Tulio Bucchioni
“A Camorra, a Calabria, a Cecília são a face do que se desabituou de se chamar ‘capitalismo selvagem’” afirma Manuel da Costa Pinto, editor e crítico de cinema do jornal “Folha de S. Paulo” e um dos convidados para o debate sobre o filme “Gomorra”, na noite de quinta-feira, dia 22, na Livraria Cultura, em São Paulo. No evento estavam ainda Bruno Paes Manso, jornalista de “O Estado de S. Paulo” e Marçal Aquino, escritor e roteirista.
O filme, dirigido por Matteo Garrone, retrata a máfia italiana do sul do país e teve como inspiração o livro homônimo do escritor italiano Roberto Saviano, que conviveu com a máfia durante 26 anos. “ Saviano teve que tomar uma posição. O livro é muito mais um desabafo, um grito, uma denúnica do que uma representação propriamente dita” diz Paes Manso. “ Seu olhar sobre os fatos é o olhar de alguém que conviveu, sabe o que fala e sabe que por causa disso vai correr o risco eterno de morrer”. Atualmente Saviano encontra-se jurado de morte depois da repercussão de seu trabalho ao redor do mundo.
Para Manuel, o livro pode ser classificado como uma literatura de testemunho, uma vez que, apesar de estar muito próximo do romance, pode ser caracterizado por uma narrativa onde uma vítima “tenta dar conta dessa realidade dramática, irrepresentável”. Em sua opinião, o filme trata de expor o horror da transformação das pessoas em objetos, da alienação, da forma mais brutal do capitalismo, o capitalismo selvagem: “que coisifica tudo”. “ O que Saviano mostra é que existe essa faceta do capitalismo na União Européia, existe ainda a coisa pura, a transformação do homem em dejeto, em nada, o que caracteriza o livro todo”.
Marçal chama atenção para a extrema veracidade que o filme transpassa ao espectador e que traz semelhanças com o neorealismo italiano: “ o grau de realidade não poderia ser diferente, trata-se de um documento, aquilo que vemos na tela é verdade e acontece; o filme de Garrone se aproxima muito do neorealismo italiano”. O escritor e roteirista consegue ainda identificar uma semelhança entre “Gomorra” e “Cidade de Deus”, do brasileiro Fernando Meirelles: “ a felicidade da adaptação é terem sido tiradas do livro algumas histórias representativas; o filme lembra o Cidade de Deus por várias razões, é um mosaico com milhares de histórias e personagens, não é a toa que o filme tem 6 roteiristas”. Paes Manso concorda, mas ressalta que em “Cidade de Deus” não há o posicionamento evidente de “Gomorra”; para Manuel, “Gomorra” não possui “respiro, cor local como ‘Cidade de Deus’”.
Traçando um parelelo com Hollywood e depois com São Paulo, Marçal afirma que o filme “não se parece em nada com o cinema hollywoodiano, onde o bandido é bonitão, o que é um dos acertos desse filme, pegar atores próximos da realidade”. No que Manuel concorda: “ todos os ambientes são de uma periferia decadente em que tudo é dejeto, tudo é desglamourizado, ‘Don Corleone’ é só nas telas”. Referindo-se a São Paulo, Marçal aponta que a diferença está na “estrutura quase secular existente em ‘Gomorra’, onde tudo está misturado ao mesmo tempo e os tentáculos do crime estão onde menos se pode esperar, desde a coisa mínima até a coisa grande”. Paes Manso concorda, mas lembra o surgimento do PCC (Primeiro Comando da Capital) como um dado a ser levado em consideração na nova realidade do crime em São Paulo. “ O aspecto institucional e a forma como em ‘Gomorra’ a máfia comanda a cidade é impressionante; hoje em São Paulo faz 8, 9 anos que os homícidios despencaram, mas nesse cenário aparece o PCC, que funciona como um intermédio, um juíz desses conflitos [entre mafiosos, bandidos e civis], sendo uma grande instituição”.
A deterioração das relações sociais é apontada por Manuel como o principal fator para a formação e a crueldade empregada pelas instituições mafiosas. “ É uma forma pura de aniquilação social, o filme poderia se passar em qualquer periferia de uma cidade grande do mundo; esse é o lado sombrio do capitalismo global.”
Leia mais sobre o filme Gomorra: http://cinefilosjjunior.wordpress.com/gomorra/