Morfina (морфий, 2008) não está entre os filmes mais famosos de Aleksei Balabanov. O diretor, que costuma retratar em seus trabalhos a realidade da Rússia pós-soviética, retorna, em Morfina, ao contexto das revoluções de 1917 por meio da trajetória de Mikhail Polyakov (Leonid Bichevin). É quase inverno quando o Dr. Polyakov, médico recém-formado, é enviado para atender em um vilarejo a centenas de quilômetros de Moscou. Diante de uma equipe limitada – um paramédico e duas enfermeiras – o doutor começa a colocar suas habilidades em prática até que, em contato com seu primeiro paciente, desenvolve uma alergia. A injeção de morfina utilizada para curar a alergia acaba por torná-lo viciado na substância.
O filme é baseado em Notas de um jovem médico, uma coletânea de histórias pessoais de Mikhail Bulgakov escritas entre 1917 e 1918. Bulgákov, assim como Polyakov, viciou-se em morfina durante os anos em que atuou como médico.
O primeiro elemento a chamar a atenção do telespectador é a fotografia. Polyakov chega de trem e é conduzido de trenó em meio à neve que, segundo seu condutor, caiu antes do esperado naquele ano. As paisagens de montanhas e florestas denunciam a lonjura que separa o hospital dos centros mais povoados e criam a sensação de um ambiente inóspito, abandonado. A ideia de uma Rússia agrária, miserável, fica mais escancarada a cada novo paciente do médico – a maioria deles, trabalhadores rurais desesperados. Nesse sentido, a fotografia tem efeito dúbio: cenas trágicas ganham traços de beleza estética.
Morfina é dividido em capítulos, os quais, no estilo das vinhetas de filmes mudos do início do século XX, acompanham o caminho de Polyakov desde a primeira injeção até a dependência. Assim como as cenas em que o doutor cuida dos enfermos, a piora gradual de Polyakov também é ilustrada por uma primorosa fotografia e por belos cenários. Balabanov faz um ótimo trabalho de reconstituição histórica: os móveis, as roupas e, em especial, os utensílios médicos possibilitam a imersão total na década de 1910. Mesmo um telespectador alheio à orientação temporal da história é constantemente lembrado da época retratada, seja por um porta-retrato que mostra pessoas vestidas à caráter, ou por uma sala de cinema onde é projetado um filme mudo em preto e branco.
Outro elemento que delimita as noções de espaço e tempo do longa é a trilha sonora. Foram escolhidas três canções interpretadas por Alexander Vertinsky, um dos maiores cantores e artistas de cabaré russo – Tango Magnolia, Snow Lullaby e Cocainetka. Além disso, a música possui relação direta com o protagonista, que dá corda na vitrola em muitas das vezes em que prepara e aplica mais uma injeção de morfina em si mesmo. Durante as quase duas horas de duração, as três canções soam repetidamente; em certo momento, o disco risca, e os versos ricocheteados aumentam a tensão da espera de Poliakov pela próxima dose.
Morfina não é um filme sobre as revoluções de 1917, mas, sim, uma trama que se insere nesse contexto. Por isso, as referências às Revoluções Menchevique e Bolchevique são sutis porém sempre presentes. Balabanov consegue perscrutar o cotidiano do homem russo e extrair os discursos de diálogos banais. Vale muito mais ao diretor, no entanto, enfatizar a ruína moral de Polyakov, e não a do Estado russo.
Com uma fotografia impecável, um cenário fidedigno às condições do século e referências ao humor e aos modos russos, Morfina faz um retrato de uma época de decadências e mudanças. Polyakov, como personagem aglutinador dessas angústias, definha no vício e possibilita uma análise do comportamento humano no seu estado mais doente.
O longa está disponível no MUBI e no canal da CTB Film Company no YouTube. Confira o trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=9dGCx-j8t4I&ab_channel=GeethappriyanChannel
*Imagem da capa: Divulgação/CTB Film Company