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Jornalismo de guerra: a realidade da imprensa debaixo do fogo cruzado

Em evento na ECA-USP, os jornalistas Klester Cavalcanti, Yan Boechat e Vanessa Martina partilham a experiência de exercer a profissão em meio à violência e conflitos armados
Por Fernanda Franco (fernanda.francoxavier@usp.br) e Júlia Sardinha (jusardinha.eca@usp.br)

Muitas vezes representados no cinema como heróis, a realidade dos jornalistas de guerra é bem diferente da ficção. Em uma palestra para estudantes do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da ECA-USP, os profissionais Klester Cavalcanti, Yan Boechat e Vanessa Martina compartilharam suas experiências de cobertura em meio a conflitos armados. O evento “Jornalismo de Guerra” ocorreu na última sexta-feira, 14 de junho, no Auditório Freitas Nobre do departamento.

Os convidados também contaram suas trajetórias e motivações, além de discutir os desafios éticos da profissão e  tirar dúvidas dos estudantes presentes. Promovido pela Jornalismo Júnior, com o apoio da Le Monde Diplomatique Brasil e USPapel, o encontro foi mediado pelo estudante e repórter de Eventos, Jean Silva, e transmitido ao vivo pelo canal do CJE no YouTube.

Sobre os convidados

Vanessa Martina Silva é formada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e mestre pelo Programa de Integração da América Latina (Prolam) da USP. Trabalha com jornalismo internacional desde 2011 e possui experiência em coberturas políticas na América Latina – especialmente Argentina, Paraguai, Venezuela e Colômbia. Também acompanhou de perto a anexação da região ucraniana de Donbass à Rússia, em 2022, sua primeira experiência direta com uma guerra. Atualmente, é diretora de redação da Revista Diálogos do Sul Global, analista política do canal Opera Mundi e integrante da coordenação do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

A jornalista começou a se interessar pela área na faculdade com o desenvolvimento de projetos voltados à explicação do cenário latino americano para os brasileiros. Por meio  de pesquisas e contatos com pessoas envolvidas no assunto, ela teve a oportunidade de trabalhar como editora no Portal Vermelho e realizar sua primeira cobertura internacional no Paraguai, em 2012, quando tinha 26 anos. “Eu basicamente era uma jornalista de texto, que era o que eu esperava ser mesmo. Então ia lá, apurava durante o dia, voltava para a casa onde estava hospedada e mandava as informações para a redação”, relembra. 

Vanessa conta como foi sua primeira cobertura internacional sobre o golpe contra o ex-presidente Fernando Lugo, no Paraguai. [Imagem: Vito Santos/Acervo Pessoal

Yan Boechat é jornalista internacional e fotógrafo há mais de 20 anos. Na última década tem se especializado em coberturas de conflitos na Síria, Iraque, Gaza, Afeganistão, Ucrânia, Egito e outros países no Oriente Médio e África. Já trabalhou em grandes veículos de comunicação — como Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, O Globo, Veja, Istoé, BBC, Deutsche Welle e TV Bandeirantes — e atualmente é repórter freelancer. 

Formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ele conta que desde sua adolescência já pensava em cobrir guerras. “Sempre gostei muito de história e de viajar, já era uma coisa que eu queria fazer”, explica. Sua primeira experiência foi no Afeganistão, em 2003, logo depois da invasão americana do Iraque, quando viajou por conta própria para a zona de conflito. 

Yan Boechat narrou as suas primeiras experiências como repórter de guerra: “A gente precisa de tempo para aprender”. [Imagem: Vito Santos/Acervo Pessoal

Klester Cavalcanti também é jornalista de formação, pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), e atua na profissão há mais de 28 anos, em veículos como IstoÉ, Veja e Estadão. É autor dos livros Direto da Selva (Geração, 2002), Viúvas da Terra (Planeta, 2004) e Dias de Inferno na Síria (Benvirá, 2012), que ganharam o Prêmio Jabuti de Literatura. Outra de suas obras, O Nome da Morte (Planeta, 2006),  foi adaptada para o cinema em 2018. 

Klester conta que “sempre gostou de fazer coisas diferentes” e por isso passou por diversas áreas e cargos ao longo da carreira. Ele se considera uma pessoa inquieta e disse que seu sonho, desde a faculdade, sempre foi o de cobrir uma guerra no Oriente Médio. Em 2012, quando trabalhava como repórter na IstoÉ, teve a oportunidade de cobrir o conflito na Síria, experiência relatada em seu livro publicado meses depois. 

Klester contou como foi a cobertura na Síria, sua primeira e única experiência direta com a guerra até o momento. [Imagem: Vito Santos/Acervo Pessoal]

A vida por um triz?

Ameaças, perseguições, prisões, burocracia e falta de investimento. Esta é a verdadeira realidade do jornalismo de guerra, segundo os convidados do evento. “Não é uma aventura”, disse Klester, sobre uma ideia romantizada que se tem sobre a profissão. Yan também comentou o fato de frequentemente serem questionados sobre terem ou não medo da morte. 

“Eu procuro explicar para as pessoas que isso não é um trabalho suicida assim como nos filmes. A realidade tem muito mais burocracia, espera, logística. Há protocolos e jeito de fazer a cobertura”

Yan Boechat

Esses aspectos, no seu ponto de vista, são os maiores desafios em comparação aos momentos de adrenalina, relativamente raros dentro de um longo processo de cobertura — como no caso de conflitos que duram anos. E, mesmo nos momentos de perigo, ele considera que cobrir a guerra não é vivê-la de verdade. “Experimentar a guerra como jornalista é experimentar alguns momentos duros, mas que quem vive a guerra não pode ir embora e entende o que é estar alí”, reflete.

Apesar de todos os desafios, Yan conta que ainda sente muito prazer em trabalhar na área e por isso continua fazendo coberturas de guerra.

“É um desejo de ver a história acontecer. Guerra é a história acontecendo o tempo inteiro, apesar da tragédia. E eu acabo me sentindo um pouco privilegiado de assistir a esses momentos históricos, ali na minha frente”

Yan Boechat

Klester acrescenta que, antes de ir para a Síria, também cobriu conflitos em zonas rurais do Brasil, onde sentiu sua vida em risco por causa de ameaças. Ainda assim, para ele, “nada se compara quando você está numa zona de guerra de verdade em que existem aviões jogando bombas e soldados na rua matando as pessoas”. Segundo o jornalista, nenhum treinamento proporciona preparação suficiente para uma cobertura dessas, nem mesmo o oferecido pelo Exército Brasileiro voltado para profissionais da comunicação em situações de conflito armado.

Graças ao visto de imprensa, que tinha duração prevista de uma semana, Klester conseguiu entrar no país para cobrir a guerra. No entanto, ele foi preso, ameaçado de morte e torturado.

“Mesmo com toda a angústia e sofrimento que passei, eu tinha a plena consciência de que era como se tivesse outra pessoa dentro de mim, um jornalista. [Eu pensava:] estou passando por algo muito forte e interessante, se eu sair vivo, vou ter história para contar”

Klester Cavalcanti

Para Klester, além da morte, não existe nada mais forte para limitar esse espírito jornalista do que a prisão. “O máximo que alguém pode fazer para impedir seu trabalho é prender você. Eu fiquei na penitenciária, em uma cela onde eu dormia, comia no chão, tinha armas apontadas na minha cabeça várias vezes”. Foi graças ao caderno, uma caneta e o inglês que  Klester conseguiu fazer os relatos próprios e dos companheiros de cela que futuramente se tornariam o livro “Dias de Inferno na Síria”. “Eles [a polícia Síria] não sabem o valor que tem um caderninho com a caneta”, conta.

O jornalista afirma que, apesar da emoção, investigou e checou todas as informações depois que foi libertado. Ele esclarece que, em situações de conflito, os entrevistados podem valorizar, aumentar ou criar acontecimentos nos seus relatos, ainda que sem intenção. “O nosso trabalho não é defender lados, é mostrar os fatos”, diz.

Importância do jornalismo de guerra e da reportagem in loco

A Guerra Civil na Síria, os embates entre Palestina e Israel e as tensões existentes na América Latina são conflitos duradouros. Em situações como essas, Yan afirma que o jornalismo de guerra mostra a sua função e a necessidade de manter a cobertura desses eventos de forma prolongada. 

O jornalista  destaca a fotografia como um dos principais meios de se fazer cobertura in loco — “no lugar” ou “no próprio local” — de um conflito. Em meio a uma sociedade cada vez mais inserida no contexto da inteligência artificial, Yan afirma que ela materializa a denúncia sobre o conflito armado e diferencia o que é ou não tido como uma informação sensacionalista. “Com o avanço da IA, eu acredito que o fotojornalismo ganhará mais força. Será mais importante saber quem foi o fotojornalista”, comenta. 

“Nós, jornalistas, somos incapazes de mudar o curso da história. É importante manter a cobertura como um registro, porque a guerra tem seus picos, mas a sua recorrência é importante para mostrar como as coisas estão.”

Yan Boechat

Diferentemente de Yan e Klester, Vanessa não vivenciou muitas reportagens in loco devido às dificuldades da atuação profissional nas mídias independentes: “Geralmente, é um cenário de precarização total”, relata. Dentre os principais problemas, a jornalista destaca a inviabilidade — financeira e territorial — do deslocamento até as áreas de cobertura.  

Mas o jornalismo de guerra praticado por ela possui sua importância nas denúncias socioeconômicas. A América Latina, sua área de especialidade, é uma localidade permeada por desigualdades, motivo principal dos conflitos, segundo a repórter. Vanessa também declara que “a desigualdade brutal de renda faz com que a América Latina sempre esteja em tensão” e, mesmo com a proximidade territorial, as coberturas jornalísticas à distância são uma ferramenta que possibilita entender os acontecimentos.

De acordo com Klester, a importância do jornalismo de guerra pode ser encontrada na vontade de conhecer pessoas e suas histórias. “Sentir a dor que você presenciou e ter a frieza de ver os fatos e os relatar de verdade”, diz o jornalista, são pontos fundamentais para produzir matérias com o contato direto entre repórter e entrevistado. Para ele, essa experiência causa um enriquecimento profissional e pessoal: “Você volta com referências e vivências que poucas pessoas no mundo vão ter”. 

Ética profissional na guerra 

As coberturas de guerras exigem da imprensa um maior zelo na apuração e na transmissão dos fatos noticiosos em meio aos acontecimentos no fogo cruzado. “São muitas coisas que você deve observar e reportar ao mesmo tempo”, afirma Vanessa. 

Nessa dinâmica, Yan ressalta que o jornalista precisa ser o primeiro a informar e, para isso, o contato com a população envolvida no conflito é fundamental. Para ele, a presença de um profissional na guerra demonstra a qualidade de uma cobertura, composta por diversas visões de mundo compartilhadas entre profissionais, civis e combatentes.

Porém, o contato direto entre repórter e população tem diminuído com o avanço das agências de notícias. Segundo Vanessa Martina, as percepções sobre os conflitos armados são moldadas pelos eixos comunicacionais hegemônicos, ou seja, pelo olhar dos países mais influentes. “Nós somos condicionados a ver o mundo a partir da visão das maiores agências.”

Klester complementa ao dizer que a ética jornalística nas coberturas de guerra é abalada quando um dos participantes do conflito financia a imprensa para noticiar. “Acho um absurdo um governo bancar a cobertura de guerra feita pelo jornalismo. Você cobrir uma guerra com o dinheiro de um governo é uma assessoria de imprensa, não tem outro nome para isso”, ressalta.

Quando estava na Síria para reportar o embate armado na região, Klester afirma ter tido o visto de imprensa autorizado a partir de interesses políticos do próprio governo sírio. Uma das exigências feitas era de que a imprensa se apresentasse imediatamente após o desembarque ao Ministério da Comunicação do país, ação não tomada por Klester. Segundo o jornalista, ele não queria se limitar apenas ao que o governo da Síria queria que ele visse sobre a guerra — ou melhor, não ver o massacre dos civis orquestrado pelas lideranças políticas. Assim, acabou por se tornar o único profissional da imprensa a ser preso no país, mesmo com o visto. 

“A única dor que eu sentia era a minha, porque eu sabia que a minha família estava bem. Eles [companheiros de cela] não sabiam como estavam as suas famílias, nem seus amigos.”

Klester Cavalcanti

Yan, ao pontuar a importância da honestidade no jornalismo de guerra, concorda com a postura transparente assumida por Klester. Vanessa, apesar de não cobrir guerras na linha de frente, também registra a qualidade ganha por uma notícia quando se há o contato entre o jornalista e as pessoas, principalmente em conflitos negligenciados pelo mundo.

Especialista em conflitos na América Latina, Vanessa reconhece que uma postura ética parte também de dar espaço aos locais em constante tensão sobre as suas diferentes narrativas. Para ela, “existe um incômodo de falarmos sobre certos países da América Latina apenas quando os assuntos são tragédias”.

Dicas para se preparar para o impreparável

Aos estudantes presentes, os três jornalistas deram dicas para aqueles que apresentaram interesses e dúvidas na área. Logo no início do evento, os convidados pontuaram que seguir no ramo de jornalismo de guerra não é uma escolha simples, tampouco fácil. Além de ser uma minoria que segue na área, há habilidades que o repórter precisa desenvolver. 

“Cobrir guerra tem um ponto muito sério, que é ter desprendimento da sua vida. Ninguém quer morrer, mas quando se está numa situação em que sua vida pode acabar ali, você tem que ter consciência de que sabia daquele risco.”

Klester Cavalcanti

Klester também acrescenta o preparo mental para ver cenas de desastre, pessoas mortas e ouvir explosões e tiros o tempo todo. “A situação  da guerra é muito dolorosa, muito impactante e exige preparo mental, espiritual e pessoal.” Para ele, esses elementos fazem mais a diferença em zonas de conflito do que o preparo técnico oferecido pelas faculdades. 

Para Yan, a preparação para este tipo de cobertura é complexa e custosa. Mas mesmo com o amparo econômico de uma agência ou de um veículo, ele acredita que ninguém sabe se está, de fato, pronto e capacitado para cobrir situações de guerra. “Meu conselho é: quer ir? Vai. Acho que tem que ir para experimentar e ver se está afim”, diz. 

Para Vanessa, não há segredo, é “estudar, estudar e estudar”. Ela pontua que o jornalista nunca para de aprender e, para cobrir conflitos, é ainda mais necessário se aprofundar, entender os personagens e interesses das partes envolvidas. “O jornalista é apaixonado por histórias. [Então é preciso] ter essa curiosidade de querer estar no lugar, ouvir diretamente e reportar aquilo que está vendo”.  Segundo ela, o próximo passo é se questionar “é realmente isso que eu quero?” e “eu arriscaria a minha vida por isso?”. 

Além de estudar muito e desenvolver habilidades como repórter, Vanessa Martina adiciona que a fluência da língua estrangeira do local onde pretende se especializar é importante. “Ir se aproximando dessas realidades e estudando o contexto, é algo que ajuda bastante”.

Yan Boechat e Klester Cavalcanti tiraram fotos com os alunos do CJE e repórteres da Jornalismo Júnior após o evento. [Imagem: Vito Santos/Acervo Pessoal]

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