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‘O Preço da Verdade’ e as problemáticas da indústria química

A empresa global DuPont, criadora do Teflon, causou alguns dos maiores crimes ambientais da história – e pouca coisa mudou
Capa de O preço da verdade e as problemáticas da indústria química
Por Gabriela Rocha Nangino (gabi.nangino@usp.br)

O Preço da Verdade (Dark Waters, 2019), dirigido por Todd Haynes, foi um sucesso na bilheteria americana em seu lançamento. A inspiração para a obra foi uma matéria publicada no The New York Times em 2016, intitulada The Lawyer Who Became DuPont’s Worst Nightmare. Apesar do enorme alcance do filme, a história não recebe, até os dias de hoje, a visibilidade condizente à sua importância.

Tudo começou com uma ligação incomum: Wilbur Tennant, fazendeiro em Parkersburg, no estado de West Virginia, entrou em contato com um advogado conhecido de sua família, Robert Bilott, para relatar que suas vacas estavam morrendo havia meses. Ele culpava uma fábrica da empresa DuPont que despejava resíduos em um rio próximo de sua casa.

O advogado fez uma visita à propriedade de Wilbur e viu que algo anormal estava, de fato, acontecendo. Ao dissecar os animais para tentar entender o motivo das mortes, o fazendeiro acabou encontrando órgãos degradados, lesões e má formações. Apesar disso, não conseguiu apoio de nenhum veterinário, servidor público ou jornalista, pois a mera ideia de se envolver em ações contra uma gigante como a DuPont afastava qualquer profissional do cenário.

Poster do filme Dark Waters
Pôster do filme ‘O Preço da Verdade’. [Imagem: Divulgação/Focus Features]

O filme retrata o processo que Bilott viveu até se transformar no advogado notório que lutou por décadas contra a empresa. Nessa matéria do Laboratório, você irá conhecer mais sobre a origem dos trabalhos da DuPont, que prejudicou desenfreadamente a saúde humana e ambiental nos Estados Unidos por séculos.

O início: Chambers Works

A Chambers Works foi uma fábrica instalada pela DuPont em 1892 na cidade de Carneys Point, no estado de Nova Jersey, com o objetivo de produzir pólvora sem fumaça. O local abrigou dezenas de incidentes letais ao longo do século 20. Apesar de devastadores, eles não foram surpreendentes: segundo o livro DuPont Dynasty: Behind the Nylon Curtain, os dirigentes da DuPont tinham preocupações com a explosão da fábrica antes mesmo de construí-la.

Durante a Primeira Guerra Mundial, a fábrica produziu corantes à base de anilina, substância já comprovada como tóxica. Em 1932, casos de câncer de bexiga começaram a surgir entre os trabalhadores, mas o funcionamento do local se manteve ativo até 1955.

Trabalhadores dentro de fábrica antiga da DuPont
Produção na Chambers Works durante a Primeira Guerra Mundial. [Imagem: Autor desconhecido/Wikimedia Commons]

O professor do Instituto de Química da USP, Leandro de Andrade, é pesquisador na área de Química Orgânica e concedeu entrevista à Jornalismo Júnior a respeito do assunto. “Se é preciso usar anilina para fazer um produto, cria-se todo um ambiente adequado para lidar com esse composto de alto risco.” Ele explica que o produto final do corante não é a anilina pura, mas pode ter traços remanescentes. A regulamentação da indústria não visa definir quais compostos tóxicos podem ser aplicados, mas sim que o objeto comercial tenha a dosagem mínima e que o ambiente de produção seja seguro.

Nos anos 1920, a Chambers Works também fabricou gasolina com chumbo, espalhando o elemento pelo solo de forma permanente e envenenando trabalhadores. Nessa época, a fábrica começou a ser conhecida como Casa das Borboletas, pois dizia-se que os empregados pareciam estar capturando borboletas no ar quando, na verdade, estavam alucinando pelos efeitos da inalação do chumbo.

Leandro explica que, atualmente, podem ocorrer inalações acidentais, mas diretrizes de Equipamento de Proteção Individual (EPI) em indústrias  garantem segurança em alto nível para lidar com grandes quantidades de produto. “Especialmente em grande escala e num ambiente de produção fechado, é natural as pessoas serem expostas [a toxinas]. É esperado que se tenha tubulações para transferir os líquidos até o reator, para não ficar abrindo frascos”.

Apenas em 2018, a linha de produção da Chambers Works foi descontinuada. De acordo com uma matéria publicada no The Intercept, testes constataram a presença de 75 produtos químicos em concentração superior aos padrões adequados nas águas próximas à fábrica. Jeffrey Andrilenas, consultor ambiental da cidade, calculou que a DuPont havia liberado 50 mil toneladas de resíduos perigosos até 2016. A reparação custaria mais de um bilhão de dólares, e, no ritmo atual dos projetos de descontaminação, seriam necessários mais 1.600 anos de trabalho.

Surgimento do Teflon

O químico Roy Plunkett descobriu o Teflon no dia 6 de abril de 1938, durante testes laboratoriais da DuPont em Nova Jersey. A substância consistia em um pó branco e escorregadio denominado politetrafluoretileno (PTFE), apelidado mais tarde de Teflon. Ele era, além de anti-aderente, muito resistente a substâncias corrosivas. Uma de suas primeiras aplicações foi no enriquecimento de urânio durante o Projeto Manhattan.

O Teflon em si não é de alto risco. Porém, em 1951, a DuPont começou a comprar ácido perfluorooctanóico, ou PFOA-C8, para facilitar a sua polimerização. “O material orgânico é sensível ao calor, então ele precisa ter resistência física, mas também resistência ao ambiente onde está sendo usado”, diz Leandro. “O PFOA é utilizado para melhorar o rendimento e, nesse caso, para também tornar o Teflon mais estável no seu uso final”.

A multinacional fornecedora, 3M Company, havia inventado o PFOA em 1947. Ele não era oficialmente classificado como perigoso, mas a DuPont foi informada de que a substância apresentava muitos riscos. Pesquisas secretas feitas com ratos pela 3M já tinham indicado seu potencial cancerígeno e mutagênico: as fêmeas expostas geraram filhotes com deformidades.

Mas como exigir controle em uma época com pouca regulamentação? “Aí entra a ética: se um composto não tem regulamentação e a indústria está produzindo do mesmo jeito, é um problema, porque ela sabe que vai colocar na sociedade algo que não é seguro”, diz Leandro. O resultado dos experimentos foi ocultado dos trabalhadores, mas a DuPont demitiu todas as mulheres devido ao risco de problemas na gravidez. Entretanto, essa estratégia fracassou: mesmo se afastando da linha de produção, de 7 filhos de funcionárias, 2 nasceram com alterações congênitas.

Em entrevista com Paula Oliveira, assessora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), discutiu-se a segurança trabalhista no contexto da fábrica. “Essa questão é complicada porque o trabalhador, muitas vezes, precisa de dinheiro, então ele se submete a situações precárias para poder se sustentar”.

Existem leis trabalhistas específicas para esse tipo de ofício, como normas de insalubridade e periculosidade, mas elas nem sempre são efetivadas. “É importante que a empresa não omita nada, porque, ainda que o funcionário não possa escolher a condição a qual ele vai se submeter, ele sempre tem que saber. […] Se ele está trabalhando com um produto químico extremamente tóxico, ele precisa ter noção disso”.

Para evitar a contaminação do ambiente, a empresa passou a armazenar seus resíduos em contêineres e enterrá-los. Mas essa tentativa não funcionou, pois a substância atingiu o solo e os lençóis freáticos, chegando ao rio que perpassava a fazenda de Wilbur.

Segundo Leandro, essa era a realidade precária da época. “Você produzia, colocava em tonel e armazenava em qualquer lugar. Hoje em dia, para descartar compostos químicos, é preciso realizar uma queima em um ambiente controlado […]. Em casos de substâncias de alta reatividade, o caminho é deixá-las menos reativas, transformando-as em outra coisa”.

Processo judicial

Em 1999, depois de visitar a fazenda de Tennant, Bilott moveu uma ação federal contra a DuPont para investigar a sua produção. Inicialmente, a empresa propôs que veterinários realizassem uma análise do local e foi concluído que a causa da morte dos animais era a má criação do gado. Mas o advogado não desistiu com tanta facilidade. A DuPont forneceu documentos de mais de um século de trabalho, e, após meses de investigação, Bilott realizou a descoberta que mudou tudo: o perigo do PFOA.

Em março de 2001, Bilott enviou uma carta para a Agência de Proteção Ambiental Federal (EPA) com evidências de que a toxicidade da substância era de conhecimento da DuPont há décadas. Ele testemunhou em uma audiência e pediu que a agência regulasse o C8 sob a Lei de Controle de Substâncias Tóxicas.

Em 2002, a DuPont foi sentenciada com uma multa de 16,5 milhões de dólares por ocultar informações. Não satisfeito com esse desfecho, Bilott continuou liderando ações em defesa da população afetada e propôs estabelecer um painel científico sobre o C8 para provar sua nocividade no corpo humano. A DuPont assinou um acordo de 70 milhões de dólares,  comprometendo-se a instalar sistemas de filtração e financiar o painel. Mediante resultado positivo, ela iria indenizar toda a população afetada.

Bilott conseguiu convencer cerca de 60 mil pessoas da região a realizarem exames de sangue, oferecendo uma compensação financeira por contribuírem com a pesquisa. Após sete anos de espera, a equipe científica do projeto identificou que 3533 pessoas estavam adoecidas e confirmou uma “ligação provável” do PFOA com seis doenças graves ou fatais.

Porém, a DuPont contestou a conclusão dos cientistas, quebrando o acordo firmado. Segundo Paula, essa conduta foi muito inadequada, existindo multas e sanções pela quebra de um acordo arbitral como esse, independentemente dos termos pré-estabelecidos.

Assim, as pessoas acometidas começaram a ajuizar ações individuais para pedir a culpabilização da empresa. A partir da terceira ação perdida, a DuPont desistiu de descumprir o acordo e viu ser mais lucrativo pagar a indenização coletiva. Apesar disso, a recusa contínua da empresa em assumir responsabilidade frustrou Bilott e as vítimas, sendo que várias questões estão em aberto até os dias de hoje: o PFOA ainda não é regulamentado nos EUA como ameaça à saúde pública.

“Embora a DuPont tenha pagado para a EPA o maior valor da história […], assim como indenizações milionárias para as pessoas que tiveram doenças, tudo isso é financeiramente incomparável aos bilhões de reais por ano que ela ganhava de lucro com o C8”, diz Paula. Para a entrevistada, independentemente da retaliação com a população, é impossível remediar inteiramente esse tipo de incidente.

“Qual é o preço de uma vida saudável? Isso pode ser dimensionado em um valor monetário?”

Paula Oliveira

Na atualidade

Desde o início do século 21, as legislações ambiental e industrial passaram por grandes avanços. O maior problema enfrentado hoje em dia é a fiscalização, pois apesar das normas existirem no papel, muitas vezes elas não são devidamente cumpridas ou monitoradas.

De acordo com a entrevistada, diversos órgãos sociais precisam se mobilizar. A Secretaria do Meio Ambiente e a Polícia Militar são legalmente responsáveis, mas ONGs e a própria população geral exercem um papel crucial na supervisão. Além disso, a própria mídia é importante para dar visibilidade aos casos e para gerar uma comoção pública.

No final deste cenário, como a DuPont pôde continuar atuando normalmente após o escândalo midiático? Paula explica que a ação aberta foi de cunho civil, não penal – ou seja, seu objetivo não era condenar a empresa, mas ressarcir os danos ao público. Nesse caso, prevalece o princípio de Continuidade da Atividade Empresarial: parte-se do pressuposto de que a empresa não cometerá o ato ilícito de novo, portanto é interessante prosseguir com a atividade para manter empregos, salários e vendas.

Fachada de fábrica atual da Dupont
Fábrica da DuPont atualmente. [Imagem: 19Tarrestnom65/Wikimedia Commons]

A assessora do TJMG  faz uma comparação com o incidente da empresa Vale, ocorrido em 2019 na cidade de Brumadinho (MG) e que provocou 272 óbitos. “A Vale trabalha com mineração, e o estado não funciona sem esse serviço. Da mesma forma,  a DuPont hoje trabalha com materiais de construção, fotovoltaicos ou eletrônicos, muito importantes para a economia do país. Ainda que ela tenha tido essa repercussão na sua imagem e tenha gerado esse dano ambiental, […] a economia com certeza fala muito mais alto”.

Incidente causado pela empresa Vale em Brumadinho (2019) [Imagem: Autor desconhecido/Fotos Públicas)

Leandro também traz, como exemplo recente, o caso de despejo de tolueno nas águas do Rio de Janeiro no dia 3 de abril de 2024. O químico relata que, devido a esse evento, 2 milhões de habitantes em Niterói e arredores passaram mais de 60 horas sem abastecimento de água. “Em 2024, isso não deveria ter acontecido, mas aconteceu, e devem ter outras coisas que não são publicadas. Se investigarmos os leitos de rios próximos a indústrias, será que está tudo certo mesmo?”.

Por fim, o PFOA foi substituído na indústria por outros PFASs de cadeia carbônica mais curta. Embora menos danosos, eles ainda preocupam cientistas. Estudos recentes sugerem que essas substâncias estão associadas a distúrbios do sistema imunológico e ao agravamento do quadro clínico do Covid-19. 

Robert Billot segue, até os dias de hoje, lutando pelos direitos ambientais nos EUA. Em outubro de 2018, ele entrou com uma nova ação contra várias empresas, incluindo a 3M e a Chemours – subsidiária da DuPont – devido ao uso de PFASs. 

Em entrevista para a revista Time, Billot declarou: “O que estamos ouvindo novamente das empresas que colocaram essas substâncias lá fora, sabendo que elas entrariam no meio ambiente e em nosso sangue, é que há evidências insuficientes para mostrar que elas representam riscos para os seres humanos. […] Se não conseguirmos chegar onde precisamos para proteger as pessoas através de nossos canais regulatórios, então infelizmente o que nos resta é o nosso processo legal”. 

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