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O poeta inflige dor

A galerinha que já cutucou, converteu e recriou as obras de Edgar Allan Poe é do calibre mais pesado do mundo artístico: desde Machado de Assis e Fernando Pessoa, que trabalharam como tradutores, até Charles Baudelaire, poeta francês considerado inaugurador da modernidade na literatura. Poe possui no currículo um vasto número de trabalhos, indo desde …

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A galerinha que já cutucou, converteu e recriou as obras de Edgar Allan Poe é do calibre mais pesado do mundo artístico: desde Machado de Assis e Fernando Pessoa, que trabalharam como tradutores, até Charles Baudelaire, poeta francês considerado inaugurador da modernidade na literatura. Poe possui no currículo um vasto número de trabalhos, indo desde a poesia até a literatura policial. Quem melhor do que esse autor com influência soturna para inspirar O Corvo, de James McTeigue, um suspense de serial killer?

John Cusack interpreta o escritor, que já está em queda livre rumo à morte. Um rápido flashback e vemos Poe à beira do abismo ainda, quando, em vias de noivar com sua amada Emily, um misterioso assassino toma as obras do poeta como inspiração para uma sequência de homicídios, propondo um desafio mental ao autor. Juntam-se a Poe o pai da garota, interpretado por Brendan Gleeson, e o inspetor de polícia encarregado do caso, vivido por Luke Evans.

O filme se utiliza de uma fórmula muito comum em thrillers de assassinos em série, a dos homicídios temáticos. É uma estrutura utilizada em Seven, de David Fincher, O Abominável Dr. Phibes, com Vincent Price (que ficou famoso adaptando obras de Poe) e O Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie, por exemplo. O esquema é mais ou menos assim: protagonistas reparam num tema que se repete nas mortes e a trama se desenrola numa caça ao assassino, cada parte tentando antecipar os passos um do outro. Funciona, mas por uns quarenta minutos só.

O Corvo é daqueles filmes que tem uma proposta muito superior ao roteiro. Foi uma sacada genial usar as histórias macabras de morte, doença e sofrimento de Poe, mas não sobrou criatividade para desestabilizar o espectador com surpresas ou bons diálogos. O desenvolvimento de personagens é bem fraquinho: o Allan Poe de Cusack durante o primeiro ato parece uma versão espalhafatosa e literária de Sheldon Cooper, de The Big Bang Theory. Quando não está ajudando com perguntas para situar as obras do escritor ao público leigo, o inspetor de Luke Evans passa o tempo gritando para demonstrar suas emoções. O pai do interesse amoroso de Edgar Allan Poe cumpre todo o trajeto esperado de um pai-poderoso-que-protege-a-filha-de-má-influência-mas-se-rende-ao-amor-verdadeiro.

Os cenários são bem construídos, entretanto. A ambientação do século XIX é convincente, apesar de eu apostar que eles reaproveitaram alguns dos cenários de Sherlock Holmes, de Guy Ritchie, ou de O Lobisomem, com Benicio Del Toro – afinal, duvido que Baltimore e Londres fossem tão parecidas nessa época. Inclusive, um dos atores de O Corvo, Sam Hazeldine, participou do filme do lobisomem, de 2010.

Há alguns enquadramentos vistos do alto que se destacam, como se víssemos tudo do ponto de vista dos pássaros, ou do leitor que sobrevoa o enredo, ou de Deus, ou da querida esposa morta de Poe, ou de quem mais você achar que se encaixa aqui. Não é melhor, porém, que o diálogo entre o assassino e o autor, quando de longe o vilão entrega a melhor interpretação do filme todo. Devem ter chamado o cara da proposta do filme. É um desenvolvimento tão envolvente, misterioso e macabro que enganou alguns críticos: saíram falando do filme como “uma pedrada, realmente, de tirar o fôlego”, esquecidos do Poe estridente e do roteiro capenga.

Igual ao pêndulo com lâmina de um dos crimes, o uso do poema O Corvo fica balançando entre intrigante e excessivo. A quantidade dos pássaros pretos que fazem aquele barulho estranho deve ter sido grande – acho que emprestaram dos cenários de Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, mas aí não posso dar certeza -, pois em várias tomadas cruciais aparecem corvos. Versos do poema acenam para nós em cenas esparsas. Porém, o mais interessante é pensar a quem o título se refere. É uma exposição que beira a overdose, mas é inteligível, pois é a obra mais famosa de Poe e um convite ao público que não leu muito da obra do escritor.

Um dos problemas da sinopse é definir o público-alvo. Melhor priorizar quem já tem um repertório de Allan Poe ou tentar introduzir as obras a uma nova geração? É para a galera intelectual que se delicia com o sofrimento do autor transformado em versos ou pros fãs do quebra-cabeças policial que o escritor inventou? Se for um thriller, deve-se fazer algo mais sanguinário como Drive, com Ryan Gosling, ou buscar um minimalismo de violência? Talvez essa seja a origem da insipiência do roteiro, a indecisão. Com um esforcinho de imaginação, dá para ver os produtores no coquetel para comemorar o lançamento, batendo a mão na testa enquanto pensam “e agora? para quem vender isso?”. Para quem tentou adaptar trabalhos de um dos precursores da modernidade, faltou ousadia.

E meus olhos, por duas horas cansados de assassinatos seriais, clamam: nunca mais.

Henrique Balbi

henriquebalbi92@gmail.com

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