Por Gustavo Santos (gustalima1306@usp.br)
No dia 26 de outubro de 2025, os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e dos Estados Unidos, Donald Trump, se encontraram em uma reunião da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), na Malásia. Entre apertos de mãos e sorrisos, o encontro dos representantes das duas maiores potências da América acontece após meses de crise diplomática, com a imposição de tarifas a produtos brasileiros e ataques à soberania nacional.
Em busca do que chamou de “reciprocidade para reconstruir a economia e restaurar a segurança nacional e econômica”, Donald Trump anunciou tarifas de importação a 185 países, em abril de 2025. O “Liberation Day” [Dia da Libertação, em tradução livre], apelido do governo norte-americano para o anúncio das tarifas, iniciou com uma taxa inicial de 10% para os produtos brasileiros, além de taxas extras a outros países, como a China e a membros da União Europeia.
No dia 9 de julho, em carta escrita ao presidente Lula, Donald Trump anunciou uma nova tarifa de 40% ao Brasil, totalizando 50% com o decreto anterior. Na Truth Social, rede social de Trump, o presidente dos Estados Unidos afirmou que o governo brasileiro representa uma “ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional, à política externa e à economia dos EUA”. A mensagem também incluia críticas ao Supremo Tribunal Federal, ao ministro Alexandre de Moraes e ao julgamento de Bolsonaro — que agora cumpre pena por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito — após os ataques aos prédios dos três Poderes no dia 8 de janeiro.
Em pronunciamento à nação, no dia 17 de julho, Lula afirmou que o Brasil sempre esteve aberto ao diálogo com os Estados Unidos. O presidente também afirmou que empresas de plataformas digitais do exterior não podem desrespeitar as leis nacionais (em alusão ao bloqueio temporário do X no país) e que “tentar interferir na justiça brasileira é um grave atentado à soberania nacional”.
Em entrevista à J.Press, a professora de política internacional da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Cristina Soreanu Pecequilo explica os fatores que influenciam as relações entre Brasil e Estados Unidos.
J.Press – Na história da relação entre os dois países, quando Brasil e Estados Unidos estiveram alinhados politicamente?
Cristina Soreanu Pecequilo – A política externa brasileira tem uma relação muito próxima com os Estados Unidos, e essa relação passa por momentos de alinhamento político automático [quando o Brasil adota uma postura subordinada e sem contestações às agendas dos EUA] ou pragmático [quando a agenda brasileira é priorizada frente ao posicionamento do governo norte-americano]. Por exemplo, no período de 1902 a 1961, o Brasil alternou fases de alinhamento político automático com os Estados Unidos com fases de alinhamento pragmático, ou seja, uma relação baseada em barganha.
A partir de 1961 isso muda um pouco. O Brasil não vai ter uma política só de alinhamento, mas de maior autonomia diante dos Estados Unidos. Com o fim da Guerra Fria isso muda de novo, governantes como Fernando Collor escolheram ter uma relação mais “automática” aos Estados Unidos, enquanto outros, como o Fernando Henrique Cardoso, vão buscar um alinhamento pragmático.
O governo Lula, por exemplo, têm políticas mais autônomas. A questão do alinhamento a favor ou não é que nunca pode ser sem crítica. Precisamos sempre refletir se é do interesse nacional brasileiro estar mais próximo ou mais distante dos Estados Unidos.
J.Press – Qual a importância geopolítica dos Estados Unidos?
Cristina – Os Estados Unidos ascendem como hegemonia do sistema internacional, ou seja, como o país de maior poder econômico, político e estratégico há 80 anos com o fim da Segunda Guerra Mundial: é o que chamamos de Pax Americana [período histórico de consolidação dos EUA como hegemonia]. O pós–Segunda Guerra era um momento de reconstrução, e ali podemos observar uma consolidação não só geopolítica, mas também geoeconômica dos EUA.
Mas acontece que toda Pax tem seu momento de ascensão, de fortalecimento, e com o fim da Guerra Fria, um momento de questionamento: será os Estados Unidos, ainda, a única superpotência? Precisamos observar essa atual reorganização do sistema internacional. Os Estados Unidos ainda são o que chamamos de Primus Inter Pares [primeiro entre iguais, em tradução livre], ou seja, aquele país que é mais poderoso diante dos demais, mas será que outros como a China, por exemplo, já não estão chegando perto?
J.Press – E qual a importância geopolítica do Brasil?
Cristina – O Brasil tem importância geopolítica por ser uma potência regional aqui nas Américas, sendo um país muito respeitado por outras nações em um sistema multilateral. É fato que somos um país com peso econômico e político, mas precisamos analisar sempre de forma relativa, porque quando observamos a ordem internacional, o Brasil está em uma situação positiva, mas ainda de vulnerabilidade.
Se eu pudesse, por exemplo, desenhar aqui um mundo, nós teríamos os Estados Unidos e a China em um patamar mais avançado. A União Europeia, a exemplo da Alemanha, e de outros países, como a Rússia e a Índia, em um segundo patamar. E o Brasil correndo um pouco atrás, em outro patamar.
Somos uma nação emergente que, apesar de todo o poder político e econômico na América do Sul, não tem poderio bélico, por exemplo. Mas o fato é que embora os Estados Unidos sejam a potência hegemônica das Américas, o único contraponto dele está associado às questões envolvendo o Brasil. São os dois maiores países americanos e isso reflete na América de um jeito, e na projeção global de outro.
J.Press – Como funcionam as trocas comerciais entre os dois países?
Cristina – Hoje, os Estados Unidos não são mais o primeiro parceiro comercial individual do Brasil. Desde 2010, tivemos essa mudança histórica dentro da economia brasileira, e das próprias relações internacionais, que foi a perda dessa posição para a China, e com ela temos um superávit.
Agora, quando voltamos nossos olhos para a relação econômica entre Brasil e Estados Unidos, percebemos que o Brasil está em déficit comercial – o que, inclusive, alegamos como defesa contra a guerra comercial do Trump.
O Brasil cada vez mais importa bens de alto e médio valor agregado, ou seja, produtos com tecnologia, produtos industrializados e até mesmo petróleo refinado. E o que a gente exporta para os Estados Unidos? Bens de baixo valor agregado, principalmente commodities agrícolas como o café, suco de laranja, ou commodities agropecuárias, como carnes. É uma relação bastante assimétrica no sentido de importar aquilo que é caro e exportar aquilo que é barato. E isso gera esse desequilíbrio.
J.Press – A imposição de tarifas e outras medidas do governo Trump faz com que os Estados Unidos percam sua relevância geopolítica?
Cristina – Olha, cabe lembrar que o Trump foi eleito democraticamente. Não é um presidente que chegou ao poder por golpe, ele chegou pelo desejo da sociedade norte-americana. Costumo dizer que, embora haja várias deficiências, precisamos respeitar o desejo da população americana.
Os Estados Unidos, que não são a maior democracia liberal do mundo e sim a Índia, comandado pelo Trump, tem um comportamento de idas e vindas, o que eu chamo de imprevisibilidade previsível: sempre esperamos que ele faça alguma ação, tome alguma medida talvez polêmica, mas o objetivo dele, assim como o de todos os outros presidentes americanos é, justamente, preservar sua hegemonia.
A maneira que ele faz isso é de fato mais controversa em termos de visibilidade com o uso das redes sociais, mas ainda é um presidente que visa a manutenção da hegemonia. Então, não acho que isso diminui a importância geopolítica dos Estados Unidos – não de uma maneira imediata. No curto prazo ele tem conseguido importantes vitórias como o próprio tarifaço ou as concessões da China e de outras nações.
Agora, esse tipo de atitude unilateral de idas e vindas causa um impacto mais a médio e longo prazo, o que incentiva a desconfiança da hegemonia e provoca, em outros estados, a busca por novos parceiros. Talvez não seja algo para daqui a cinco anos, mas quem sabe daqui a dez? Eventualmente uma desdolarização das economias, a busca de alternativas como o próprio BRICS, que vem se consolidando. É o que eu chamo de “sombra do futuro”, o que virá depois e como essa desconstrução do poder americano pode minar seu poder geopolítico mais para frente.
J.Press – O Brasil é uma ameaça à influência dos Estados Unidos na América Latina?
Cristina – Na verdade, na visão dos Estados Unidos, todo país que é uma potência regional e com recursos de poder pode ser uma ameaça. Historicamente, desde a independência americana no século 18, os Estados Unidos têm essa prioridade de impedir o surgimento de potências regionais que venham a ameaçar seus interesses em qualquer região do mundo.
Nas Américas a ameaça é o Brasil, na Ásia a ameaça já é variada como a China, o Japão e a Índia. Podemos indicar também a própria Rússia e na Europa temos a Alemanha. É de fato uma questão, porque Brasil e Estados Unidos são vizinhos e não é interessante aos EUA que sejamos muito fortes, mas ao mesmo tempo não podemos ser muito fracos para não gerar instabilidade, é um equilíbrio.
Eu costumo dizer que os Estados Unidos têm um jogo de engajamento e contenção: você pode ser meu inimigo em dado momento e oferecer ameaça, mas em outro, já na sequência, pode se tornar um amigo para outro objetivo político. É sempre um jogo de contenção e engajar, ou como eu gosto de falar, engajar para conter.
J.Press – O que explica o tarifaço e o ataque à soberania brasileira?
Cristina – O ataque à soberania, representado pelo tarifaço, é real para todos os países. Quando houve a decretação do tarifaço, em 2 de abril, o interesse dos Estados Unidos, além de econômicos, era uma tentativa também de reenquadrar os seus aliados e obter mais vantagens nas negociações comerciais.
Agora, a partir do momento que você toma uma medida unilateral em um campo que, teoricamente, é regido por leis internacionais da Organização Mundial do Comércio (OMC), você está utilizando da força de sua hegemonia para que os Estados façam concessões. “O que você me dá em troca para que eu suspenda as tarifas?”. No fundo, é um pouco isso que o Trump tem feito.
E isso não é só uma violação da soberania brasileira, mas de todos os outros Estados. Um desrespeito ao sistema multilateral. Isso que o Trump fez de não negociar, mas efetivamente usar da força à margem das instituições, é algo bastante grave.
J.Press – Afinal, Brasil e Estados Unidos são amigos ou inimigos?
Cristina – Nem amigos, nem inimigos. Na política predominam interesses. Enquanto os interesses entre os países forem convergentes, vai predominar uma relação cordial, quando eles forem divergentes, teremos uma relação de conflito.
A ideia de amigo ou inimigo para os Estados Unidos varia muito ao longo do tempo dependendo de seus interesses. Agora, por exemplo, temos uma maior proximidade entre Trump e o presidente brasileiro. Em outras oportunidades, Lula também esteve muito próximo de outros governantes como o Bush.Jr. As pessoas têm interesses, e as alianças dos Estados Unidos são baseadas neles.
