De Juazeiro ao Rio, João Gilberto viveu 88 anos. Excêntrico e perfeccionista, ele inaugurou uma forma de tocar samba ao violão. Com característica própria e extrema complexidade harmônica, o artista recria a percussão do gênero com a sua batida, fazendo um exercício de estilização desse estilo musical. Em João Gilberto, a voz é desvinculada do instrumento, adquire forma própria. Nas palavras do professor do Departamento de Música da USP Ivan Vilela Pinto, “a voz adianta, atrasa, fica passeando. Ele a acelera, depois segura, e o violão continua.”
Do Chega de Saudade (1959), com Bim-Bim e Hô-bá-lá-lá, ao álbum Eu sei que vou te amar (1994), que contém apenas uma música própria, conta-se aos dedos a quantidade de músicas autorais gravadas. São 11 composições em meio a mais de 100 interpretações lançadas. Longe de apresentar alguma conotação negativa, o fato, ao contrário, só reafirma o rigor e unicidade de sua música. “O som” de João Gilberto não é apenas a combinação de melodia, ritmo, harmonia e letra, mas todos esses elementos em uma coesão própria do artista. Chega de Saudade, música composta pelo bossanovista Tom Jobim e com letra escrita por Vinicius de Moraes, por exemplo, é metamorfizada em outra canção quando interpretada por João. Por meio da peculiaridade própria do artista em fazer música, ele a transforma em sua. Do “vai minha tristeza” ao “de você viver sem mim”.
Para muitos, existe uma música brasileira antes de João Gilberto e uma música brasileira após João Gilberto. Segundo o pesquisador e crítico de música, Walter Garcia, “no século 21, dificilmente alguém toca violão acompanhando samba sem dever algo a João Gilberto.” Com um almejo por impecabilidade próprio, que beirava ao obsessivo, o músico criou a Bossa, essa alternativa de fazer samba, mas que ainda é samba. É uma revolução estética e seu legado para a moderna música popular brasileira.
Seu canto explora a elasticidade das vogais em sua potencialidade máxima, é brando e amaciado. A transição entre notas não é brusca, cria uma noção de união. O melódico frasal é ouvido como um fluxo contínuo, dissonante à pulsação rítmica do acompanhamento. O trabalho de João Gilberto é sublime. A proximidade do canto com a fala e a batida do violão lenta e suave comunicam, é intimista. João Gilberto criou um mundo próprio, abriu uma pequena janela e nos convidou para ouvir. Sua forma de ver a música e o mundo chama Bossa Nova.
Era o período dos golden years brasileiros, artistas nacionais ganhavam destaque internacionalmente e consolidava-se uma estética cultural riquíssima. Enquanto Guimarães lançava Grande Sertão Veredas (1956), O Pagador de Promessas (1962) conquistava a Palma de Ouro em Cannes. Além disso, projetos como o selo Festa, idealizado por Irineu Garcia, traziam ao público o contato com músicas e poesias da época, um arsenal de Drummond, Vinícius, Cecília, Tom Jobim, Bandeira e muitos outros.
Enquanto isso, no final dos anos 50, na Zona Sul do Rio, nascia a bossa nova. “Eu toco samba”, já dizia João Gilberto. Apesar de tantas análises do gênero, a bossa nova é simplesmente isso: uma maneira de tocar o mesmo gênero musicalsamba. Ao longo do século XX, esse gênero apresentou uma diversidade de estilos que permitiu a especificação em subgêneros, como o samba-canção, o pagode romântico, a bossa nova, o samba-canção, entre outros.
Antes da bossa nova, esse últimoo samba-canção era quem fazia sucesso. Ele era marcado pela utilização de muitos instrumentos, uma orquestra e músicas românticas de sofrimento. A chegada da bossa nova muda isso completamente. “A Bossa Nova vai trazer a tipicidade do samba de volta à cena musical, vai ser uma música mais camerística* e menos orquestral. É como se fosse falar menos para fazer-se ouvir mais” – explica o professor Ivan Vilela. *(camerística – música de câmara, um pequeno grupo de instrumentos e vozes, menor que uma orquestra)
A sua linha de frente era a tríade Jobim, Vinícius e João Gilberto, também nomeados de Santíssima Trindade. Esses e outros artistas, de maneira revolucionária, reaproximaram o samba de suas origens, com uma batida mais lenta e suave. A bossa nova traz esse mesmo estilo musicalum samba tocado pelo violão, representando a batida do telecoteco e do tamborim.
Em uma análise de Chega de Saudade, música que marca essa revolução estética bossanovista, Ivan Vilela analisa como tudo ocorre para que voz e violão sejam valorizados. Todos os outros instrumentos que aparecem, flauta no início e uns violinos e violas de arco depoisna segunda parte, são em notas longas. Essas notas permitem a valorização da voz e da batida “sequinha”, deixando evidente a saída da música orquestral e para a música de câmera.
Além disso, as narrativas são muito mais leves do que as encontradas no samba-canção. Em Desafinado, composta por Tom Jobim e Newton Mendonça, a música inicia-se com um tom melancólico nos versos – “Se você disser que eu desafino amor/Saiba que isso em mim provoca imensa dor”, na palavra amor canta-se e toca-se a quarta aumentada, nota mais dissonante que pode haver em uma escala. Nas obras da bossa nova, utiliza-se uma tensão harmônica na melodia, na voz. Em seguida, a narrativa se torna mais leve, nos trechos – “Fotografei você na minha Rolei-flex/Revelou-se a sua enorme ingratidão”, com ironia e ressaltando uma câmera que era de uma ótima qualidade para a época. Além disso, o final das músicas é predominantemente feliz, como – “Só não poderá falar assim do meu amor/Esse é o maior que você pode encontrar” e também em Chega de Saudade “Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim”.
https://www.youtube.com/watch?v=ZuNEuzMzryA
Atreladas a seus autores cariocas, as narrativas tratam de cenas locais -. “Existe uma estetização dos tópos naturais do Rio de Janeiro, a garota de Ipanema, o Corcovado, o barquinho no mar”, conta Vilela.
Justamente por essa ligação tão próxima ao Rio e seus criadores, homens predominantemente brancos e de classe alta, muito se discute sobre a bossa nova como uma representação musical exclusivamente elitista. José Tinhorão, crítico e pesquisador musical e a primeira pessoa a escrever um livro voltado para análise social da música — História social da música popular brasileira (1990) —, traz em uma perspectiva marxista que a bossa nova seria uma porta de entrada para a música americana, principalmente por ser produzida por uma classe não-operária. Em contraponto, IvanVilela argumenta que o elitismo na bossa nova era apenas na sua criação, homens brancos de classe média-alta -. “Ela não gourmetizou o samba. Pelo contrário, ela resgatou o samba que havia desaparecido dentro da estética sonora do samba-canção” e exemplifica que João Gilberto gravou muitas músicas de Geraldo Pereira, sambista morador de morro.
“A bossa nova é uma renovação estética, fruto de uma extensa produção cultural, que depois foi destruída com o golpe militar”, critica Vilela.
Cantando miudinho, João Gilberto acompanhou muitos passos, muitas mentes. Exigia atenção. O baiano que redefiniu a música brasileira e internacional era diferente de tudo. Para Walter Garcia, “o Brasil acaba de perder não apenas o seu maior cancionista, mas o seu maior artista.”. Se existe mesmo uma divisão da história da música a partir do violinista, hoje falamos de uma música brasileira com João Gilberto e uma música brasileira sem João Gilberto, mas que colhe os frutos do seu legado. Fazendo falta, o sambista se despede.