O currículo escolar dos estudantes brasileiros é rico no estudo de diferentes períodos e acontecimentos históricos. A independência dos Estados Unidos, a Idade Moderna da Inglaterra e o peronismo na Argentina, por exemplo, são objetos de estudo dos alunos em diversas fases de aprendizagem. Porém, esses eventos não ficam presos apenas às páginas dos livros didáticos: é muito comum que obras de ficção utilizem acontecimentos históricos em suas narrativas. Nesse sentido, os musicais apresentam um amplo campo de modelos de peças que, inspirados na realidade passada, criaram ficção.
O mais recente exemplo desse setor de ficção histórica é o musical Evita Open Air, que estreou no Brasil no dia 7 de julho no parque Villa-Lobos. A peça é um reconto do musical da Broadway Evita sobre Eva Perón, de Andrew Lloyd Weber. Mas o que torna os musicais da Broadway sobre ficções históricas inovadores? A resposta está no fato deles utilizarem acontecimentos históricos para dar voz a personagens históricos pertencentes a minorias muitas vezes ignoradas.
O que há de novo na ficção histórica?
Num sentido amplo da expressão, ficção histórica é qualquer obra de ficção que aborde eventos ou personagens históricos e mostre um retrato fidedigno de um período através do olhar de pessoas que o vivenciaram.
Um dos grandes nomes da ficção histórica é o dramaturgo, poeta e ator inglês William Shakespeare, que viveu durante a Inglaterra Moderna e utilizava acontecimentos e figuras históricas reais em suas peças de teatro. Entre suas obras, figuras históricas, como os reis ingleses e o ditador romano Júlio César, eram temas recorrentes.
Praticamente quatro séculos depois da existência de Shakespeare, a grande novidade que os musicais da Broadway trouxeram para a ficção histórica é o fato deles recontarem eventos e personagens já conhecidos dos livros didáticos, mas com o olhar voltado para a diversidade. Alguns deles fizeram isso ao contar a história de uma personagem histórica pertencente a uma minoria; outros, pela participação de um elenco composto por minorias.
O brilho da ficção para personagens esquecidos pela história
Um dos maiores exemplos de ficção histórica da atualidade é o musical The Six, que aborda a história das seis esposas do Rei Henrique VIII da Inglaterra como um grupo musical de Pop. A peça, em junho de 2022, ganhou um Tony Award, o chamado “Oscar do teatro”. Outro exemplo é o musical da Broadway Evita, que narra a história de Eva Perón, esposa do presidente da Argentina Juan Perón entre os anos de 1946 a 1952. Mas o que esses dois musicais da Broadway de ficção histórica possuem em comum?
Ambas as obras dão voz a personagens históricos reais de seus respectivos países que geralmente são pouco conhecidas do grande público. Com exemplos como esse, os musicais da Broadway tiveram um papel essencial em resgatar personagens históricos esquecidos para que novas gerações conhecessem suas histórias e importâncias.
Como aponta a influenciadora digital Veve, dona do perfil do Instagram e do Twitter focado em filmes, séries e cultura Pop no geral, a importância dessa prática nos musicais é o fato de ocorrer uma reparação histórica. Ela exemplifica com as protagonistas femininas: já que pouquíssimas mulheres tiveram suas histórias amplamente divulgadas, e, em alguns casos em que isso ocorreu, foi por um olhar masculino, os musicais cumprem a função de popularizar suas figuras.
“O papel [desses musicais] é justamente a reparação histórica e inspiração para novas gerações, que elas têm o seu lugar no mundo, e não será a cor de pele, etnia, religião, gênero ou identificação de gênero ou sexual que determinará isso”, disse Veve.
Outro ponto de destaque sobre o musical The Six é a presença de um elenco muito etnicamente diversificado, já que nele há atrizes negras e asiáticas interpretando personagens históricas que eram na realidade brancas europeias. Algo muito similar ao que ocorre no musical Hamilton, que narra a história da independência norte-americana com atores negros e latinos interpretando pessoas brancas, como os presidentes Abraham Lincoln e Thomas Jefferson. Dessa forma, os musicais da Broadway conseguem trazer diversidade para as suas histórias e elencos de forma natural ao abordar personagens históricos.
No entanto, a diversidade em seus elencos e histórias não é algo novo para a Broadway; pelo contrário, a ideia de diversidade existe nos musicais desde os anos 1970. Um grande exemplo disse é a peça musical Ma Rainey’s Black Bottom, de 1982, que narra a história de uma cantora negra com um elenco negro e idealizada por um dramuturgo negro. Ou ainda o ator negro Norm Lewis que interpretou papéis de homens brancos europeus, como o fanstasma em Fanstasma da Ópera no ano de 2014 ou o barbeiro em Sweeney Todd no ano de 2017, o que evidenciou como é mais importante o talento de um ator do que sua semelhança física com o personagem original.
Essa diversidade existente há décadas na Broadway é explicada pela jornalista Miriam Spritzer, administradora de um canal do YouTube sobre entrevistas com personalidades da cultura Pop. Segundo a fã de teatro, como os musicais ficam em cartaz por um longo período de tempo e mudam o seu elenco muitas vezes, eles têm espaço para uma maior diversidade nos elencos.
Dessa forma, o público começa, segundo Spritzer, a “pouco se importar com quem está interpretando o personagem”, se é um ator negro, latino, asiático, branco;, uma vez que ele “quer ver o musical e o personagem”. Além disso, essa prática “permite uma maior oportunidade para pessoas de outras etnias e raças”, o que torna o talento o fator crucial para a escalação de um ator e possibilita que novas pessoas consigam mostrar suas habilidades nos palcos.
E a diversidade no cinema e na TV?
Um motivo que explica a diversidade ser tão aceita pela Broadway e mais implementada do que em outros ramos da indústria cultural é a sua origem mais antiga que outros meios de cultura Pop — um dos seus primeiros musicais é o The Black Crook, de 1866. Ou, indo um pouco mais além, a Broadway recebeu inspiração do teatro clássico grego durante a Antiguidade, da dramaturgia inglesa com Shakespeare durante o Renascimento e até do ballet clássico durante o Renascimento Italiano. Então, a Broadway e o teatro musical possuíram décadas de transformações e revitalizações culturais, que possibilitaram chegar em um ponto em que a etnia e a raça de um ator não são o fator mais crucial de um musical.
A caráter de comparação, o cinema, por exemplo, tem a sua origem datada muito posteriormente às origens da Broadway, na década de 1910, quando os primeiros estúdios de cinema começaram a se instaurar na cidade de Hollywood. Já a televisão norte-americana possui suas origens próximas da década de 1950, quando as emissoras de rádio começaram a migrar para a televisão, como foi o caso da CBS. Então, sua origem tardia desses ramos, entre outros fatores, como os grupos que comandam esses meios, não permitiu que o cinema e a televisão discutissem a diversidade como ocorreu na Broadway, já que elas ainda não passaram por grandes transformações culturais.
Como afirma Miriam Spritzer, o cinema foi fundado com a ideia de “ser um retrato fiel da realidade e o mais próximo possível dela”, o que fez com que não houvesse espaço para um ator negro interpretar um personagem histórico branco, já que isso “fugiria muito da realidade”. Já a Broadway sempre buscou inovar em suas produções teatrais e “fugir da realidade”.
Além disso, por uma questão mercadológica, o cinema e a Televisão buscaram segmentar as suas produções em grupos, com produções feitas por atores de um nicho específico para um determinado público e que muitas vezes não conversa com os outros, como a TV para negros ou a TV para latinx. Dessa forma, as telinhas não englobam todas as diversidades em um só programa e criam a falsa ideia de que um ator negro não pode interpretar personagens brancos e só personagens negros, uma mentalidade que não ocorre na Broadway.
Diversidade para quem?
Apesar de uma grande diversidade nos musicais da Broadway e de uma pequena diversidade em Hollywood, a representatividade no mercado audiovisual brasileiro é praticamente inexistente. Um motivo disso é o fato de apenas 2,1% dos trabalhos audiovisuais no Brasil terem sido produzidos por homens negros, conforme dados de 2016 da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o que evidencia a grande quantidade de pessoas que não contam suas próprias histórias. Em alguns casos, quando histórias de pessoas pretas são retratadas nos palcos brasileiros, os protagonistas são interpretados por atores brancos, como no musical Tim Maia: Vale tudo.
De acordo com o ator brasileiro e produtor de audiovisual Fernando Marianno, cujo trabalho mais recente é a interpretação do personagem Che na adaptação brasileira do musical Evita:open Air, o grande problema para as populações minoritárias conseguirem ingressar no teatro é o forte elitismo presente dentro do ramo. Segundo Marianno, a falta de investimento na educação e preparação artística gratuitas de qualidade faz com que as pessoas fiquem reféns de aulas caras para se especializarem. No entanto, o produtor enfatiza que o teatro é um importante meio de comunicação e manifestação, e pode transmitir e representar a história de vida daquele que estiver assistindo — daí a importância da diversidade.