O audiovisual, no Brasil, engloba as indústrias cinematográfica, televisiva e videofonográfica. Porém, no contexto atual, suas produções correm o risco de não se efetuarem. Cortes nas verbas, ameaças de extinção de agências e possibilidade de censura são preocupações cada vez mais recorrentes aos que se importam com essa forma de manifestação artística — e também com a economia do país.
Em abril, o diretor-presidente da Ancine (Agência Nacional do Cinema), Christian de Castro, suspendeu o repasse de verbas para a produção de filmes e séries. Como consequência, as atividades da agência estão paralisadas e sofrerão atraso. Para piorar este cenário de desmonte e conservadorismo na cultura, no dia 19 deste mês, o presidente Jair Bolsonaro disse que se a Ancine não puder impor um filtro nas produções audiovisuais brasileiras, ela será extinta ou privatizada.
Mas o que é a Ancine?
A Agência Nacional do Cinema, juntamente com o Conselho Superior de Cinema, foi criada em 2001 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso como uma Medida Provisória 2.228-1, sendo depois regulamentada por lei, tendo como objetivo fomentar e regular às produções audiovisuais. O Conselho estava originalmente vinculado à Casa Civil, mas, em 2002, Lula o passou para o Ministério da Cultura. Com a extinção do Ministério da Cultura, que passou a ser uma pasta no Ministério da Cidadania, o presidente Jair Bolsonaro anexou novamente o Conselho à Casa Civil.
A Ancine foi criada como uma agência reguladora. De acordo com Marcelo Ikeda, professor de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), isso significa que ela é “um órgão técnico neutro, um órgão de Estado, e não um órgão de governo”, que possui autonomia administrativa e financeira, baseando-se em “critérios transparentes, neutros, técnicos, e não em função da preferência do governante”, de modo que funciona como forma de resistência às pressões do governo.
Em discurso contraditório à função de agências reguladoras, o presidente afirmou: “A cultura vem para Brasília e vai ter um filtro sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode dinheiro público ser usado para fins pornográficos”, em referência ao filme Bruna Surfistinha (2011), que reconheceu nunca ter assistido.
O professor argumenta que um filme como Bruna Surfistinha não poderia ser feito por, supostamente, ser um longa de teor pornográfico, “apesar do filme não ter nada de pornográfico, é um ‘docudrama’, drama sobre uma garota de programa, que aborda questões como a prostituição, mas sem tratamento pornográfico”.
A ameaça de colocar censura prévia nas produções da Ancine é, para Ikeda, “uma intervenção de conteúdo”, que “não é feita a partir de critérios técnicos indicadores, nem pela diretoria, por técnicos do órgão, mas por um filtro, um viés ideológico, externo à agência”. Vale salientar que a Ancine não incentiva produções pornográficas.
Diante das suspensões de verbas da Ancine para o audiovisual e os discursos do presidente Jair Bolsonaro, as produções cinematográficas estão paralisadas. Obras como A mãe, da produtora Priscila Portella, têm a sua conclusão ameaçada devido à não liberação de recursos. Vários longa-metragens estão com suas atividades paralisadas, como Meu sangue ferve por você, de Paulo Machline.
“A cultura é instituição fundamental no desenvolvimento de um país, como educação, saúde, previdência e bem-estar, é a construção de uma identidade nacional, ela é subvencionada [amparada] pelo Estado. Então a Ancine, assim como o Ministério da Cultura e órgãos como Funarte (Fundação Nacional de Artes), é muito importante para o desenvolvimento da cultura do país.” Foi com essa palavras que o roteirista Rubens Rewald demonstrou sua preocupação com a cultura do país e o desmonte das agências de incentivo ao audiovisual.
Desmonte
De forma incisiva, o governo vem aplicando uma política de enxugamento dos ministérios, seja extinguindo ou deferindo-os para pastas distintas. O Ministério da Cultura não passou ileso a tal política. Neste ano de 2019, o governo Bolsonaro anunciou o seu fechamento, transferindo-o para pasta da Cidadania. A partir daí a Ancine vem passando de ministério para ministério, o que provocou a instabilidade do órgão federal e implicou a não efetivação das obras audiovisuais.
Após críticas governamentais, neste ano, ao financiamento da Petrobras a projetos culturais, a estatal cortou patrocínios de 13 projetos, a maioria referente ao cinema. A Mostra de Cinema de São Paulo, o Anima Mundi, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e a Sessão Vitrine (projeto que dá visibilidade ao cinema nacional) foram atingidos pelos cortes. A desconjuntura da rede de apoio estatal à produção cultural parece não ter fim, a Agência Brasileira de Exportações e de Investimentos (Apex) suspendeu apoio financeiro para o programa Cinema do Brasil, voltado à exportação de filmes brasileiros.
Os problemas no cinema brasileiro também chegam a veículos estrangeiros. A Variety, revista estadunidense especializada em cinema, negócios e entretenimento, destaca que o Departamento Cultural do Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, não trabalha mais junto a entidades públicas e privadas do setor audiovisual, cujo objetivo era fortalecer a presença de filmes e programas brasileiros no mundo, divulgando a cultura e facilitando contatos para comercialização desses bens culturais. A guinada de tantas notícias mostra de forma preocupante a situação do entretenimento no país.
Considerando esse cenário, Marcelo Milan, professor de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), enfatiza que agências reguladoras têm um importante papel de normatizar e parametrizar às ações dos agentes. Ele faz questão de explicar que a Ancine é mais que uma reguladora, visto que incentivos e patrocínios para área também dependem da instituição. Assim, obras importantes deixariam de ser produzidas sem a presença dela. A nebulosidade acerca das decisões governamentais sobre o cinema brasileiro parece não ter fim. A suposta retirada do Fundo Setorial do Audiovisual da Ancine preocupa o economista, que afirma, do ponto de vista econômico, a não transparência da realocação dos recursos do fundo setorial, por exemplo.
O Cinema move a economia
É estimado que a indústria do cinema brasileiro movimenta cerca de R$ 25 bilhões ao ano em produções e bilheteria, sendo o mercado nacional de cinema o décimo do mundo. De acordo com um estudo da Ancine, em 2015 havia 94.972 empregos gerados pelo setor de modo direto, além de 93.073 indiretamente, totalizando 188.045. Já no ano de 2018, os filmes brasileiros apresentaram um impulsionamento de 34% em relação ao ano de 2017 quando comparados aos estrangeiros. Ainda, conforme estudos da Ancine, obras brasileiras ultrapassaram a marca de 20 milhões de ingressos vendidos.
Porém, Ikeda pontua que cerca de 70% a 80% das receitas do mercado cinematográfico são de filmes de grandes oligopólios estadunidenses, como Disney, Paramount e Warner, enquanto apenas entre 10% e 15% do mercado é composto por filmes brasileiros”. Ele ressalta a importância do desenvolvimento de políticas de Estado voltadas para a produção audiovisual brasileira, como a Ancine, de modo “a proteger o mercado contra essa invasão indiscriminada de produtos estrangeiros”, incentivando assim o consumo dos bens culturais do país. Além de ser uma ferramenta de questionamento, o audiovisual que movimenta a opinião pública com discussões de ordem ética, moral e ideologia, é um mecanismo financeiro estratégico para economia.
É nessa parte de desenvolvimento de políticas que o Conselho Superior de Cinema entra como ferramenta essencial. O órgão coleginante teve redução dos seus representantes da sociedade civil e do audiovisual decretada pelo presidente Bolsonaro. A desculpa de cortar gastos por parte do governo não explica a retirada dos integrantes, já que não recebem salários. O Conselho é responsável pela formulação da política nacional, a aprovação de diretrizes gerais para indústria e o estímulo à presença do conteúdo brasileiro nos diversos segmentos do mercado.
Milan diz que grande parte do movimento financeiro do audiovisual vem do cinema, o qual “representa um grande número de empreendimentos, empregos e renda”. Para ele, o crescimento desse setor é positivo para o país: “os sucessos internacionais, com exibições em grandes festivais, têm chamado de novo a atenção para o cinema nacional, e isso gera divisas via exportação. É um dos setores culturais e criativos mais importantes do ponto de vista econômico. Cada filme produzido e exibido movimenta toda uma cadeia de fornecimento.”
No festival de Cannes de 2019, filmes brasileiros como Bacurau (2019) , de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e A vida invisível de Eurídice Gusmão (2019), dirigido por Karim Aïnouz, foram premiados. É notável o crescimento dos longas para além das fronteiras nacionais demonstrando a qualidade das produções.
Tendo noção do quão estratégico é economicamente, o ideal seria que o Estado brasileiro agisse como aprimorador e indutor do desenvolvimento da indústria audiovisual ao invés de extinguir ministérios e censurar órgãos que envolvem a cultura nacional. Como responsável pela execução das políticas públicas para o setor e gestora do Fundo Setorial do Audiovisual, a Ancine enfrentará muitos desafios pela frente, como criação de estratégias, sustentação do mercado de trabalho e o desenvolvimento de tecnologia que crie patente intelectual própria para atrair investimentos privados e públicos.
Relevância do cinema nacional
Não podemos nos esquecer também da importância cultural do cinema e de seu papel de demonstrar a realidade. De acordo com Ikeda, “os bens culturais, como o cinema, não são simples commodities, mas sim produtos insubstituíveis”. Assim, “é fundamental que o Brasil tenha filmes, peças de teatros e livros que expressem modos de ser e toda diversidade da sociedade brasileira, representando o Brasil dentro de vários ‘Brasis’. É importante que existam incentivos para produção cultural e cinematográfica em todo o país. Tudo isso não vai ser tratado pelo filme estrangeiro.
Mas Milan diz que o impacto cinematográfico ainda não atingiu todo o seu potencial em termos de público, pois são necessárias, além de políticas de fomento, políticas públicas voltadas à educação, embora o cinema nacional esteja ganhando espaço e cativando mais público. “Do ponto de vista cultural, o cinema nacional tem estética marcante, muito característica, com fortes elementos regionais. As obras retratam bastante a realidade nacional, nossos problemas mais marcantes, nossos dilemas históricos e contemporâneos. Todos os segmentos sociais relevantes têm sido bem retratados nas telas.”
Roberto Franco Moreira, professor de Cinema da Universidade de São Paulo (USP), enfatiza a importância do cinema por meio de uma analogia com a ciência e a tecnologia: “Assim como qualquer nação precisa de conhecimento, também precisa de arte.”