e B. Durante a pandemia de covid-19, o Instituto ganhou notoriedade por ser o responsável pela produção da vacina Coronavac. Porém, o potencial de produção e pesquisa do Butantan não para por aí. Neste texto para o Laboratório, vamos conhecer outros dois estudos e patentes desenvolvidas pelo Instituto.
Compostos bioativos produzidos por microrganismos
Em entrevista ao Laboratório, doutora Ana Olívia de Souza, pós-doutora pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e pesquisadora do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação do Instituto Butantan, conta que o objetivo inicial era utilizar microrganismos na busca por compostos que apresentassem ação antibiótica ou antitumoral. “Temos interesse em espécies de fungos isoladas da biodiversidade brasileira, como espécies presentes em ambientes ainda pouco estudados, como o bioma Caatinga”, disse a pesquisadora. De um arbusto endêmico da Caatinga, o grupo isolou uma espécie de fungo endofítico. Microrganismos endofíticos são aqueles que vivem no interior das plantas sem causar danos ou prejuízos à planta hospedeira.
Como o objetivo era a pesquisa de compostos bioativos, foram analisados dois metabólitos secundários produzidos por essa espécie de fungo. Mas, o que são metabólitos secundários?
Eles são sintetizados quando o crescimento microbiano está na fase estacionária. Como por exemplo, a penicilina é um metabólito secundário produzido por fungos do gênero Penicillium. São compostos de baixa massa molecular, que podem ser bioativos, com características antibióticas e imunossupressoras. Esses metabólitos são formados, geralmente, quando grandes quantidades de metabólitos primários — pequenas moléculas produzidas ao longo do crescimento vegetativo — são acumuladas. Uma vantagem do uso de metabólitos produzidos por microrganismos é que eles podem ser cultivados em larga escala e não existe prejuízo ambiental, nem ético, como no caso dos metabólitos advindos de insetos e outras espécies de animais.
Os dois compostos encontrados não eram conhecidos, então, poucos relatos foram identificados sobre seus potenciais e efeitos biológicos na época da pesquisa. A partir da cultura do fungo, foi realizado o isolamento desses compostos que foram então codificados como F1 e F2. A quantificação em diferentes meios de cultura e o tempo de reprodução foram fatores analisados para obter a maior eficácia de produção dos metabólitos. O efeito antibiótico dos compostos foi estudado em fungos e bactérias patogênicas e revelou uma baixa ação antibiótica. Já a análise de seus efeitos em células tumorais — estas também presentes na leucemia humana — foi de que: não diminuem a viabilidade celular e até promovem a proliferação em algumas concentrações. Ana Olívia destaca: “Este resultado não foi inicialmente interessante, mas levou a nossa equipe a questionar se esses compostos seriam capazes de induzir a proliferação de células normais de forma controlada, com possibilidade de aplicação em medicina regenerativa, por exemplo, na cicatrização de feridas”.
Assim, a pesquisa voltou-se para o possível uso desses metabólitos na regeneração de tecidos. Testes em células endoteliais e em fibroblastos normais humanos, principais células envolvidas na cicatrização com a função de manter a integridade do tecido epitelial, também foram realizados. Os dados apontaram para o real benefício do envolvimento dos dois compostos no processo de cicatrização, reparação e regeneração de tecidos.
Toda a pesquisa já era benéfica para os pesquisadores, já que os metabólitos selecionados não possuíam muitos estudos anteriores, mas tornou-se ainda mais importante para o Instituto Butantan ao solicitarem ao INPI, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o depósito de uma patente.
Produção de vacina profilática e terapias contra o HPV e cânceres associados ao vírus
O papiloma vírus humano (HPV) é transmitido principalmente pelo contato sexual. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), existem mais de cem variações do vírus, sendo 14 deles responsáveis por cânceres anogenitais, orofaríngeos, cutâneos e cerebrais em homens, mulheres e crianças. Devido a maior parte das infecções por HPV ocorrerem nos momentos iniciais da vida sexual, a recomendação é de que a vacinação ocorra o mais cedo possível: a OMS estipula a faixa etária de 9 a 14 anos como a mais efetiva para uma boa resposta imunológica.
O câncer cervical ou câncer de colo do útero é a quarta causa mais comum de morte entre mulheres no mundo. Embora seja um tumor passível de prevenção, devido à sua progressão lenta, e a sua fácil detecção, cerca de 500 mil mulheres são diagnosticadas anualmente e aproximadamente metade delas chega a óbito, de acordo com a OMS.
O câncer de colo de útero é o quarto tipo de câncer mais comum entre pessoas do sexo feminino. No Brasil, são registrados 19,2 mil novos casos por ano, sendo que 5,3 mil mulheres anualmente vão a óbito, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA).
Atualmente, o Instituto Butantan possui uma pesquisa que busca encontrar terapias e novas profilaxias contra o HPV. Em entrevista ao Laboratório, Aurora Marques Cianciarullo, doutora em Biologia Celular e Molecular pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pesquisadora do Instituto Butantan e coordenadora do projeto, relatou as etapas da pesquisa que trouxeram a primeira vacina contra o HPV para o Brasil.
Em 2002, o intuito era estudar a interação entre o papiloma vírus e as células hospedeiras, com o objetivo de encontrar vias alternativas de infecção por HPV. Para o estudo ser realizado era necessário obter VLPs, partículas pseudo virais não infecciosas compostas de proteína — um caso famoso de VLPs são as proteínas Spike usadas em algumas vacinas contra o coronavírus.
A produção dessas proteínas representou um avanço tecnológico ao Instituto: “Utilizamos a engenharia genética e a tecnologia do DNA recombinante na construção de vetores contendo apenas os genes de interesse. Neste ponto ampliamos nossas habilidades científicas e biotecnológicas, pois adquirimos o conhecimento necessário ao desenvolvimento de vacinas de VLP. A necessidade trouxe a diversidade em nossos objetivos iniciais”.
Engenharia genética ou modificação genética é basicamente o processo de alteração de um trecho do DNA de um organismo. É um dos principais artifícios da biotecnologia e tem o objetivo de aprimorar, reestruturar ou induzir um gene. As aplicações são várias, desde a utilização médico-farmacêutica até a indústria alimentícia, com alimentos geneticamente modificados para serem resistentes a pragas e terem uma maior produtividade. Ou no caso desta pesquisa, para obter um fragmento não-infectante do vírus HPV para a produção da vacina.
As partículas VLPs não contém o DNA viral, portanto não causam infecção, mas possuem um alto potencial imunogênico, ou seja, podem ser usadas em vacinas. “Resultou que em 2006 e 2008 foram licenciadas pelos principais órgãos reguladores internacionais e pela Anvisa, no Brasil, as duas primeiras vacinas profiláticas para HPV disponíveis no mundo: a Gardasil Quadrivalente (Merck) e Cervarix Bivalente (GSK). Em 2014, a Gardasil Quadrivalente (Merck) foi licenciada para uso humano e o Instituto Butantan foi incumbido pelo Ministério da Saúde a produzi-la, devido à Transferência de Tecnologia da Merck pelo Brasil”, explicou Aurora.
As pesquisas não encerraram com o surgimento da vacina profilática, ainda há estudos que buscam encontrar um tratamento para pacientes que já desenvolveram tumores causados pelo HPV. “Passamos a trabalhar com a Vacina Profilática e Terapêutica, capaz de induzir resposta imune realizada por anticorpos ou por células de defesa (linfócitos T) em camundongos com células de linhagem tumoral, induzindo a regressão dos tumores e protegendo contra novas infecções”, apontou a pesquisadora.
A importância das patentes
O Governo Federal brasileiro define patente como “um título de propriedade temporária sobre uma invenção ou modelo de utilidade, outorgado pelo Estado aos inventores ou autores ou outras pessoas físicas ou jurídicas detentoras de direitos sobre a criação. Com este direito, o inventor ou o detentor da patente tem o direito de impedir terceiros, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar produto objeto de sua patente e/ ou processo ou produto obtido diretamente por processo por ele patenteado”.
O desenvolvimento de patentes nacionais demonstra a maturidade científica do país e garante a manutenção das pesquisas. Ana ainda ressalta que “além da proteção, as patentes são, para uma instituição ou empresa, ativos importantes, as quais demonstram as competências tecnológicas e a capacidade de inovação da entidade, sendo uma vitrine de notoriedade científica”. Aurora complementa afirmando que “[as patentes] poderão reverter em benefícios financeiros à instituição, que poderão ser direcionados ao avanço de novas pesquisas com as quais todos lucram, principalmente a saúde pública.”
Mesmo com os cortes de verba, bolsas de pesquisas desatualizadas e a insegurança que ronda ser cientista no Brasil, os institutos de pesquisa resistem. Muitas vezes, o trabalho realizado é invisível para a sociedade, mas afeta diretamente nossas vidas. “O cientista brasileiro tem competência, mas precisa ser muito criativo para conseguir desenvolver sua pesquisa com poucos recursos. O Brasil pode avançar e muito em diversas áreas, mas a baixa disponibilidade de recursos tanto do setor público como do privado restringe esse avanço, e não é atrativo para ingresso de novos profissionais nesta área”, comenta Ana.