Selena Gomez e Faustão, Shawn Mendes e Ana Maria Braga — dois casais inesperados que fazem sucesso na internet graças à criatividade e à imaginação de fãs que os colocam como protagonistas de histórias românticas. Populares pelos romances entre famosos, as fanfics vão além de histórias engraçadas e concepções simplórias: as produções se baseiam em expressões culturais diversas — animações, filmes, livros, séries, músicas, cantores, boybands, jogos e outros — e refletem o esforço de jovens que buscam se expressar através da escrita.
Mas o que são fanfics?
A palavra fanfiction — assim como suas abreviações fanfic e fic — remete ao que em português significa ficção de fãs, ou seja, histórias escritas por fãs e que comumente se usam de universos e personagens de livros, filmes e séries ou de celebridades.
Por serem escritas e lidas por fãs, as fanfics estão diretamente ligadas ao desenvolvimento do fandom — comunidade de fãs construída em torno de um elemento cultural, como a saga Harry Potter, cujo nome do fandom é Potterheads.
Há um indicativo de que a produção de fanfictions tenha surgido entre os séculos XVII e XVIII pela escrita e publicação impressa de versões diferentes de clássicos da época. Porém, o gênero é formalizado com o desenvolvimento do fandom e o surgimento das fanzines — revistas não oficiais com produções artísticas de fãs para fãs — em 1960. Ao longo do tempo, as fanfics se tornaram mais complexas e passaram a contar com uma infinidade de termos e tipos. Existem as long e short fics, por exemplo, com histórias longas e curtas respectivamente, as fluffy, com histórias leves e fofas, entre outras categorias.
Ainda, existem diversas plataformas que permitem a publicação e a organização de histórias de maneira gratuita. “No começo, as fanfics ficavam espalhadas por dezenas de páginas, de forma que precisávamos ir atrás dos lugares certos para encontrá-las. Com as plataformas, tudo é mais organizado”, explica Raquel Murakami, que pesquisou a fanfiction como escrita contemporânea durante seu mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP) e que é escritora de fanfics desde 2001.
Raquel também afirma que as plataformas são estruturas necessárias para uma boa interação entre escritores e leitores e que valoriza principalmente aquelas criadas e mantidas por fãs, como o Archive of Our Own (AO3). Além do AO3, plataformas como Wattpad, Spirit Fanfiction, Nyah! Fanfiction e Fanfics Brasil também são populares.
Motivação dos ficwriters e dificuldades enfrentadas
O universo cultural de narrativas já existente não é algo fechado, mas sim suscetível a constantes discussões, expansões e reformulações. A vontade de ter mais contato com um objeto cultural, a busca por desenvolver a escrita e a leitura, a necessidade de expressão e o descontentamento com o enredo de suas histórias preferidas são algumas das motivações dos escritores de ficção, chamados de ficwriters.
Jhuly Santana, estudante de medicina e escritora de fanfics desde 2011, afirma: “Além do fandom da [banda] One Direction, o que mais me inspirou [a criar fanfics] foi poder escrever. O Wattpad foi um lugar muito grande na minha vida”.
Amanda Grílli, escritora e criadora de conteúdo, assim como Jhuly, também se valeu do fandom da One Direction em sua escrita. “Comecei a ler a partir do fandom e foi lendo fanfics de outras pessoas que eu pensava: ‘como consigo sentir tanto com uma história que foi completamente inventada por uma pessoa?’. Eu queria fazer isso também, queria fazer as pessoas se sentirem como eu me sentia”, conta ela.
Escrever fanfics por vontade própria e publicá-las pode parecer fácil. No entanto, muitas são as dificuldades de um escritor, desde os bloqueios criativos às poucas oportunidades no mercado editorial.
“Há os bloqueios mentais, a procrastinação, entre outros impedimentos. Nas plataformas, é frequente termos pouco retorno dos leitores em forma de comentários, o que pode deixar o escritor que não lida bem com isso com uma baixa autoestima e com pouco ânimo para dar continuidade à história”, sumariza Raquel.
Da mesma forma que os ficwriters conseguem publicar suas obras sem nenhum custo, eles também não recebem nada por seu trabalho. Aqueles que visam seguir a carreira literária e publicar suas histórias de maneira física se deparam com outro obstáculo: o reconhecimento.
Jhuly é escritora de You’ve Forgotten, publicada em formato físico com o título Lembre-se (Whalien, 2021). Em sua conta no Wattpad a fanfic conta com quase cinco milhões de visualizações e, por indicação de seus leitores a uma editora, Jhuly conseguiu publicar sua obra. Antes disso, poucas eram as oportunidades. “Existem muitas obras que são ótimas e que tem menos de 100 mil visualizações, mas infelizmente não ganham uma chance por serem pequenas”, conta ela.
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De fanfics a obras físicas
Cinquenta Tons de Cinza, de Erika Leonard James, e After, de Anna Todd, são exemplos de fanfics que fazem sucesso como livros físicos e filmes. As obras se baseiam, respectivamente, na saga Crepúsculo (Intrínseca, 2008-2009), de Stephenie Meyer, e na banda One Direction — com foco em Harry Styles.
Cassandra Clare, autora da saga literária Os Instrumentos Mortais (Galera Record, 2010-2014), também iniciou sua carreira escrevendo fanfictions sobre o universo de Harry Potter. Outros exemplos incluem Babi Dewet, autora brasileira que teve sua fanfic Sábado à Noite — inspirada na banda McFly — transformada em livro físico, e a especulação de que Romeu e Julieta, de William Shakespeare, seja uma fanfic do poema A Trágica História de Romeu e Julieta, de Arthur Brooke.
Além de influência cultural, as fanfictions têm grande potencial econômico quando transformadas em livros físicos e filmes. O primeiro filme da saga Cinquenta Tons de Cinza arrecadou R$1,5 bilhão em bilheteria e, quando publicado no Brasil, o primeiro volume da série literária de Erika James chegou a vender treze livros por minuto. Além disso, a autora das obras já foi considerada uma das cem pessoas mais influentes do mundo segundo a revista Times.
O que pensam os autores das obras originais
Apesar de serem o início da carreira para alguns escritores, as fanfics carregam consigo pontos de vistas contrastantes sobre o uso de universos culturais preexistentes.
K. Rowling, autora da saga Harry Potter, se sente lisonjeada em ter o universo de seus livros como inspiração para as histórias dos fãs. Stephenie Meyer, autora de Crepúsculo, também vê a fanfiction como um bom meio de praticar a escrita, mas aponta a necessidade de escritores buscarem por autoria. “Obviamente, você ama personagens e ama construir histórias. Vá fazer algo que possa ser seu, que você possa colocar seu nome e dizer ‘eu escrevi esse livro'”, disse Meyer ao Remember Twilight?, podcast que discute a saga Crepúsculo.
Por outro lado, há autores que enxergam as fanfics como uma forma de plagiar suas histórias. É o caso de George R. R. Martin, autor de As Crônicas de Gelo e Fogo (Leya, 2010-2012), que não aprova que as fanfics se apropriem de seus personagens. “Eu não acho que seja um bom jeito de treinar para ser um escritor profissional quando você está pegando emprestado o mundo e os personagens de todo mundo. Você tem que inventar seus próprios personagens, você tem que construir seu próprio mundo”, declarou em entrevista sediada pela Brown University Library.
Neste sentido, Anne Rice, autora da série literária As Crônicas Vampirescas (Rocco, 1991-2007), não autoriza que fanfics sejam publicadas usando seus personagens. Ela já chegou a proibir legalmente que fanfics assim fossem postadas no Fanfiction.net.
Preconceito e estigma
Por serem escritas por fãs, as fanfics são vistas por vezes como histórias superficiais e estereotipadas. “Se eu falo que li aproximadamente 15 livros essa semana, você vai dizer ‘Nossa, que inteligente!’, mas se são 15 fanfics você não vai olhar da mesma maneira”, exemplifica Ana Duarte, 19, leitora de fanfics desde os 13.
Raquel explica: “As histórias são vistas como inferiores por muitas pessoas. Os motivos seriam o preconceito com a figura do fã, sobretudo com relação às garotas adolescentes; o fato de haver escritores ainda em período de letramento e com dificuldades de escrita; o fato de a fanfic ser vista como algo não original; a falsa ideia de que toda fanfic é sobre sexo, e a questão de ser uma escrita amadora”.
As concepções estigmatizadas chegam a afetar a auto-estima de ficwriters e a denominação fanfiqueira(o) é encarada de forma pejorativa por parte da comunidade. “Quando comecei a escrever sofri bastante preconceito, tanto por parte de amigos quanto por parte da minha própria família. Isso me afetou tanto que, hoje em dia, ninguém que me conhece pessoalmente (além da minha irmã) sabe que vou publicar um livro e que sou ‘fanfiqueira’”, relata Jhuly.
Representatividade e expressão de questões sociais
Longe dos limites midiáticos, os escritores ganham espaço expressivo e liberdade para abordar temáticas pouco representadas em meios culturais dominantes.
“Algo que gosto muito de colocar nas minhas fanfics são assuntos que a gente não falaria se houvesse alguém comandando, assuntos sociais, tabus”, conta Amanda.
Jhuly Santana afirma que a temática LGBTQIA+ é unânime em suas histórias e a vê como muito importante. “Pela representatividade, as fanfics ajudaram muito as pessoas a se encontrarem. Sou um grande exemplo disso, inclusive, de se encontrar dentro do espectro LGBT”, diz ela.
Assim como a literatura é vista como retrato da sociedade, as fanfics também espelham os contextos sociais. O conteúdo das histórias faz parte da visão de mundo dos escritores e pode ser um indicativo de dilemas vividos ou percebidos por eles.
É o caso da fanfic Precocemente Mãe, que aparece em primeiro lugar na lista geral de mais acessadas no site Fanfics Brasil e retrata a história de uma jovem que, ao engravidar, é abandonada por seu namorado — realidade ainda comum na sociedade brasileira. Um levantamento realizado pelo portal Trocando Fraldas, que compila informações, orientações e dados sobre gestação e maternidade, mostrou que uma em cada cinco mulheres é abandonada pelo parceiro de forma permanente ou temporária durante a gestação.
O lado problemático das fanfics
Sem a imposição de qualquer filtro, as fanfics também podem abordar certas temáticas de maneira problemática.
A romantização de relacionamentos abusivos ou de transtornos mentais é um exemplo disso. “Às vezes [escrever] pode ser um poder muito grande nas mãos de pessoas que não estão escrevendo para virar escritores, que não pesquisam sobre os assuntos e só querem se divertir. Isso pode levar, quando [as fanfics] têm uma projeção maior, a romantizar aspectos que não devem ser romantizados”, diz Amanda.
O quesito representatividade também é questionado em algumas fanfictions. Raquel destaca que a fanfic “é um meio de representatividade de grupos minoritários, embora seja importante lembrarmos que, dentro desse vasto universo, há escritores e fanfics que não possuem essa preocupação”. Muitas histórias que focam no relacionamento entre dois homens, por exemplo, são escritas por meninas e voltadas para o público feminino, o que exclui o grupo representado.
Jhuly relata que, em sua trajetória, percebe um caráter de fetichização dos relacionamentos entre homossexuais: “É algo que comecei a perceber pelos comentários de quando não havia cenas obscenas na fanfic. Fanfics que não tem ‘hot’ acabavam esquecidas, taxadas como obras ruins ou até infantis”, relata.
Fanfictions que se baseiam no relacionamento entre famosos também podem ser problemáticas. Torcidas por casais fictícios de celebridades, como os ships Larry (Louis Tomlinson e Harry Styles) e Jikook (Park Jimin e Jeon Jungkook), chegam a incomodar as celebridades envolvidas pela invasão de privacidade.
Apesar dos problemas, as fanfics — pequenas ou grandes — abrem espaço para tratar de assuntos pouco representados e para expressão de pessoas ou grupos sociais. Por serem uma importante e produtiva forma de escrita, que ultrapassa o universo dos fandoms, as fanfics têm ganhado mais destaque no meio literário, inclusive como objeto de pesquisa e como base para grandes sucessos da cultura pop.
*Créditos:
Imagem J.K.Rowling: Debra Hurford Brown/Wikimedia Commons
Imagem Stephenie Meyer: Gage Skidmore/Wikimedia Commons
Imagem George R. R. Martin: Henry Söderlund/Wikimedia Commons
A relutância que as pessoas têm em ler fanfics por puro preconceito é gigantesca! O prejulgamento faz com que muitos percam uma leitura de qualidade e divertida. You’ve Forgotten é um exemplo de fanfiction que traz muito mais que uma história fofa sobre integrantes de uma banda famosa; amor, pautas LGBTQI+ e dor psicológica são alguns dos pontos fortes da obra. Sério, todos deveriam ler uma fanfic uma vez na vida! Obrigada, Rosiane, por trazer essa questão para o âmbito jornalístico.