Hugo Neto
No início dos anos 60, a carreira de Bette Davis, uma das maiores atrizes cinematográficas norte-americanas, aproximava-se perigosamente do fim. Após uma série de fracassos em Hollywood, a estrela que brilhara ininterruptamente nas décadas de 30 e 40 publicou na Variety o seguinte anúncio:
Artista procura emprego
Americana, divorciada, mãe de três filhos (15, 11 e 10 anos). Trinta anos de experiência como atriz de cinema. Ainda em condições de movimentar-se e mais afável do que dizem os boatos. Deseja emprego em Hollywood (fartou-se da Broadway). Respostas para: Bette Davis a/c Martin Baum, G.A.C. Dá referências.
Este golpe de autopromoção inspirou o diretor Robert Aldrich a conceber uma trama macabra concernindo duas velhas irmãs enclausuradas num casarão, e, num sagaz discernimento de publicidade, a produção reuniu duas atrizes célebres por décadas de uma legendária rivalidade na arte e na vida, Bette Davis e Joan Crawford. Assim surgiu O que terá acontecido a Baby Jane, um terror gótico que deu início ao ciclo que praticamente inventou o gênero.
Num lúgubre casarão vivem as irmãs Hudson. Baby Jane (Bette Davis), outrora uma criança-prodígio cuja carreira entrara em declínio, cuida de Blanche (Joan Crawford), uma estrela cinematográfica célebre em Hollywood que teve a carreira abruptamente interrompida quando ficou paralítica após um acidente automobilístico causado justamente por Baby Jane embriagada ao volante. A degeneração mental latente de Baby Jane vem à tona ao saber que Blanche pretende interná-la num sanatório e, daí em diante, seu desvario leva-a a protagonizar violências cada vez mais bizarras contra sua irmã.
Rodada em 20 dias, esta produção B oculta meticulosamente as limitações orçamentárias graças ao marcante talento dos profissionais envolvidos. Com a direção de arte barroca de William Glasgow, os cenários góticos de George Sawley, os figurinos grotescos de Norma Koch e a impressionante fotografia de contrastes fortes de Ernest Haller, o diretor Aldrich concebeu genialmente uma brutal atmosfera de pesadelo, adicionando a uma típica fábula de Grand Guignol a estética do film noir, gênero no qual o diretor era um admirável connaisseur.
Baby Jane é, contudo, especialmente célebre pelo marcante desempenho de suas atrizes. Crawford e Davis dominam magistralmente suas grotescas personagens, infundido-as da mesma vitalidade que fizera de ambas duas das maiores estrelas dos anos 30 e 40. Jane e Blanche são duas caricaturas humanizadas envolvidas numa brutal guerra de nervos, arrastando a platéia para dentro de um turbilhão de demência.
A Blanche de Joan Crawford é a máscara bizarra de uma mulher cuja ambivalência se desdobra muito lentamente. Na luta pela sobrevivência, desafiando os limites de seu corpo paralisado, remanesce sempre implícita a percepção de que Blanche poderia ser tão ou mais perigosa que Jane fossem dadas outras circunstâncias.
Crawford compõe uma personagem sensacional em Baby Jane. Não obstante, com seu estilo elétrico de interpretação, é Bette Davis quem domina violentamente o filme. Seu rosto pesadamente maquiado denuncia uma sádica máscara de loucura e seu corpo desleixadamente flácido sugere uma tosca sensualidade que alcança os limites da monstruosidade. Frente à sua interpretação ousada, ostensivamente exagerada, plena dos maneirismos que seriam parte cada vez mais freqüente de seus desempenhos subseqüentes, o espectador se dá conta, encantado, dos abismos de insanidade em que sua personagem mergulhou. Nas rudes gargalhadas ao servir um rato cozido à irmã, no espancamento a pontapés de Blanche ou na alegria subliminar de perpetrar um assassinato a marteladas, Bette Davis legou suas derradeiras cenas iconográficas nas telas e somente muito ocasionalmente sua carreira lhe propiciaria o patamar ao qual este filme genial e cruel a alçou no imaginário coletivo das platéias.
O que terá acontecido com Baby Jane? (Whatever hapenned ro Baby Jane?)
1962 – Estados Unidos – 132 minutos – P/B – terror
Direção: Robert Aldrich.
Roteiro: Lukas Heller baseado o romace de Henry Farrell.
Direção de Fotografia: Ernest Haller.
Direção Musical: Frank DeVol.
Figurinos: Norma Koch
Direção de Arte: William Glasgow.
Montagem: Michael Luciano.
Produção: Kenneth Hyman para a Seven Arts Associates e Aldrich Production, lançado pela Warner Brothers.
Elenco: Bette Davis (Baby Jane Hudson), Joan Crawford (Blanche Hudson), Victor Buono (Edwin Flagg), Marjorie Benett (Mrs Della Flagg), Madie Norman (Elvira Stitt), Anna Lee (Mrs Battes), Barbara Davis Merrill (Liza Bates), Julie Allred (Baby Jane criança), Gina Gillespie (Blanche Hudson criança), Dave Willock (Ray Hudson), Ann Barton Cora Hudson), Wesley Addy (Diretor), Robert Cornthwaite (Dr Shelbuy), Bert Freed (Produtor).