“O equipamento dos Sex Pistols foi montado e então, sem maiores cerimônias, eles apareceram: Johnny Rotten, Glen Matlock, Steve Jones e Paul Cook. Steve Jones usava um macacão, e o resto deles parecia que tinha saqueado um bazar beneficente de roupas velhas. Rotten usava um suéter amarelo que tinha sido rasgado na frente para ficar aberto e olhava para a plateia como se quisesse matar cada um de nós, um de cada vez, antes que a banda atacasse com algo que poderia ser Did You No Wrong, mas que não dava para dizer porque o som era muito alto, sujo e distorcido”. Esse era o cenário no Lesser Free Trade Hall, em Manchester, onde o Sex Pistols tocou em 4 de junho de 1976.
Nas palavras de Peter Hook — ex-baixista do Joy Division, banda que se tornaria, no início, uma das expoentes do movimento punk inglês —, a atitude dos Pistols, em especial do vocalista Johnny Rotten, fez com que as menos de cinquenta pessoas presentes deixassem o show em choque.
As seguintes apresentações do Sex Pistols em Manchester difundiram o furor do punk rock pela Inglaterra, influenciando uma multidão de jovens a formarem suas próprias bandas. Foi assim que Hook, junto a Bernard Sumner, Ian Curtis e Stephen Morris, formou o Warsaw, banda punk embrionária, que um ano depois se transformaria no Joy Division. A filosofia do do it yourself (faça você mesmo), ou DIY, não se demonstrava só nas músicas curtas e simples, que qualquer um poderia tocar, mas também no vestuário: roupas ordinárias eram customizadas com rasgos e spikes, num claro manifesto de autonomia.
Ao contrário dos hippies, os punks não se agrupavam em torno de uma utopia comunitária, mas sim numa expressão individual que os separava dos demais. Quando adotavam uma postura agressiva, resgatavam a rebeldia adolescente e vestiam adornos não convencionais — alfinetes, correntes de privada, coleiras de couro e peças do mundo fetichista — eles pretendiam contestar a cultura mainstream e ironizar seus arquétipos de consumo.
Nos shows que Peter frequentava com seus amigos, era comum que levassem as namoradas — quando Peter conheceu Ian Curtis, no segundo show do Sex Pistols em Manchester, ele estava acompanhado de sua esposa Debbie Curtis —, mas elas nunca eram as protagonistas dali. Os ambientes eram dominados pelos homens, que, além de serem a maioria no palco, tomavam a iniciativa nas brigas e no mosh da plateia; as bandas femininas que existiam não recebiam destaque na mídia, nem mesmo nas revistas de nicho. O movimento punk, que parecia ser o mais novo urro da juventude contestadora e rebelde, só tinha espaço para os jovens homens. Tamanha foi a exclusão das mulheres no movimento que somente quase vinte anos depois elas conseguiram formar o seu próprio, aproximando punk da ideologia feminista.
![Os moshs e as brigas eram comuns na cena punk da Inglaterra. [Imagem: Reprodução/ Joy Division - Unknown Pleasures (2012)]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2021/07/IMG_20210708_184735.jpg)
O Riot Grrrl
Foi na comunidade universitária do Evergreen State College, em Washington, que as primeiras manifestações do movimento punk feminista apareceram. Lá, Kathleen Hanna, uma estudante de fotografia, resgatou o lema DIY e formou com algumas colegas a banda Bikini Kill, em 1990. Numa época em que a desigualdade de gênero parecia abandonada no debate público, elas lançaram o seu primeiro álbum, o Revolution Girl Style Now! (algo como “revolução no estilo das garotas agora”, em tradução livre), uma reivindicação pela liberdade das mulheres.
Com exceção de Billy — que só entrou na banda por falta de uma guitarrista —, o palco era das mulheres e, aos poucos, a plateia também passou a ser. “Nós tocávamos nesses lugares loucos e eles amontoavam umas seiscentas pessoas lá dentro. Não havia seguranças”, relatava a baterista Tobi Vail. Ainda que, no começo, boa parte dos espectadores fossem homens, as mulheres eram encorajadas a estar presentes: com a ordem “girls to the front!”, Kathleen fazia com que elas viessem para a frente do palco, criando uma barreira de segurança para a banda e para elas mesmas.
As riots na mídia
Vinte anos depois, tendo o movimento punk se dissipado e perdido popularidade, o fator estilo não era mais primordial para a subcultura. Mesmo assim, as garotas do Riot Grrrl, particularmente o Bikini Kill, criaram na vestimenta e no corpo um meio de protestar. O escárnio dessa vez era também direcionado aos padrões e tipos do mercado da moda, porém com enfoque de gênero. Vestidos curtos, saias xadrez, tênis, oxfords e o rabo de cavalo traziam para a estética da banda a feminilidade infantilizada ao mesmo tempo em que frases como “slut” (vadia) e “rape” (estupro) eram escritas no peito, na barriga e nos braços.
Quando não invadiam a vida pessoal das integrantes, os jornalistas as comparavam entre si, incitando rivalidade. Em 1995, Courtney Love, na época vocalista da banda grunge Hole, atacou Kathleen com um soco enquanto ela assistia ao show do Sonic Youth no Lollapalooza. Elas nem sequer se conheciam em pessoa e os testemunhos dos presentes, inclusive dos membros do Sonic Youth, atestavam que havia sido um ataque aleatório, sem motivo. Ainda assim, veículos como a MTV insinuaram uma briga. A violência e a rivalidade entre os punks eram típicas da rebelião jovem. Nada mais corriqueiro que as bandas tocassem “debaixo de uma saraivada de cuspe e garrafas, com brigas constantes rolando diante do palco”, segundo relatos de Hook, mas, a partir do momento em que os personagens dali eram mulheres, todo e qualquer desentendimento — muitos deles fabricados ou manipulados pela mídia — tinha como pivô escândalos de inveja e ciúmes.
O movimento Riot Grrrl no Brasil
Se Bikini Kill foi a banda responsável por inaugurar o punk feminista nos EUA, o posto ocupado aqui no Brasil é da Dominatrix, banda formada em 1995 pelas irmãs Elisa e Isabella Gargiulo. “Meu primeiro contato com o Riot Grrrl foi com aquela notícia de que a Courtney Love bateu na Kathleen Hanna. Foi parar nos semanários britânicos e eu comprava na banca de jornal”, relata Elisa, então adolescente. Ela, que tocava guitarra desde os 11 anos de idade, interessou-se pela banda e encomendou um CD numa loja da Galeria do Rock. “Quando chegou o CD do Bikini Kill, no encarte tinha vários endereços de fanzines e tal e a gente começou a trocar fanzine com as meninas”.
![A banda TPM em show em São Paulo. [Imagem: Reprodução/ Faça Você Mesma (2019)]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2021/07/unnamed-7.jpg)
A herança riot
Em 2020, foi exibido no festival In-Edit Brasil (Festival Internacional do Documentário Musical) o documentário “Faça Você Mesma” (2019), da cineasta Letícia Marques. O filme, que começou a ser gravado em 2016, conta a história do Riot Grrrl no país e faz uma projeção para os dias atuais da vida das mulheres que participaram do movimento. “Em 2016 estava rolando uma conversa no Facebook, pois tinham sido lançados uns filmes sobre cena hardcore em São Paulo e neles só se falava das bandas de homens. A minha amiga Patrícia estava conversando sobre como deveria ter um filme sobre a cena riot do Brasil e aí me taguearam”.
Nos anos 2000, mesmo com o Riot Grrrl amortecido, festivais como o Ladyfest e o Girls Rock Camp disseminavam seus ideais. Para Letícia, a essência do Riot Grrrl é justamente essa, a perpetuação entre gerações de mulheres. Por isso, ela escolheu que algumas das personagens de seu documentário fossem representadas segundo seu crescimento pessoal, além da figura das adolescentes revolucionárias. É interessante perceber que, após décadas, elas ainda carregam consigo o feminismo, a auto-descoberta e a sororidade, sendo que algumas inclusive trabalham ou desenvolvem projetos em prol de outras mulheres atualmente.
O filme, que contou com várias voluntárias, nasceu dessa necessidade de autonomia, de “a gente fazer nós mesmas”, afirma Letícia. Hoje, como documentarista, ela diz priorizar narrativas que tratem de protagonismo feminino: “No início era meio intuitivo ter só mulheres, hoje é decisivo. Se eu tiver cinco entrevistados, eu vou editar e montar com mais mulheres, talvez não deixe nem um cara”. Para além do cinema, ela diz que estar no Riot Grrrl e participar dessas trocas entre mulheres trouxe pertencimento: “A música me levava a esse lugar em que eu me sentia pertencida, vista e reconhecida. E isso se relaciona muito com o feminismo, no sentido de que a gente gosta de estar entre mulheres pois é um lugar de igualdade, onde eu te vejo e você me vê e vice-versa. Eu acho que as mulheres vêm fazendo isso desde que a sociedade é patriarcal. Existe uma sociedade completamente excludente e opressora, mas elas existem dentro de um contexto delas, do mundo delas”.