O mundo literário em torno do gênero de ficção científica é vasto em seus temas, mas a fixação em saber como será o fim das eras, o epílogo da raça humana, alcança leitores através dos tempos. Invasão alienígena, guerra química, o surgimento de algum vírus mortal ou mesmo o apocalipse bíblico são objetos de uso para escritores desenvolverem suas ideias e aproveitarem a liberdade criativa que o gênero oferece.
No entanto, quando encontramos a palavra “fim” nesse tipo de obra, ela não necessariamente significa a conclusão de tudo, podendo também ser associada a um recomeço, afinal, ciclos são feitos de início, meio e fim. “Acredito que o fim dos tempos está na imaginação humana em diversas formas, e a ficção científica não deixa de representar isso, porque o cérebro humano é programado para processar histórias com começo, meio e fim”, comenta Cláudia Oliveira, jornalista e especialista em ficção científica. Ela ainda comenta que “a ficção científica faz perguntas sobre como nos sairíamos no fim de tudo”.
A psicóloga Camila Duarte traz uma perspectiva diferente do aspecto humano, dizendo que “temos clareza sobre a morte como algo definido em nossa jornada, enquanto humano, mas, não fazemos essa análise no nosso inconsciente, pois, no inconsciente, somos imortais”. Na ficção científica, o fim também não precisa significar morte, pode ser apenas um estágio para algo maior ou a evolução natural para uma condição transcendente.
Autores como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke tratam da questão do “fim” em diferentes perspectivas, e até planos, em suas obras, mas trazendo ao mesmo tempo um aspecto questionador e às vezes pessimista sobre a questão. Não é por acaso que o termo aparece nos títulos de livros aclamados como O Fim da Eternidade (The End of Eternity, 1955), escrito por Asimov, e O Fim da Infância (Childhood’s End, 1953), escrito por Clarke.
Seria possível obras tão diferentes terem alguma conexão quando abordam a questão do fim ou seria o uso da mesma palavra uma mera coincidência? É hora de partir para uma busca de significados, seja pela viagem no tempo, ou mesmo pelo encontro com seres superiores que buscam implantar a utopia que os humanos sempre buscaram.
O fim como recomeço: O Fim da Eternidade e o controle do tempo
Em um primeiro momento, quando um leitor folheia as primeiras páginas de O Fim da Eternidade, o conteúdo da obra pode parecer abstrato, complexo. A construção de mundo, passo a passo, é feita lentamente por Asimov, mas de forma necessária para que se entenda o enredo e tudo o que ocorre no desenrolar dos acontecimentos.
Quando o livro foi escrito, o autor estava vivendo o clima da Guerra Fria, em que os capacidades bélicas e tecnológicas eram testadas ao limite. A física nuclear, por exemplo, era estudada para causar a maior destruição possível. Mas as questões envolvendo viagens espaciais, o estudo da robótica, além do questionamento sobre a existência de vida alienígena também ocupavam espaço entre cientistas e estudiosos.
Antes de se tornar famoso por sua série de livros Fundação, Asimov decidiu escrever sobre viagem temporal e a escolha rendeu um livro que retrata a vida dos Eternos, uma equipe de pessoas designadas a alterar situações no tempo, mantendo a ordem estrutural de acontecimentos e também trazendo benefícios à humanidade ao longo do futuro.
Exemplificando, seria como se alguém pudesse evitar a morte de um cientista, simplesmente ao alterar seu percurso, fazendo com que ele criasse algo importante para a humanidade em um futuro próximo. Pequenas alterações na realidade que levariam a raça humana à sua perfeição.
Esses técnicos da Eternidade passam por treinamentos árduos e são obrigados a deixar a parte emocional de lado, priorizando sempre o racional na hora de realizar o seu trabalho. Os Eternos dificilmente se relacionam com outras pessoas e, quando isso acontece, mudanças que até aquele momento eram calculadas, analisadas e aprovadas de forma lógica passam a ser realizadas pelo emotivo, podendo determinar o fim de tudo o que conhecemos. E qual sentimento seria capaz de nos motivar a fazer coisas impensáveis? O amor.
O personagem Andrew Harlan se apaixona por Noÿs Lambert, uma habitante do século 482. Para o sistema da Eternidade funcionar, habitantes de variados séculos ajudam os Eternos em suas modificações, mas essas pessoas não são consideradas partes do sistema temporal.
Demonstrar o que o fim da Eternidade significa é provavelmente o maior spoiler do livro e o que o leitor deve perceber é que, no caso de Asimov, o fim pode significar recomeço, o resgate da liberdade individual, do direito de escolha. “Essas obras também nos falam sobre a responsabilidade de ter poder e o que fazemos com ele, e a quem cedemos controle sobre nossas liberdades sem perceber”, comenta a jornalista Cláudia.
Com uma entidade controlando o que pode existir ou não, a raça humana se acomodou, deixando de evoluir cientificamente e ficando para trás em revoluções extremamente necessárias para o desenrolar da sua própria história. O exemplo dado no livro é que deixamos de descobrir mais do universo devido à presença dos Eternos.
No final de O Fim da Eternidade, as perguntas que ficam realmente são: até que ponto ter um planeta livre de desastres e controlado é positivo? Não seria o enfrentamento de tragédias o principal responsável por deixar as pessoas mais fortes, focadas e empenhadas em suas ações? Que cada leitor tire sua própria conclusão após viajar através do tempo e ver a derrocada da Eternidade.
O fim como união a algo maior: a visão apocalíptica e utópica de O Fim da Infância
Arthur C. Clarke viveu na mesma época que Asimov, então suas referências eram parecidas, tanto na vivência, quanto no contexto da produção de sua escrita, já que “quem escreve, fala um pouco de si; mesmo que seja uma grande fantasia, algo do autor passa para a obra”, de acordo com Camila. Nesse caso, o que influenciou Clarke a escrever foi exatamente uma experiência pessoal, quando o mesmo visualizou centenas de balões brilhantes prateados “ancorados” no céu de Londres em 1941, semelhante a uma frota de naves alienígenas.
Imagine a cena inicial do longa Independence Day (1996) e você terá uma imagem de como o livro O Fim da Infância se inicia. A trama foca no começo da Guerra Fria, mas algo interrompe os planos dos líderes envolvidos no conflito: o surgimento de naves alienígenas em todo o planeta. O que esses seres querem? Qual é a razão deles aparecem justamente naquele momento?
A chegada dos Senhores Supremos (nome dado ao aliens) é misteriosa, principalmente por se revelarem através de interações não-presenciais. Por serem dotados de inteligência e tecnologia avançada, prometendo a cura de doenças e o fim de guerras na Terra, os seres humanos são obrigados a se submeter.
Apesar de nos guiar para um futuro de paz e prosperidade, os Senhores Supremos ainda se mantinham em segredo, e só se revelaram ao sentir que a humanidade estava preparada para recebê-los. A surpresa envolvendo suas aparências faz sentido, já que eles se assemelham a demônios saídos diretamente da Bíblia. Os Supremos só se expuseram quando a religião foi superada pelas gerações que vieram após aqueles que viram a chegada dos mesmos.
O fim da infância remete ao final de uma geração que ainda engatinhava e que deixou de pensar e viver por si mesma. A missão dos Supremos é preparar a humanidade para um grande salto evolutivo, capaz de criar uma geração de crianças com poderes mentais avançados. Ao atingir esse estágio, a humanidade se une a outros povos dominados pelos Senhores Supremos, alcançando consciência infinita nessa entidade superior.
Em um enredo que trata sobre a utopia, filosofia e ficção científica se conectam em reflexões que envolvem crenças, misticismo, ciência, entre outros assuntos que mostram a busca de uma transcendência. “Podemos abordar infinitos aspectos nessa temática: como agir em sociedade, o que é traição, como a mudança de contexto muda as condutas sociais… podemos falar sobre o que é finitude, se a desejamos ou tememos e por que ter uma reação ou outra”, comenta Cláudia.
Além da ficção científica, o final do livro nos traz diversas analogias religiosas, principalmente ao Livro do Apocalipse, mas o oculto tem um papel mais importante aqui, pois a humanidade se junta a uma espécie desconhecida com um propósito obscuro. “Tentamos criar teorias para encaixar as lacunas do que não conhecemos . A gente imagina o que é o que vem lá de fora ou completa os vazios de uma história a partir do que nos convém. Mas sobre o fim… só podemos criar teorias, não há nada de certo (e aqui cabem as religiões e religiosidades que vêm preencher esse nosso não saber)”, explica Camila.
Não é um final feliz ou triste, trágico ou vitorioso, é apenas uma conclusão transcendente para todos os envolvidos, da matéria mais ínfima aos seres superiores do universo.
As relações entre o significado de fim em Clarke e Asimov
Apesar de estarem em esferas diferentes, ambos os livros citados têm relações possíveis de serem feitas. Os conceitos de “fim” demonstrados ressaltam uma grande questão: o que é finitude? E essa resposta pode variar do terreno ao universal, do fascínio ao medo. Para Asimov, o tempo é eterno, independentemente de ser controlado ou não, o que muda é a evolução da raça humana, impossibilitada de se desenvolver cientificamente a ponto de adentrar o espaço.
Mas isso também não acontece na obra de Clarke, quando seres superiores assumem o comando da Terra, tirando nossa individualidade e liberdade? A ausência do livre-arbítrio em ambos os casos já não seria um “final dos tempos” propriamente dito?
A privação da autonomia do indivíduo percorre ambas as obras e impede o progresso científico. Para os Senhores Supremos de O Fim da Infância, a humanidade não é uma raça pronta para adentrar o universo, tanto que eles aparecem pela primeira vez, ocupando o céu do planeta, exatamente no dia que o primeiro foguete direcionado ao espaço seria lançado. O problema não para na ciência, pois quando a individualidade humana é restringida a arte também é condenada, pois a criatividade fica cerceada. Para Clarke, o futuro da humanidade não está na expansão, mas na transcendência.
Segundo os autores, se a humanidade não tem razão para evoluir por si próprios, ela para de tentar alcançar um objetivo, e chega no status do comodismo. Isso pode não afetar algumas pessoas, mas outras se mostram contrárias, e temos personagens nos dois livros que demonstram isso, mesmo eles não tendo sucesso em seus objetivos.
A diferença entre imortal e eterno também pode ser analisada. O tempo, protagonista de O Fim da Eternidade de Asimov é um ser não-vivo que não tem princípio, nem fim. Controlado pela instituição citada no nome da obra, o tempo sempre existiu e existirá. O ser soberano do livro de Clarke (que comanda os Senhores Supremos) é imortal, pois nasceu de alguma forma e sempre existirá, consumindo planetas e populações evoluídas o suficiente para a união.
Independentemente do fim preferido, talvez saber quem controla nossas vidas seja mais interessante do que apenas ter alguém por trás das cortinas mudando cada passo dado. “Os técnicos humanos parecem ser um destino mais terrível. Pelo menos eu saberia que estamos sendo controlados pelos aliens. Imagina só se nossas ações não estão sendo canceladas e mudadas agora mesmo por técnicos do futuro?”, responde Claudia sobre qual fim é o seu preferido
Os livros mencionados aqui tiveram grande repercussão na cultura pop: O Fim da Infância influenciou o diretor Stanley Kubrick, que mais tarde dirigiria um conto de Clarke, originando o longa 2001, Odisseia no Espaço. O Fim da Eternidade de Asimov é considerado um prólogo para a saga Fundação, marco histórico das obras baseadas em ficção científica e que marcou todas as mídias que usaram o tema após seu lançamento.
Ambos abordam assuntos diferentes, mas ao mesmo tempo contam sobre como a humanidade precisa de sua liberdade e individualidade para progredir. Não uma evolução controlada e maquiada, mas humana e necessária.